
Texto 1-
Inédito

Alfonsina Y El Mar
Mercedes Sosa
Marcada
pela tragédia, a miséria moral, a covardia, a falta de segurança.
Eu ia andando devagar, machucada pela incerteza (a vigília constante
em meu viver), pela margem do Rio Capibaribe. A minha relação
com o mundo era tumultuada; eu me sentia só. Nada restava de
fé em mim; aquela chama ardente havia se apagado, mas não queria
morrer; eu precisava viver.
Sentei-me
na pequena murada que ladeia o Rio Capibaribe e pensei: passa
o tempo ou passa a vida?
Deus – que tinha impregnado em todo meu ser semente plantada
carinhosamente pelas sacramentinas – ou Ele não existia, ou
me abandonara. Eu, oprimida, ameaçada de morte, cheia de angústia,
angústia que até hoje
minha companheira. Apesar de minha profunda tristeza,
racionalizei: - não posso parar! Lembrei-me da meiga, porém
firme Irmã São Carlos, dizendo-me: - não chore em público; não
deixe nenhuma obra pela metade; não transpareça a sua dor; seja
altiva!
Certa
estava aquela mestra: o tirano não se comove com a dor do próximo,
não sensibiliza com choro de um criança. Quantas vezes
vi oficiais fazerem chacotas com as mães desesperadas, esposas
enlouquecidas de dor...
Lágrimas
não amassam a crueldade, e sim a alimentam” (Publilius Syrius
– escritor latino).
Olhava
e não via o curso do rio; não via os transeuntes. Voltei à realidade
com minha amiga Chica Leocádio me tocando levemente no ombro:
levantei-me e segui-a em silêncio para casa. Era 20 de janeiro
de 1972
No
dia 21 de janeiro de 1972, acordei-me e recomecei a rotina de
sempre: processos, auditoria... As 11 horas, fui procurada por
uma moça que, aflita, me pedia para localizar Leonardo Mário
de Aguiar Barreto. Eu o conhecia. A mãe de Leonardo – Professora
Raimunda de Aguiar – mulher honrada e trabalhadora – e o pai,
Luiz Corrêa de Sá Barreto, também eram meus conhecidos. Leonardo
sempre se envolvia em pequenas confusões, apesar de ser pai
de vários filhos.
Perguntei,
então, àquela moça que procurava por Leonardo:
–
o que foi agora?
–
Foi preso, por participar de um bando de terrorista.
Não
acreditei. Voltei a perguntar-lhe:
–
conhece algum nome?
–
Sim. Samuel, Zé Pedro, sei lá...
Parei.
Lembrei-me de Samuel Firmino de Oliveira, que havia sido preso
em março de 1970, como também José Pedro da Silva, e pertenciam
à Aliança Libertadora Nacional (ALN), partido que tinha muita
cautela, ao lidar com os membros.
Pensei:
derreteu-se a ALN como sorvete no fogo. Sabia que Leonardo era
um fraco, não tinha cultura política. Acertei. Atônita, controlei-me;
comecei a pensar: – como
posso avisar se não conheço nenhum aliado do grupo?
Aos
poucos, fiquei sabendo que Leonardo havia sido preso por policiais
civis e militares em um bar na rua Floriano Peixoto, próximo
à Casa de Detenção do Recife (hoje Casa da Cultura), acompanhado
de duas prostitutas – Marlene Malagueta e outra, sob a acusação
de ter roubado um carro estacionado próximo ao local do bar
onde bebia.
Conduzido
ao pátio externo da Casa de Detenção, foi barbaramente torturado,
depois transferido para a Delegacia de Furtos de Veículos, finalmente
para o DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social).
No
amanhecer do dia 22 de janeiro, Leonardo conduziu os abutres
do golpe de 1964 para Campina Grande, e, ao chegarem à residência
onde deveriam estar os familiares de Calistrato, haviam se mudado.
A vizinhança não informou para onde tinha ido o pessoal, a solidariedade
do povo, o protesto silencioso...
A
cambada de celerados, orientados por Leonardo, se guiara para
um apartamento, onde morava um amigo das irmãs de Calistrato.
Toda a vizinhança acordou com disparos de arma de fogo, inclusive
rajadas de metralhadora; foi um pânico geral; prenderam Firmino
Azevedo de Almeida; algemaram Firmino, que não tinha envolvimento
político, era simplesmente amigo da família de Calistrato.
Finalmente
chegaram à residência das irmãs de Calistrato. Bateram à porta.
Maria Lenita Agra veio atender e foi logo esbofeteada e presa.
Maria do Carmo – também irmã de Calistrato – foi algemada. Eram
três horas da manhã; os gritos das jovens chegavam aos demais
moradores da rua, que, cheios de amargura, estavam impotentes
para defenderem as amigas, da sanha dos gênios demoníacos.
No
dia 23, Leonardo guiou a caravana de sádicos até a casa onde
provavelmente estaria Isanuse – a doce e meiga Isa – namorada
de Calistrato. A residência foi invadida; móveis quebrados,
Isanuse algemada, espancada por oito homens; a roupa rasgada
e os seios queimados com charutos, para revelar onde escondia
o namorado. Nada, nenhum som, a não ser gemidos e gritos; debatia-se
revoltada.
“A
revolta é a nobreza do escravo” (Frederico Nietzsche).
De
súbito, a jovem desmaiou, mas não traiu.
Regressaram
a Recife. Os presos foram levados para o DOI-CODI, conhecido
como os umbrais da ditadura. A Casa Morte, instituição clandestina,
paralela universalmente conhecida pelos horrores que ali eram
praticados.
Mesmo
assim, Isa foi colocada no pau de arara, entrou em convulsão
e deslocou um braço, mas não traiu. Ainda hoje tem seqüelas.
Os
torturadores sentiam necessidade de ver sangue; babavam no nefasto
sanguinolento; entravam em orgasmo.
As
14 horas do dia 24, conversavam na sala de um apartamento, na
Av. Getúlio Vargas. em Olinda, Calistrato Cardoso, João Mendes,
Maria de Lourdes Silva e Marluce, quando as portas do apartamento
foram arrombadas por um grupo de policiais da segurança pública
(DOPS). Calistrato reagiu, apesar de ferido; tentou fugir, alcançando
uma Rural Willis; foi atingido por mais três projéteis, quatro
ao todo, preso, algemado e levado para a tortura.
O
vermelho do sangue denunciava a magnitude da chacina, dentro
do apartamento. As paredes da residência estavam cheias de perfurações
de balas; os ancestrais do inferno riam e detonavam as armas;
a caravana por onde passava deixava valas, homens cuja a alegria
primeira era a morte, esqueciam a transitoriedade do poder.
Os
moradores do prédio gritavam, apavorados, inertes, tomados do
pior medo, o medo político. As crianças choravam, mas nem mesmo
o choro das crianças sensibilizava os algozes.
As
roupas dos policiais com respingos de sangue humano e, mesmo
assim, devoravam algumas frutas que encontraram na cozinha.
João
Mendes de Araújo, mesmo baleado, correu para a praia; era férias; havia jovens tomando banho, outros jogando bola, vários tipos de
lazer. Fez-se silêncio; apenas o sol brilhou com mais intensidade;
o firmamento iria ganhar mais uma estrela.
Perseguido
pelos policiais, ferido, com o dorso desnudo, atirou-se ao mar,
ofegante, já sem poder nadar. Continuou adentrando o oceano,
pelas águas azuis, e os policiais atirando; formou-se uma grande
rosa vermelha do sangue do guerreiro; João Mendes submergiu;
a malta assassina ria e atirava para o alto, apavorando os banhistas.
A
dor viva, a dor profunda, a dor humana
me dilacerava interiormente, diante da
crueldade do regime. Serviam combustível
para a minha luta, a vontade firme de
prosseguir já era urna obsessão.
Belizário,
em seu livro de poesia “Cartão de Natal”, cantando o peixe espada,
diz:
“Se
entregue,
se
quiser ser massacrado”.
E,
mais adiante:
“não
se deixe apanhar sem resistência”.
Prossegue:
“O
peixe espada na corrente luta,
Na
alegria da disputa,
A
vida vale a luta que contém.
Resista
Há
um avanço em resistir,
Não
deixar cair
Um
projeto de mundo que aí vem”.
0
verdadeiro homem tem que ter passado, não pode calar, se é silenciado,
o companheiro rompe o silêncio e fala.
Em
26.01.72, Leonardo tinha um ponto (encontro) com Aluísio Valério
da Silva, na Praça de São José das Salinas. Foi acompanhado
com três viaturas, lotadas de policiais, entregar o amigo. Valério
pensou em não ir ao encontro; não sabia da prisão de Leonardo;
sabia apenas de Calistrato. Preocupado com o companheiro, foi
encontrá-lo, para avisá-lo de que fatos estranhos estavam acontecendo.
Ao chegar na praça, avistou o companheiro, pressentiu o perigo,
dirigiu-se a uma parada para aguardar um coletivo com tranquilidade.
No primeiro ônibus que apareceu embarcou. Vinte metros depois,
os veículos policiais interceptaram o ônibus: agentes do DOI/CODI
invadiram-no e arrastaram Aluísio VaIério, já espancando-o;
alguns passageiros protestaram; receberam socos, e, em plena
via pública, diante de populares, continuou a violência contra
o prisioneiro.
A
noite, recebi a Senhora Caetana, mulher tranquila, mas estava
fatigada, talvez interiormente em conflito. Apresentou-se como
mãe de Aluísio Valério; disse-me: – não quero milagre, doutora;
não se agaste por mim; somos mães – vamos nos entender; quero
apenas que adote meu filho e defenda-o com compreensão e ternura;
acredito que ele não morrerá nas mãos desses homens ruins; eles
irão bem primeiro do que meu menino: Deus já me respondeu: ele
viverá! Na verdade, Aluísio está vivo, é advogado, tem filhos
e trabalha.
Fui,
no dia 27 daquele janeiro triste, à Auditoria do 7º Regimento
Militar.
Ao
adentrar o fórum militar, encontro Boris Trindade, colega muito
querido, que sempre me orientava na condução dos processos,
e me ensinava a malícia que deveria ter o advogado. Foi logo
me abordando: – “que bicho te mordeu?”. Disse-lhe do meu desgosto,
da minha tristeza com a violência nas prisões, as torturas,
as mortes. Deu um murro na mesa: – “deixe de frescura; nós estamos
numa ditadura militar, você acha que milico vai prender comunista
ao som de violino?. Olha em frente, que não muito longe esta
a anistia, e esta “merda” – referindo-se à Lei de Segurança
Nacional – será arquivada. Eu recebo os mesmos impactos que
você recebe, e não estou me derretendo. Mércia, nós somos a
esperança dos náufragos neste momento que vivemos; não se dobre!”.
Levantei-me,
envergonhada. Abracei e beijei meu amigo, meu irmão de luta
legal. Já não sentia o desgosto silencioso na garganta. Acendeu-se
em mim uma força feroz.
Abandonei
o riso de descrença de Sara, mulher de Abraão. O riso de descrédito.
Sara, por se sentir velha, e o marido, centenário para conceber
um filho, que acabara de ser anunciado por um anjo (Gênesis,
18:12). E eu pela descrença, na queda da ditadura, na Anistia,
cujo primeiro grito fora dado pelo Deputado Federal do MDB de
Pernambuco Sérgio Murilo Santa Cruz Silva, em favor do Presidente
Juscelino Kubstcheck, no 15º Aniversário de Brasília. Surgiu
um outro grupo do qual participei: queríamos anistia geral,
ampla e irrestrita, mas a proposta de Sérgio Murilo procurava
abrir caminho para o objetivo do nosso grupo. Lembro-me de Teotônio
Vilela, Airton Soares, Marcos Freire, Alencar Furtado e outros.
Após sete anos, em 28 de agosto de 1979, o grito da história.
ANISTIA – Lei 6.683/79. Voltando ao dia 27 daquele janeiro,
as prisões continuaram, contra qualquer pessoa que pelo menos
conhecesse componentes da ALN.
Maria
da Conceição Correia Lyra e a irmã, Maria Betânia Correia Lyra,
foram presas em 27 de janeiro. Eram amigas das irmãs de Calistrato
e de Isanuse. Vieram conhecer as moças junto com um grupo de
amigas. Fizeram em seu aniversário um “assustado” (festa surpresa)
de Maria da Conceição Correia Lyra, que, pouco tempo depois,
começou a namorar com Eduardo, mas logo depois veio acabar a
relação afetiva, porque descobriu o envolvimento político de
Eduardo e ficou apavorada.
Sofreram
constrangimentos, apanharam, foram algemados, passaram forme,
mas não foram torturadas como Marluce Gomes da Silva, Maria
de Lourdes Silva e Isanuse, a quem homenageio, pela sua bravura,
resistindo, sem delatar ninguém, sem ceder aos torturadores.
A primeira vez que nos encontramos estremeci, da agonia que
senti, com seu braço na tipóia, o rosto com equimoses; abriu
a blusa e os seios apareceram em chagas, várias bolhas, cicatrizes,
ferimentos abertos, queimaduras provocadas com charuto por agentes
do DOI/CODI.
Em
10 de fevereiro de 1972, o camponês Francisco Peixoto foi preso
na Fazenda Cacimbinhas, em Serrita, por agentes do DOI/CODI
– agentes da Delegacia de Segurança Pública. acompanhados de
Leonardo. 0 procedimento foi o dispensado aos outros presos.
O agricultor espancado, assistiu à depredação da sua casa.
Nesse
mesmo dia, a policia deslocou-se à Fazenda Ipoeiras, no Município
de Serrita. Invadiu a propriedade, danificou parte da plantação
diante dos camponeses e da mulher de Ivanildo Sampaio Xavier
– uma anciã com 84 anos, inválida em uma cadeira de rodas, assistiu
móveis e outros bens jogados no “terreiro”.
Leonardo
conhecia os familiares de Ivanildo, e, no dia 02 de fevereiro,
às 23:30 horas, Ivanildo foi preso na rua Conselheiro Nabuco,
na residência de familiares.
Logo
depois, preso José Walter de Oliveira, durante as sessões de
tortura teve dois dedos fraturados. Corno não recebeu cuidados
médicos, permaneceu com a mão paralisada, em virtude da lesão,
até hoje.
Encontrei-me
com Maria Saraiva
Xavier, meses depois, em lpoeiras; a mãe de Ivanildo. Beijei-lhe
as mãos, o que me foi retribuído com ternura; disse-me: – “Minha
galega, quando os macacos da policia estiveram aqui, quebrando
tudo, só senti estar inutilizada, para fazer o mesmo que fiz
com Tempero – cabra de Lampião – que matei com um só tiro”.
Argumentei que hoje a polícia era mais bem equipada. Ela riu
e respondeu: – “mas não conhece o sertão; eu morreria, e alguns
familiares, mas levaria uns três macacos”. Diante daquela matriarca,
ajoelhei-me para deixar-me impregnar pela força selvagem, e
passei-lhe a mensagem que o filho lhe mandara.
A
porta fechada da Justiça não permitia aos advogados erguerem
suas vozes, em favor dos prisioneiros.
Confunde-se
o mistério. Tinham medo os juizes, ou estavam de acordo com
os desmandos da ditadura?
Lembro-me
de poucos membros da Justiça com atitudes perigosamente independentes.
Dr. Agamenon Duarte, Dr. Gilberto Gondim, Dr. Waldir Bitu, Dr.
Nelson Souto. Muito poucos.
E
eu me lembrava do grande mestre Francesco
Carnelutti:
“A
justiça humana não pode ser senão uma justiça parcial; e a sua
humanidade não pode senão resolver-se na sua parcialidade. Tudo
aquilo que se pode fazer é buscar diminuir esta parcialidade.
O problema do direito e o problema do juiz é uma coisa só. Como
pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é? A única via que
lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: precisam
sentir-se pequenos para serem grandes” (“As misérias do Processo
Penal”, p. 34).
Defendi
vários militantes da ALN, como Jerson Maciel também, e outros
colegas.
Ainda
havia dúvida sobre quem delatar. Procurada pela mãe de Leonardo,
passei a defendê-lo em dois processos, denunciado com José Calistrato
Cardoso e Aluísio Valério da Silva. Comecei a ser informada
da realidade, juntando tudo cheguei a Leonardo, conclui os dois
processos que iniciara e passei os outros para Jerson Maciel,
tendo-o colocado a par de tudo. Jerson aceitou defendê-lo sem
nada cobrar.
Aos
poucos fui tomando conhecimento das fraquezas de Leonardo, da
grande delação, do detonador da queda da ALN em Pernambuco.
Holanda,
escrivão do DOPS, com cara de casa mal assombrada, ofereceu-me
mais dados para fechar a trágica queda da ALN em Pernambuco.
Após
trinta anos, para confirmar mais uma vez a caboetagem, conversando
com vítimas sobreviventes, contaram tudo que já sabia sobre
a conduta de Leonardo.
Permaneci
calada, não poderia dizer aos companheiros daquele ser o que
sabia; limitava-me a ouvir, e sempre que Leonardo quis falar
comigo, mandava recados, não atendi, não queria ouvi-lo, bastava
a amargura que já carregava, os gritos dos torturados, o odor
do sangue dos que vi morrer, a responsabilidade de legar a posteridade
parte do terror daquela época; a indignação penetrava em meu
ser, eu vivia um calvário, mas sabia que não deveria execrar
aquele banido das esquerdas.
Fim
de 1978 ou início de 1979, encontrei Leonardo casualmente na
rua; dirigiu-se para mim; a primeira lembrança foi Calistrato
no pau de arara. João Mendes e todos os outros que ele entregava.
Há tempo que esperava o confronto, a espera de vingar era minha
força, mas o desejo de vingar me apunhalava; estávamos frente
a frente. Eu silibando disse-lhe: –
“traidor assassino, eu sei de tudo, por acaso será mentira?”.
Meus olhos chispavam; uma tia que me acompanhava pediu-me calma.
Ele, numa atitude humilde, falou-me: “é,
tudo é verdade; respeito a senhora, admiro, mas não pode julgar-me”.
Com
um sentimento contraditório, de horror e piedade, fez um silêncio
histórico – ele quis tocar-me; afastei-me. “A senhora sabe o
que é tortura”. “Sei, vários clientes morreram, outros estão
mutilados, mas não falaram”. “Todos os homens não são iguais,
não têm a mesma origem, não têm o mesmo conhecimento político
que fortalece o militante. Eu não tenho nem baixo nível ideológico”.
Contou-me
os horrores que passou, pau de arara, ficar em pé numa barra
de gelo, ameaça de morte.
Fez-se
silêncio, compreendi que nem toda culpa lhe cabia.
Falou-me
ainda que teria deixado o convívio dos presos políticos, não
suportava as “lorotas”, e acusou José Pedro da Silva de ter
tentado agredir uma de suas filhas.
Lembrei-me
que mesmo preso, convivendo com os infratores da Lei de Segurança
Nacional, negociava com os policiais em troca de vis favores,
atingindo o objetivo de ir cumprir pena junto com os delinquentes
comuns.
Afastei-me
firme, indiferente, fingindo uma paz que não existia naquele
momento. Senti vontade de confortar aquela sombra que um dia
fora um homem.
Começou
de imediato pesar em meu julgamento; o recrutamento de Leonardo
poderia ter sido um erro. Era um aventureiro, que julgou se
dar bem, tirar proveitos, faltou – quem sabe – ao aliciador
maturidade na escolha.
Toda
sociedade estava consciente dos abusos, das torturas que eram
impostas aos que ameaçavam a ditadura.
Vários
segmentos dessa mesma comunidade denunciavam as atrocidades
que aconteciam nos porões dos golpistas.
Para
mim, pouco importam os caminhos que seguiram após a democratização.
Importa-me a posição que assumiram na hora certa, sobretudo
permaneceram no Brasil, se expunham denunciando, posso citar:
os Deputados Federais Fernando Lira, Sérgio Murilo Santa Cruz,
Alencar Furtado, Teotônio Vilela, Ulisses Guimarães, Jarbas
Vasconcelos, Waldemar Borges, o Arcebispo Hélder Câmara, os
Deputados cearenses Paes de Andrade, Ivanildo Pereira, o Deputado
paraibano Marcondes Gadelha, o Deputado paulista Freitas Nobre,
e tantos outros.
A
imprensa e a Igreja protestavam; as entidades internacionais.
Nenhum
torturador foi punido, todas as vítimas que não morreram ficaram
estigmatizadas.
“As
manchas de sangue não podem ser removidas com mais sangue; o
ressentimento não pode ser removido com mais ressentimento;
ele deve ser afastado com o esquecimento” (“A doutrina de Buda”
– Bukkejo Dendo Kyokai).
Ainda
não consegui apagar todos os ressentimentos.
Sinto
saudade, sofro, entristeço quando lembro dos amigos que se foram,
e vez por outra encontro os assassinos, nos caminhos da vida,
e relembro o passado.
As
vezes fico imóvel, serena como se aguardasse o retorno dos que
tiveram suas vidas subtraídas, mas por mais que espere eles
não chegam. A vida não é o que planejamos de repente. Vai mudando
o nosso caminhar e saímos da rota planejada.
Jamais
pensei em abandonar as crianças excepcionais que orientava,
para envolver-me em uma luta política, que iria consumir a minha
existência, mas aprendi a amar, lutar, expor a minha existência,
sacrificar a minha família por desconhecidos. Entendi que o
importante na vida é estar disponível, ser solidário. Mas é
uma utopia. Um dia – quem sabe – falarei mais.