
Texto 3

El Pueblo Unido
Inti Illimani
Era
noite, muito tarde, nascia a madrugada. Ouvi um barulho intenso
no corredor, próximo à porta do meu apartamento; abri-a e
deparei-me com o vigia do prédio acompanhando o meu querido
colega Rivadávia Braz de Oliveira, Técnico em Desenvolvimento
Econômico (TDE), no Departamento de Industrialização da SUDENE,
admitido por concurso público; um advogado brilhante; um superdotado.
Martirizado,
pálido, esquálido, uma débil sombra, ao ver-me abraçou-me;
dispensei o vigia. Rivadávia, de calção, envolvido em um lençol,
queria esconder-se em baixo dos móveis. Afirmava que a polícia
e agent?es do Exército estariam escalando as paredes do edifício
para matá-lo. Os fantasmas de sua atordoada mente eram seus
algozes, em um complexo sistema delirante-alucinatório.
Afaguei-lhe
a cabeça; tombou e, ajoelhado, gritava: – “Mamãe, jogue-me
no Rio Parnaíba!”; “eu quero ir para as matas, eu quero ficar
com os animais”.
Eu,
com os olhos molhados diante daquela tragédia, ocultava no
meu interior soluços amargos. Queria libertá-lo daquele desespero.
Eu meus braços, já não estava um SER, e sim os escombros de
um homem. Como é doloroso ver um corpo vítima da violência,
cortado, queimado, violado, vilipendiado, em toda sua integridade.
Rivadávia estava morto, a alma em agonia. Não havia a unidade
de um homem. O golpe militar de 1964 – através de seus algozes
– o desintegrara.
A
repressão tinha reduzido Rivadávia em mil pedaços. Sua estrutura
de personalidade tinha sucumbido às torturas, e o que flui
de toda a unidade. Ainda respirava, seus sinais vitais estavam
preservados, mas agora só existia um físico que ocupava um
espaço envolto no tempo, em um tempo que decretava a morte
da alma, em uma eterna agonia.
Não
havia um homem politicamente – ideologicamente ativo. Em meu
?regaço existiam partículas desconexas. O Golpe de 1964 – através
de seus executores – o fulminou.
Meu
marido estava viajando. Francisca Leocádio – mãe de Júlio
Leocádio – e Maria Batista de Menezes, um anjo em minha vida,
me faziam companhia; providenciaram leite e tranquilizantes,
que docemente o meu querido visitante aceitou, com gemidos
abafados.
Eu
o havia visitado várias vezes no Hospital Geral do Exército
e, posteriormente, no manicômio, hoje Hospital Ulisses Pernambucano,
onde o encontrava deprimido, em pânico, sempre em posição
fetal.
Aparece
na sala Aradin, meu filho, com menos de dois anos de idade,
muito assustado. Presenciara toda a cena; coloquei-o no colo;
então, Rivadávia disse: – “Eles estão chegando”; adormeceu.
Meu
conflito naquele momento era de preservar o bem-estar do meu
único filho, ou lutar contra os abutres do poder, que costumam
enfestar a cena do social, seja na forma do chefe maior da
nação, sejam nos vermes que torturam os filhos de tantas mães
e pais anônimos no processo histórico. Cicatrizes, marcas
e traumas ficaram em Aradin, porém todos aprendem a viver
com suas dores; eu tinha que continuar apenas a cumprir a
minha participação no te?mpo e espaço que é o oferecido a todo
gênero humano.
Rivadávia
– piauiense como o poeta Da Costa e Silva – Rivadávia também
amava o Piauí, chegando a se confundir com o Rio Parnaíba.
Lembrei-me
de retalhos de um soneto de Da Costa e Silva, “Saudade”:
“Saudade!
Olhar de minha mãe rezando,
O
pranto lento deslizando em fio...
Saudade!
Amor de minha terra... O rio
Cantigas
de águas claras soluçando...
Saudade!
Asa de dor do Pensamento!
Saudade!
O Parnaíba – velho monge
As
barbas brancas alongadas ao longe,
O
mugido dos bois da minha terra...”
Parei.
Já não lembrava todo soneto.
O
meu rosto tingido de ansiedade retratava as minhas angústias
pelo amigo “triturado” e pelo filho que naturalmente absorvia
e se traumatizava com repetidas cenas de dor.
Mais
uma vez lembrei-me do poeta Da Costa e Silva:
“Vida
cruel – Hacédama de Abrolhus
Onde pleno com os olhos rasos d’água
Tendo a dor a boiar dentro dos olhos”.
Quando
o dia amanheceu, chegaram dois amigos de Rivadávia, com roupas
para ele, e, depois de conversarem muito, o levaram; abracei-o
com a certeza de que meu colega jamais resgataria a sua identidade.
Tomei
conhecimento de que um irmão daquela vítima da crueldade do
Golpe de 1964 – Tonico (Antônio de Oliveira Lopes) – veio
apanhá-lo e levou-o para residência de seus pais, em Teresina.
No
Piauí, perambulava pelas ruas, corria pelas estradas, como
um pássaro que lhe cortaram as asas, e buscava a liberdade,
o grande vôo para o infinito.
Tentou
suicídio várias vezes, inclusive mergulhando no Rio Parnaíba.
Finalmente
a paz, em 11.06.1996. Rivadávia falecia.
“Feliz
a criança que expirou no dia do nascimento!
Mais
feliz ainda o que não veio a este mundo...”
(Rubáiyát).