Comitê
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RN
Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvão
Livros
e Publicações
1964.
Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvão
Edições Clima
1994
Dois
anos depois
Em
abril de 1966, recebi telegrama da Auditoria
Militar do IV Exército, no Recife,
comunicando que estava enquadrada nos crimes
previstos nos artigos 9, 10 e 12, da Lei
1802/53 - a Lei de Segurança Nacional.
Recebi o comunicado sem surpresa mas fiquei
mais uma vez muito assustada.
Somente em fins de agosto fui intimada,
com data marcada, para comparecer perante
aquela Auditoria. Não consigo lembrar
se a convocação informava
se eu seria interrogada ou apenas identificada.
Para apresentar-me à Auditoria, necessitava
da companhia de um advogado, o que não
conseguia em Natal. Por aqueles dias a tensão
nacional atingia os limites do terror; todos
os quartéis encontravam- se em prontidão,
em consequência da explosão
de uma bomba, justamente no aeroporto do
Recife, por ocasião do desembarque
de alguns generais, quando morreu o almirante
Nelson Fernandes. Os militares tinham estavam
agitados e procuravam em todos os lugares
possíveis os autores do atentado
que, até hoje, não foram,
de fato, identificados. Na época
suspeitava-se que a bomba havia sido colocada
pela “linha dura” dos próprios
militares, numa tentativa de justificarem
um maior endurecimento do regime.
Viajar ao Recife, por aqueles dias e na
condição de subversiva, era
um risco muito grande. Depois de alguns
entendimentos, decidi, através dos
amigos Paulo Rosas e José Eufrânio
Alves, residentes naquela cidade, contratar,
para minha defesa, o conceituado profissional
Dr. Roque de Brito Alves. O advogado aceitou
a causa mas os seus honorários eram
altos demais para os meus parcos recursos.
Com um empréstimo da família
e de amigos viajei ao Recife.
Apresentei-me ao Dr. Roque na sua residência
com certa timidez mas ele me recebeu com
tranqüilidade e inspirou confiança.
Leu a intimação, não
fez comentários, indagou sobre o
meu cargo na Prefeitura e convidou-me a
visitar a sua coleção de porcelanas
antigas. A coleção era linda
e bem cuidada mas concentrei-me em uma reprodução
de Salvador Dali, com um Cristo na cruz,
flutuando entre um céu infinitamente
azul e um lago sereno. A comunicação
com o Cristo ajudou-me a vencer o medo,
a angústia e a solidão. Deixei
a sala quase tranqüila. Senti gratidão
e carinho por Dr. Roque, que proporcionou
aquele encontro antes de me levar até
a Auditoria.
A Auditoria era uma casa antiga e bem recuada.
Caminhamos até uma sala onde já
se encontravam diversos denunciados, com
expressões aflitas e assustadas.
O ambiente era solene e tenso. Sentamo-nos
à frente de um estrado onde se encontravam
os militares, separados de nós por
uma divisória de madeira. Ao lado
ficavam os advogados, pouquíssimos
para tantos indiciados. O Dr. Roque ocupou
um lugar e passou a ler uma revista, como
se nada lhe interessasse naquele ambiente.
Era eu a única mulher naquela sala.
Senti tristeza por mim e por aqueles homens
desamparados, alguns mal vestidos, saídos
das prisões que todos nós
conhecíamos. Felizmente, a imagem
do Cristo me acudiu e em meio às
minhas aflições ouvi um oficial
pronunciar meu nome e ordenar que me apresentasse.
Enquanto caminhava até a frente dos
militares, Dr. Roque ficou de pé,
acompanhando-me com o olhar. Entregaram-me,
então, um documento que me encaminhava
a outro setor do Exército, onde seria
identificada e fichada.
À saída, despedi-me do Dr.
Roque de Brito Alves que assumiu a responsabilidade
de conseguir-me um habeas-corpus que me
livrasse do processo que corria naquela
Auditoria.
Às 14 horas dirigi-me, sempre acompanhada
por Leon e Socorro, sua esposa, a um quartel
ido Exército, onde encontramos os
estudantes Geniberto Campos, Francisco Ginani,
João Faustino Ferreira Neto e diversos
outros "subversivos" de Natal.
Após o ritual de identificação
fomos liberados. Deixamos a cidade quando
já ia anoitecendo. Conosco voltaram
Geniberto e Ginani. Era agosto e uma lua
imensa clareava a noite. Liguei o rádio
do carro e o cantor Jair Rodrigues começou
a cantar: "Tristeza, por favor vá
embora." Chegamos a Natal aliviados
e quase felizes. Soube, depois, que na pressa
de sair do Recife, Leon esquecem de abastecer
o carro e corrêramos o risco de ficar
pelo caminho...
Meu habeas-corpus, de número
29.135, foi concedido somente em 4 de outubro
de 1967, quando fui excluída da denúncia
oferecida pela Auditoria da 7 Região
Militar. O relator foi o ministro Dr. Orlando
Moutinho Ribeiro da Costa.
A denúncia apresentada era a seguinte:
“Dedicou-se à organização
de postos bibliotecas. sendo que participou
da reunião em se tratou da necessidade
da adaptação da “Campanha
de Pé no Chão Também
se Aprende a Ler”. Como diretora
que foi da Diretoria de Documentação
e Cultura de Secretaria de Educação
do Município, imprimiu cunho
subversivo a seu serviço.”
fls. 14.
Caracterizando a denúncia assim se
expressou o ministro relator:
“Assim, dita denúncia
não devia ter sido recebida,
na conformidade do disposto no art.
189, do CJM, porque não fixa
dia, hora, lugar em que teria cometido
crime e, mais, ainda, não descreve
nenhum ato delituoso por ventura praticado
pela paciente, de forma que torna-se
um verdadeiro constrangimento ilegal
a obrigação da paciente
abandonar o seu serviço e o seu
lar, em Natal, R. G. do Norte, para
comparecer e responder ao processo em
Recife, Pernambuco.”
Os consideranda que antecederam
à exclusão do processo e respectiva
sentença foram:
“Considerando que a denúncia
na narração dos fatos
não descreve nenhum delito que
possa ser atribuído a paciente;
Considerando que a dita denúncia,
além de não descrever
crime nenhum quanto à paciente,
não fixa dia, hora e lugar em
que teriam ocorridos os fatos ali descritos;
Considerando que a paciente comprova
que é funcionária pública
federal, servindo no Departamento de
Correios e Telégrafos há
mais de vinte anos. sem nota desabonadora,
nunca tendo sofrido qualquer penalidade;
Considerando que a denúncia oferecida
não tipifica crime de espécie
alguma contra a paciente;
Considerando o mais que dos autos consta;
ACORDAM, em Tribunal, por unanimidade
de votos, conceder a presente ordem
impetrada em favor da funcionária
Mailde Ferreira Pinto, para excluí-la
da denúncia oferecida na auditoria
da 7° R.M., como incursa nas penas
dos arts. 9,10 e 12 da Lei n 1802/53
por falta de justa causa.
Superior Tribunal Militar, 4 de outubro
de 1967."
Seguem-se
as assinaturas de quinze ministros do Superior
Tribunal Militar, entre eles o general Olympio
Mourão Filho, um dos cabeças
do golpe militar, e do general Ernesto Geisel,
um dos presidentes da República durante
a ditadura.
O habeas-corpus anulou as denúncias
que me fizeram na ditadura militar; ficaram,
porém, e definitivamente, as marcas
do sofrimento.
Os outros companheiros foram, igualmente,
excluídos dos processos por habeas-corpus
concedidos, também, pela unanimidade
do Superior Tribunal Militar e assistimos
então, todos nós, em silêncio,
através dos votos dos próprios
militares, a desmistificação
das acusações que nos fizeram.
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