Comitê
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Repressores
RN
Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvão
Livros
e Publicações
1964.
Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvão
Edições Clima
1994
Os
que não foram presos
MARIA
CONCEIÇÃO PINTO DE GÓES
(Mestre em História, Professora da
UFRJ, ex-Sub-Reitora de Graduação
da UFRJ, Pesquisadora, Escritora)
Convidada a documentar a experiência
vivida em 1964, Conceição
declarou textualmente o seguinte:
“O golpe militar de 1964,
como dizia um amigo, foi um incêndio
em nossas vidas. Tanto ao nível
pessoal quanto ao nível político.
Colocamos os amigos em uma peneira,
muitos não passaram. Mas os que
passaram estão fortalecidos por
uma amizade indescritível. Ainda
hoje não sei o que foi mais difícil,
se ver os parentes e amigos serem arrancados
de suas casas, ouvir as ameaças
de prisão, ter que responder
às perguntas das crianças,
pôr a mão no ventre e com
doce ternura acalmar o filho que se
enrijecia como cristal de pedra em sua
fragilidade de suportar um mundo que
lhe vinha ameaçador através
do cordão umbilical, engolir
o choro e comparecer diante de uma comissão
de inquérito para ouvir ameaças
e idiotices. Mas, quando me vêm
essas lembranças que são
dolorosas, eu sinto mais forte a presença
de amigos como Roberto Furtado, Paulo
Rosas, Aécio Aquino, Argentina
Rosas, Terezinha Aquino, Bernadete e
Cláudio Ramalho, Leide Moraes,
José Pacheco e Nenen, Sileno
Ribeiro de Paiva e Cristina, a presença
solidária da familia, irmãos
e cunhados. Mas devo destacar, entre
todos. Leônidas, mais carinhosamente
Leon, meu irmão que, em sua conhecida
generosidade, jogou tudo para o alto
e grudou em mim. De manhã, bem
cedinho, ao som do "bigorrilho",
lá íamos nós procurar
notícias, pegar atestados das
figuras importantes da cidade, políticos
ou intelectuais, que afirmassem que
o trabalho da Prefeitura não
era subversivo. Leon sempre soube que
aquilo era inútil mas me deixava
calma e com sensação de
estar ajudando aos presos.
Nem sempre fomos bem-sucedidos. Alguns
intelectuais que freqüentavam a
casa de Djalma Maranhão e os
palanques da Prefeitura recusavam-se
a atestar alegando não conhecerem
a fundo os problemas da Prefeitura.
Foi assim com Luís da Câmara
Cascudo, quando pedi-lhe um depoimento
sobre o trabalho cultural da Diretoria
de Documentação e Cultura,
com o qual tantas vezes havia colaborado.
Leon acompanhou-me à Prefeitura
onde prestei depoimentos à Comissão
de Inquérito que apurava a “subversão”
na área do municipio de Natal.
Era noite e eu tinha muito sono. Na
entrada encontrei o coronel Mário
Cabral, da Policia Militar, que era
amigo de Djalma. Ele tentava me orientar:
"Diga somente sim ou não.
" A acusação, até
hoje, é para mim uma incógnita.
Não sei se me acusavam de participar
de discussões em sindicatos,
de ser casada com Moacyr de Góes,
de ser vice-diretora do Ginásio
Municipal, de ter assistido as discussões
da Cartilha de Alfabetização
de Adultos, da criação
de Comitês Nacionalistas e, finalmente,
de ajudar, ultimamente, as mulheres
de outros presos. Enfim, o Dr. Otto
de Brito Guerra escreveu uma brilhante
defesa e me deixaram com a recomendação
de ficar quieta. Assim, às pessoas
que me procuravam eu sugeria que procurassem
D. Eugênio Sales, arcebispo de
Natal.
Nem sei quantas vezes fui ao Recife,
em busca de contatos. Tinha sempre a
sensação de carregar água
num cesto. Mas, Leon e eu nos divertimos
algumas vezes. Lembro um dia em que
foi celebrado um Te-Deum, quando encontramos
uma antiga professora, portando uma
bandeira nacional e uma fita de filha
de Maria, tiramos um “fino”
com o carro,a mulher com bastante agilidade
subiu a calçada sem entender
os nossos gritos de: "Sai da frente,
maluca!" Outras horas em que era
impossível não se ter
esperanças, conversara com Dona
Jacira Furtado, uma mulher absolutamente
extraordinária, honesta, sincera,
que contava as suas experiências
de 1935 com inteligência e bom
humor. E houve um momento de grande
felicidade, o nascimento de Leon, meu
filho. Dr. Leide e Leon, meu irmão,
carinhosos e comovidos. A ausência
do pai já anunciada ameaçadoramente
pelo Veras e pelo capitão Lacerda,
quando diziam: “Prepare-se para
ter o filho sozinha."
O mais difícil estava por vir
para mim. Sair de Natal e deixar meus
filhos, um com apenas três meses.
Isso foi demais. Uma saudade nunca mais
curada. Ainda vejo os seus rostinhos
contraídos, no momento de despedida
e aquela sensação que
podia ser a última vez.
TEREZA BRAGA
(Advogada, Vice-Presidente da Comissão
de Defesa do Menor, ex-advogada da Comissão
de Justiça e Paz da Paraíba)
BERENICE FREITAS
(Advogada, escritora)
Em
1964, a advogada Tereza Braga era ainda
universitária. Conforme relata, ficou
impressionada com o processo cultural deflagrado
em Natal, pelo então prefeito Djalma
Maranhão. Como universitária,
engajou-se na luta estudantil, conheceu
o professor Luiz Maranhão,
de quem se tornou amiga, filiou-se à
União Nacional de Estudantes e ingressou
no Partido Comunista Brasileiro, exercendo
a militância junto à classe
operária e ferroviária.
Na semana anterior ao golpe militar, Luiz
Maranhão fez-lhe a seguinte advertência:
“Tereza, você se prepare. Você
é tão criança e está
acontecendo uma coisa gravíssima:
o produto interno bruto zerou. Há
uma cumplicidade entre as forças
de extrema esquerda e extrema direita. Nenhum
país resiste com o PIB a zero e as
greves que se fazem estão empurrando
o Brasil para um golpe de extrema direita.”
Tereza não se preparou, não
se tocou nem mesmo com o susto que tomou
quando, na noite escura de 31 de março,
descendo do carro de Paulo Oliveira, na
Praia do Meio, em frente à residência
do médico Vulpiano Cavalcanti, pisou
num corpo estendido sobre a calçada,
verificando que se tratava de um militar
em exercício de treinamento, Pelo
menos, foi o que supôs, pois muitos
outros militares encontravam-se estendidos
sobre as calçadas que, àquela
época, eram quase desertas.
Na manhã de 1° de abril, ouviu,
através de um rádio, a leitura
da nota oficial do prefeito Djalma Maranhão,
em defesa da democracia e denominando a
prefeitura "QG da Legalidade".
Colocou na bolsa uma escova de dentes e
dirigiu-se à prefeitura, onde se
encontrava, à noite, quando sofreu
o impacto da invasão pelas tropas
militares. Tereza lembrou aquela noite com
certo nervosismo, relatou que estava sentada
na ante-sala do gabinete do prefeito, conversando
com Berenice Freitas. quando ouviu os passos
fortes e cadenciados da patrulha do Exército,
subindo os degraus da escada. Os militares
entraram gritando: “Pra fora, cambada
de comunistas filhos da puta!” Com
o susto, Tereza levantou-se. Um militar
obrigou-a a sentar e proibiu que saísse
do lugar. Ficou sentada com Berenice ouvindo
os gritos dos militares na invasão
do gabinete. Viu um oficial sair, levando
pela gola do paletó o sindicalista
Evlim Medeiros. Como todos os demais, as
duas jovens universitárias foram
expulsas da prefeitura, sob a mira das metralhadoras,
em seguida levadas pelo amigo Yaponi Galvão
para uma residência, onde passaram
a noite sem, no entanto, conseguirem dormir,
pois a dona da casa sofria de delírios
por trauma da intentona comunista de 1935
e gritava: "Os comunistas estão
chegando! Os comunistas tomaram Natal!"
Não estivessem com tanto medo, poderiam
ter se divertido com a coincidência
de humor negro.
No dia seguinte, Tereza e Berenice tentaram
articular-se com os companheiros da Rede
Ferroviária mas foram informadas
de que estavam sendo procuradas por uma
patrulha do Exército, orientada pelo
engenheiro daquela repartição
Marco Aurélio Cavalcanti de Albuquerque.
Escaparam com a ajuda de uma senhora humilde,
auxiliar do Patronato das Rocas e do amigo
Querubino Procópio de Moura, que
as levou para a granja de outro amigo.
Do esconderijo na granja, seguiram para
a cidade paraibana de Sapé, à
procura dos camponeses do partido comunista
que, supunham, estariam resistindo ao golpe
militar. Desamparadas e desinformadas, encontraram
o partido desarticulado, os companheiros
presos ou desaparecidos. Desesperançadas
e sem ajuda, deixaram Sapé e seguiram
para Campina Grande, onde Tereza oxigenou
os cabelos, passou a chamar-se Raquel e
viajaram, ela e Berenice, para refugiarem-se
em Fortaleza.
Tereza comenta, graciosamente, que foi o
"Sancho Pança natalense de 1964."
Em Fortaleza foi descoberta por um companheiro
de partido, que a reconheceu na saída
de um cinema e gritou o seu nome verdadeiro.
Enfrentando todas as dificuldades previsíveis
àquela época, fugiram para
o Rio de Janeiro, onde conseguiram trabalhar
no comércio. Lá, Berenice
asilou-se na Embaixada do Panamá.
Tereza voltou para Campina Grande, onde
permaneceu até conseguir habeas-corpus,
para responder o processo em liberdade,
em Natal. No 16° Regimento de Infantaria,
quando foi interrogada pelo capitão
Ênio Lacerda, sofreu ameaças
assustadoras; o capitão determinou
que os auxiliares dele se retirassem, pois
o que iria acontecer com ela não
precisava de testemunha. Os auxiliares retiraram-se,
mas ele apenas continuou, aos gritos, o
interrogatório, sentado à
sua frente, joelho com joelho, batendo com
um cassetete em uma das mãos. A sessão
foi longa exaustiva.
Novo habeas-corpus foi requerido
pelo advogado Carlos Varela Barca, concedido
pela unanimidade do Superior Tribunal Militar.
Assim, livrou-se, definitivamente, do processo.
Tereza concluiu a entrevista referindo-se
aos companheiros mortos e ao medo que aos
poucos, foi possuindo as pessoas que fugiam,
perseguidas pela ditadura. Falou, pausadamente:
"Já não éramos
seres humanos, éramos ratos escondidos"
Os episódios mais dramáticos
que viveu são narrados por ela com
incrível reserva de resistência
e a mesma saudável alegria que sempre
a caracterizou. Lembrou, por fim, uma noite
em que estava escondida no Rio de Janeiro,
juntamente com Berenice, debaixo de um grande
temporal, quando tocaram a cigarra do quarto
onde moravam. Observou, pelo visor, que
era um militar. Apavoradas, combinaram abrir
a porta e gritar mas, ao fazê-lo,
o medo foi tamanho que emudeceram. O militar
queria, apenas, retira-las do prédio,
ameaçado de desabamento...
Tereza concluiu a entrevista falando do
poeta Sanderson Negreiros e da solidariedade
por ele prestada a companheiros que se encontravam
no Rio de Janeiro, quando o poeta, em 1965,
trabalhava na revista "Manchete".
Sanderson, em Natal, respondeu a inquérito
na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, sob a acusação de haver
criticado o regime militar.
GILENO GUANABARA
(Advogado, Conselheiro da Seccional da Ordem
dos Advogados do Brasil no RN, Procurador
Municipal, ex-Secretário Municipal
de Cultura)
O advogado Gileno Guanabara, em 1964, presidia
o diretório estudantil "Celestino
Pimentel" do Atheneu Norte-Rio-Grandense.
Convidado a participar das manifestações
de repúdio pela visita do embaixador
americano Lincoln Gordon ao Estado, que
era, também, representante do programa
de distribuição de dólares
na América Latina, denominado "Aliança
Para O Progresso", assinou um manifesto
em nome dos estudantes e despertou para
a luta em defesa da soberania nacional.
Engajando-se
na política, convivendo e admirando
o professor Luiz Maranhão
Filho, filiou-se ao Partido Comunista. Como
assessor do gabinete do então secretário
municipal de educação e cultura,
professor Moacyr de Góes, conheceu
a campanha "De Pé no Chão
Também se Aprende a Ler" e assistiu
às reuniões de trabalho, com
a presença do prefeito Djalma Maranhão
e responsáveis pela campanha. Sua
militância política era, no
entanto, exercida no meio estudantil secundarista.
Na manhã de primeiro de abril, já
deflagrado o golpe militar, promoveu, com
os estudantes do Atheneu, um ato público,
talvez o único que aconteceu naquele
dia em Natal, e levou os estudantes em passeata
até a prefeitura municipal, já
denominada pelo prefeito, "QG da Legalidade".
Na prefeitura, os estudantes dispersaram-se,
sem incidentes.
Encontrava-se no gabinete do prefeito, quando
aconteceu a invasão pelo Exército.
Ficou muito assustado e espantado por ver
um oficial do Exército gritar "filhos
da puta" para todos os presentes, inclusive
senhoras.
Com a prisão de Djalma logo no dia
seguinte, Gileno tratou de se proteger e
foi levado pela família para a cidade
do Recife, onde ficou por seis meses vivendo,
ainda adolescente, o sobressalto de ficar
escondido para escapar da prisão
militar em uma crise política que
não podia, ainda, entender.
Voltando a Natal, matriculou-se novamente
no Atheneu. No início de 1965, foi
levado de sua residência por oficiais
do Exército, para o 16° Regimento
de Infantaria, onde foi interrogado durante
oito horas seguidas e liberado.
Denunciado pela Auditoria Militar do Recife
no mesma processo em que estavam outros
estudantes, entre eles Marcos Guerra, Danilo
Bessa, Geniberto Campos, lvan Sérgio
e Esdras Alves, foi excluído do mesmo,
por um habeas-corpus, requerido pelo professor
Otto de Brito Guerra, em benefício
de Marcos, seu filho, e que, por extensão,
beneficiou os demais, por inépcia
da denúncia.
Como todos os indiciados, Gileno foi também
marcado pela perseguição e
pela discriminação profissional
e social nos vinte anos da ditadura militar.
NATANIAS
VON SHOSTEN
(Advogado, Procurador autárquica
federal aposentado, ex-Secretário
Estadual de Planejamento, segundo suplente
de Senador pelo PMDB)
O advogado Natanias von Shosten, líder
estudantil nos anos sessenta e secretário
da União Nacional de Estudantes por
um ano, exerceu, com vinte e dois anos de
idade, o cargo de chefe de gabinete do prefeito
Djalma Maranhão, no período
de 1962 a janeiro de 1963, afastando-se
da SUDENE passando a residir no Recife,
onde se encontrava quando aconteceu o golpe
militar.
Noivo de Sacha, filha do líder comunista
Hiram Pereira, político natalense
com militância no Estado do Pernambuco,
sofreu o drama da família por sessenta
dias quartéis do Recife, pressionando
para descobrir onde se encontrava o sogro.
Hiram era o responsável pelo setor
gráfico do Partido Comunista Brasileiro
e conseguiu viver na clandestinidade até
o ano de 1965, quando for preso no Estado
de São Paulo, onde desapareceu.
Saindo da prisão, Natanias enfrentou
a perseguição política
na SUDENE, de onde foi demitido. Com outros
companheiros, foi processado e denunciado
por haver participado de uma articulação
de líderes do PCB, por cujo processo
esteve preso por mais sete dias. Solto para
responder o processo em liberdade, transferiu-se
para o Estado de São Paulo. Falando
dos sete dias de prisão por haver
participado de uma reunião comunista,
lembrou o absurdo das prisões dos
companheiros de Natal que, sem nenhuma acusação
formal e sem atos condenatórios apresentados
nos processos, ficaram meses e meses nas
celas dos quartéis.
Apesar de toda a competência técnica.
Natanias teve a vida profissional desarticulada
por muitos anos, durante a ditadura militar.
No mês de setembro, quando ainda se
encontrava no Recife, foi informado por
uma estratégia de medicina que Djalma
Maranhão encontrava-se doente, no
Hospital Geral do Exército. Através
de uma irmã, iniciou contato com
o ex-prefeito. a quem deu a possível
assistência.
Em novembro Djalma conseguiu habeas-corpus
e mandou chamá-lo. Com a esposa Sacha
foi em busca do amigo, cujo encontro ele
comenta que foi muito afetivo e alegre.
Djalma pediu que ele procurasse o advogado
Roberto Furtado e tentasse ajudar os demais
presos de Natal. Em São Paulo, recebia
notícias de Djalma através
de brasileiros que passavam por Montevideo.
A última notícia chegou através
de um cartão, que ele diz ter sido
comovente, onde Djalma, cheio de saudade,
considerava-o “irmão mais velho
do filho, Marcos.” Em São Paulo,
Natanias mantinha-se informado sobre a tragédia
da tortura e o desaparecimento nos quartéis
dos diversos presos políticos. Consciente
da dignidade dos perseguidos de 1964, fala
da experiência humana dolorosa de
“alguns momentos em que se pensa que
se vai partir, romper, despedaçar.”
E, também, da muita beleza humana
e solidariedade que compensava a degradação
de tantas outras pessoas fracas e acovardadas.
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