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Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvão
Livros
e Publicações
1964.
Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvão
Edições Clima
1994
Interrogatório
Na
tarde do dia 8, encontrava-me na residência
de uma irmã, nas imediações
do 16° RI, quando chegou, muito assustada,
a minha filha, acompanhada por militares
do Exército, armados com metralhadoras
para me levarem. Não deram explicações
e, sem palavras, conduziram-me a um jipe
e mandaram-me sentar no banco traseiro,
entre dois soldados que não conseguiam
acomodar bem as suas armas. Sentados na
frente estavam o motorista e um oficial.
Aquela cena de tragicomédia já
se tornara comum pela cidade mas fiquei
muito assustada.
Na saída da casa, crianças
que brincavam na área com meu sobrinho
Marcos Frederico perguntavam-lhe, surpresas
e amedrontadas: “Sua tia é
comunista?” As perguntas ficaram sem
resposta, mas no meu sobrinho ficou o medo,
a dúvida e o espanto.
Em 1964 muitas crianças foram marcadas
pelas imagens de terror do anticomunismo
e de pessoas queridas levadas sob a mira
das metralhadoras.
Até chegarmos ao 16° RI, que
não ficava distante, minha emoção
era indefinida. Espanto, medo, raiva e tristeza
misturavam-se. Tentei com dificuldade, ficar
calma e assumir o papel que me cabia naquela
trapalhada que ainda não podia entender.
Não conseguia mesmo compreender que
esperassem de mim um ato de terrorismo ou
de preparação de guerrilha
e que pertencesse ao Partido Comunista,
como eram acusados, naquele momento, os
que trabalhavam com Djalma Maranhão.
Chegando ao quartel, conduziram-me ao primeiro
andar, para uma sala de onde vinha saindo
uma cantora de festas populares promovidas
pela Prefeitura. A moça estava chorando
muito. Realmente, era impossível
compreender quais os critérios adotados
para aquele aparato militar de investigações.
A prisão de Luiza de Paula, uma jovem
de vida simples, sem vinculações
políticas nem participações
na administração municipal,
pareceu-me incrível e me senti participante
de uma farsa grosseiramente surrealista.
Entrei na sala do interrogatório
levada pelos mesmos soldados armados que
me prenderam. Entregaram-me a dois oficiais.
O mais graduado continuou sentado atrás
de uma mesa; aparentava calma. O outro,
porém, estava irritado e inquieto.
O capitão indicou-me uma cadeira
para sentar. O tenente pediu minha bolsa
e, num gesto brusco, esvaziou-a sobre a
mesa. Iniciava-se o primeiro dos seis interrogatórios
que respondi em diversas comissões
de inquérito.
Consciente da gravidade daquele momento,
procurei manter a calma e lutar para continuar
livre. A situação, no entanto,
era excepcional e imprevisível. As
condições de defesa de um
suspeito eram mínimas diante da força
arbitrária dos Atos Institucionais
pelos quais éramos julgados. O tenente
queria descobrir onde estavam escondidos
os meus documentos subversivos. Momentos
antes, quando me procuraram, invadiram minha
residência, armados com fuzis e metralhadoras,
revistaram todos os cômodos da casa
e, no meu quarto, mexeram até nas
caixas de absorventes íntimos. Levaram
apenas alguns livros, entre eles “Guerra
e Paz”, de Tolstoi, “O Diabo”,
de Papini, “O Vermelho e o Negro”,
de Stendhal e “Nosso Homem em Havana”,
de Graham Greene. Insistia que eu fazia
parte de uma organização terrorista
que preparava uma revolução
armada para implantar o comunismo no país.
As coisas se passavam como num teatro. Parecia
que todos representavam. Do ato de terror
passamos à tragicomédia quando
o tenente, nervoso, supôs encontrar
em meus pertences a pista que procuravam
para me incriminar. Leu um soneto do poeta
Ledo Ivo, que se encontrava em minha bolsa,
intitulado “Soneto de Abril”
e considerou que os versos “Agora
que é abril e o mar se ausenta /
secando-se em si mesmo, como um pranto”
eram uma senha preparada pelos guerrilheiros
da esquerda para, naquele mês, desencadearam
uma luta armada. Foi muito difícil
argumentar e meu espanto era enorme. Sequer
podia rir da loucura do tenente. Além
do mais, ele exigia respostas imediatas,
pisava duro ao caminhar em redor da mesa,
falava sem entender sobre os livros das
bibliotecas populares, sobre a campanha
“Dé Pé no Chão
Também se Aprende a Ler” e
voltava ao “Soneto de Abril”.
Eu vivi a desagradável coincidência
de tanto naquela sala.
Já estava cansada do interrogatório
quando o tenente, num entra-e-sai da sala,
informou, irritou, que minha filha encontrava-se,
ao lado da porta, com uma crise de choro.
Conseguiu, com isso, deixar-me no limite
do nervosismo e preocupação.
Sem mais controlar a raiva, esqueci o medo
e apelei ao capitão para que afastasse
o tenente e assumisse, ele próprio,
o interrogatório. O capitão
Moura Costa, que se mantinha calado, dispensou-se
e encerrou a sessão.
Eram quase 18 horas quando saí da
sala e encontrei Dilma chorando. Meu irmão
León esperava no pátio do
quartel. Senti vergonha e tristeza diante
dele e da nossa humilhação.
Por uma suspeita absolutamente infundada
e sem sentido, invadiam as residências,
prendiam pessoas e expunham as famílias
ao vexame das investigações
na vida pessoal e profissional. Perdia-se
a privacidade, o direito de defesa e a estabilidade
nos empregos.
A vida de todos os perseguidos foi desarticulada
tão de repente que precisávamos
de algum tempo para voltar ao mínimo
de normalidade. Nunca se sabia quantas pessoas
inocentes estariam, a qualquer hora, sendo
levadas presas e torturadas.
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