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Insurreição Comunista de 1935

ÀS ARMAS, CAMARADAS!
A Insurreição Comunista e o Governo Popular de 1935 em Natal
Natanael Sarmento


O primeiro Governo Popular Revolucionário das Américas



Nos dias da sedição em Natal, foram grandes os transtornos. A confusão generaliza-se, depois do levante do 21º BC. Insegurança, com roubos, saques e incêndios. Temeridade de pessoas armadas e dos boatos. Os rebeldes ocupando e tomando quartéis, libertando presos, da Casa de Detenção. Alguns presidiários pegam em armas e aderem à revolução; outros, aproveitam a ocasião, saqueiam e roubam.

O tiroteio prolongado, no sítio do quartel da Polícia Militar, varando a noite do dia 23 e a manhã do domingo, 24, praticamente imobiliza a cidade. Ninguém, de bom senso, botava a cabeça na rua, as casas trancadas. As novas autoridades a baixar ordens e expedir boletins, fazer apelos e ameaças. As autoridades depostas, sumidas, em local incerto e não sabido.

Amálgama de temor, desconfiança e curiosidade, dos cidadãos comuns com o autoproclamado Governo Popular Revolucionário. E os inevitáveis pescadores de águas turvas, os safados aproveitadores de ocasião, a jogar as suas redes. Temerosos com a segurança, os comerciantes fecham os estabelecimentos. Os transportes públicos, declarados de uso gratuito, por decreto do Comissário da Viação, desaparecem. Transporte de bonde gratuito, porém, sem bonde para ninguém ser transportado. Nada funciona senão a difusora central de boatos. Notícias alarmistas por todos os lados, sem que se soubesse a origem. Roubos, invasões, estupros de moçoilas da Escola Doméstica, fuzilamentos, invasões. Os meios de comunicação sociais são precários, sem emissora de radiodifusão, jornais sem funcionar, telefonia cortada, restrita aos boletins espalhados na cidade, pelo governo popular, e aos boatos sabe-se lá por quem.

Os setores e locais estratégicos de Natal são ocupados, pelos rebeldes. Somente o quartel da Polícia Militar, teimosamente, escrevia capítulo diferente, combatendo e resistindo. Mas, a rendição da PM estava selada, sitiada militarmente, uma questão de tempo.

La Petite Russie referia-se à capital conquistada pelos comunistas o Jornal do Commércio . Durante a manhã desse domingo 24, o Comitê Regional do PCB em Natal reuniu-se, nas Rocas. Presentes, o cognominado Santa, negro filho de escravos, assistente do Comitê Central, o João Lopes que estudou em Moscou e era o mais experiente dos comunistas. Essa reunião do Comitê debateu e escolheu os nomes à composição do primeiro Governo Popular Revolucionário das Américas. Queriam o Santa na Presidência da Junta, mas a proposta foi recusada, pelo próprio. Incompatível com o papel de “assistente do CC”, estava ali para assistir. No anonimato, a eminência parda, prego batido e ponta virada. Os novos governantes, Comissários do Povo são: Lauro Cortês Lago, servidor da Polícia Civil, Ministro do Interior; João Batista Galvão, funcionário do Atheneu, Ministro da Aviação; José Macêdo, tesoureiro dos Correios, Ministro das Finanças; José Praxedes de Andrade, sapateiro, Ministro do Abastecimento e Quintino Clementino de Barros, sargento-músico do 21º BC, Ministro da Defesa.

O governo revolucionário, recém-constituído, nomeou o Presidente do Sindicato dos Estivadores João Francisco Gregório à função de Comandante Militar do Cais do Porto. Delegou poderes para permitir e proibir, entradas e saídas de pessoas e embarcações, bloquear o Porto, com as três corvetas da Marinha do México, o cargueiro britânico e o Santos de bandeira brasileira. Para suspender econtrolar, temporariamente, as comunicações radiotelegráficas e desativar, temporariamente, o farol marítimo. Este estivador João Francisco , comunista, exercia grande liderança entre estivadores das docas. O Procurador da República denunciou todos os estivadores de Natal, sem exceção. Cento e vinte cinco estivadores indiciados, acusados da participação na luta armada. Desses, onze foram condenados.

Os revolucionários observaram as leis internacionais, não invadiram a casa “consular” improvisada do Chile, tampouco as naus estrangeiras, surtas no porto. Em ambos os casos, sabedores do asilo dado a foragidos da revolução. No vapor Santos, de bandeira brasileira, vão a bordo, desativam a estação radiotelegráfica e confiscam armas e munições. Encontram dinamites que são utilizadas, na luta revolucionária.

Porém, Nicácio Gurgel, que liderou as diligências no porto, foi acusado tachado de elemento extremista pelo Procurador da República. Nicácio Gurgel esteve à frente da escolta armada que abordou navios surtos no porto. Para os jornais da reação ele fez exigências descabidas e ameaçadoras no Cais. O radical Nicácio andava acompanhado do filho criança, parlamentou com a oficialidade mexicana sobre os brasileiros asilados nas corvetas. Com a denegação do pedido de repatriamento, o delegado informou a imediata prisão de qualquer tripulante dos navios no território nacional, aplicando a reciprocidade. E ficou por isso. Eis o radicalismo inaceitável, os atos de insolências e ousadias, as exigências descabidas, da imprensa venal e dos serviçais do governo da República.

Segredode Polichinelo para toda Natal que as autoridades estavam asiladas, nas corvetas mexicanas. O primeiro lote, seguiu diretamente do Teatro Carlos Gomes, logo na noite de sábado, 23. Os oficiais da esquadrilha eram convidados de honra do governo deposto eos comandantes estavam no Teatro Carlos Gomes. Quando a boiada estourou, chisparam as respectivas naus, asilando alguns próceres que solicitaram arrego. As levas se sucedem, nos dias seguintes. E a extraterritorialidade definida nas convenções internacionais a navios militares foi respeitada. O Governo Popular Revolucionário já tinha muito abacaxi para descascar, não fazia sentido embrulhar-se em confusão com o México.

Também no domingo, a Junta governamental delegou tarefa ao motorista Epifânio Guilhermino para requisitar veículos e compor frotas rodoviárias. Os veículos indispensáveis ao transporte de cargas e deslocamento de tropas, armas e munição. Epifânio juntamente com Domício Fernandes requisitaram , conforme a orientação, preferencialmente, caminhões e veículos de carga. Nos inquéritos figuram como vítimas de requisição comerciantes e revendedores, Severino Alves Bila e José dos Santos.

O Epifânio Guilhermino e sua companheira Leonila Felix , ambos militantes do Partido Comunista, foram ativíssimos, nos sucessos revolucionários. A Leonila Félix, talvez pela condição de mulher revolucionária, em sociedade conservadora, machista e patriarcal, foi das mais discriminadas. Jornais e documentos oficiais tratam a revolucionária aguerrida Leonila como “amante”, “amásia” ou mulher vestida de homem. A ela e as outras mulheres, Chica Pinote, Chica da Gaveta, Maria da Cruz e Reymunda Pires, as abnegadas servidoras do ideal comunista, no dizer do Procurador da República.

A historiografia do Rio Grande do Norte com viés liberal burguês costuma ressaltar o “pioneirismo” do “voto feminino” e o feito da investidura da primeira Prefeita. Contudo, procura apagar do registro histórico o pioneirismo das revolucionárias de 35. As guerreiras revolucionárias, partícipes dos sucessos que culminaram com o primeiro Governo Popular Revolucionário das Américas, foram tesouradas, no traçado dominante da história.

Na visão dos arautos da reação, o comunista Epifânio Gilhermino fazia tipo desprezível, inculto, boçal, perverso, ladrão e assassino:


O que se revelou mais sanguinário e anarquista foi Epifânio Guilhermino. Esse extremista, não contente com o crime no dia 24, assassinando, assassinou, com requintes de perversidade o Sr. Octacílio Werneck, agente da Companhia de Navegação Costeira, ainda matou um soldado do exército no interior da Mercearia Machado, incendiou o 1º cartório judicial, saqueou diversas casas comerciais e tentou matar outro soldado do exército que se achava comigo preso.


Medeiros acusa Epifânio de matar o agente da navegação costeira por motivo fútil, para testar o poder da arma, nas costas do burguês. O militante Epifânio receberia a mais pesada pena, condenado a trinta e três anos, dos mais de mil indiciados, do RN.35

O sapateiro José Praxedes foi o Comissário do Abastecimento. Entre os pares, comunista experiente. Mobiliza populares na manhã do domingo 24, à Praça do Mercado, subiu à mureta do 21º BC e proclamou o Governo. Declinou os nomes dos membros da Junta para dar conhecimento ao público, proferiu breve discurso e deu vivas à Revolução e a Luís Carlos Prestes. Acostumado às meias-solas, deu os proclamas por encerrado e correu à sede do Governo, na Vila Cicinatto.

João Batista Galvão, funcionário do Atheneu , escapou da vigilância materna com truta de ida ao açougue, na rua, junta-se aos revolucionários. A casa materna ficou sem bifes, mas em compensação, a revolução ganhou um ministro. Chegou, festivamente, à sede do Governo Popular, na Vila Ciccinato, nos braços de populares.36

Estava constituído o primeiro governo popular revolucionário das Américas. Que fazer? Os bolcheviques souberam assimilar a resposta dada por Lenine, em 1917, na Rússia. Mas, a junta revolucionária de 1935, em Natal, saberia? As primeiras medidas decretadas foram a destituição do Governador Rafael Fernandes e a dissolução da Assembleia Constituinte Estadual. A segunda, a publicação e distribuição de boletins, para esclarecer os propósitos da revolução e tranquilizar a população.

Dar tranquilidade e segurança. Notadamente, às pessoas ligadas ao comércio e aos serviços públicos da cidade. Natal precisava retomar a normalidade. Revoluções desorganizam e organizam: derrubam ordens velhas e criam outras novas. Sucede da nova ordem também envelhecer, mas aí é outra história, para ser escrita por outros revolucionários. Por enquanto, calhava aos revolucionários do momento tranquilizar a população da cidade. Ganhar confiança e apoio popular às novas perspectivas revolucionárias . Tarefa hercúlea, porém, indispensável. Somente assim a revolução lograria as transformações necessárias. Era preciso divulgar, amplamente, o Programa da Aliança Nacional Libertadora, a bandeira do progresso e da prosperidade do país.

Tem conteúdo pacificador o Comunicado aos Camaradas em Armas e ao Povo em Geral do Governo Revolucionário, apelando à manutenção da ordem e o respeito à integridade física de pessoas e propriedades. Na mesma direção pacífica, o boletim AOS SENHORES COMERCIANTES, com apelos ao funcionamento normal do comércio para o povo não sofrer com falta de gêneros de primeira necessidade.37

Assim, o governo popular acenava com garantias e seguranças, para o livre funcionamento do comércio. Prometia discutir a redução dos tributos. Ao mesmo tempo, advertia: sem o abastecimento regular e o funcionamento normal do comércio, o governo não respondia pelos assaltos e saques. Os chamados atos extremados do povo. Essas notas governistas, ao que parecem, surtem mais efeito intranquilizador. Em geral, o comércio cerrou suas portas. Algumas casas abriram mediante ordem revolucionária; diversas foram saqueadas e arrombadas, menos por turbas populares e mais por ladrões que se aproveitavam da ocasião.

As comunicações são controladas, rádios dos quartéis, os Correios e Telégrafos, das naus no porto. A junta, ocupando a casa do Governador, verificou precisar de bastante dinheiro para executar o 13º Trabalho de Hércules: promover as mudanças e reformas do programa da ANL e da revolução. A reforma agrária, a reforma política, fiscal e tributária. Confiscou bastante dinheiro, mas sequer teve tempo para intentar reforma alguma, acabou distribuindo o dinheiro confiscado com a população.

Na matéria tributária, a única medida da governança revolucionária registrada foi a prisão dos fiscais achacadores dos feirantes. No âmbito dos transportes, a decretação da gratuidade do bonde. No abastecimento, a redução do preço do pão, para 100 réis. Sem empresa de bonde e as padarias, afinal, a revolução era nacional e libertadora.

Parte do dinheiro confiscado da Recebedoria de Rendas pagou os salários atrasados, da extinta Guarda Civil. Na massa da recebedoria de rendas, queimam papéis de multas e cobranças. Na rua Ulisses Caldas, Cidade Alta, queimam livros, hipotecas, promissórias, duplicatas e títulos. Junto com os papéis, o fogo consome todo 1º Cartório.

As duas belonaves da Companhia Aérea Condor são requisitadas para sobrevoar Natal e lançar boletins informativos do Governo sobre a cidade. Com a bandeira vermelha a tremular, os pequenos aviões faziam chover papéis sobre Natal. Esses boletins foram os únicos meios de comunicação da Junta popular. O governo revolucionário intentou e até editou o jornal oficial. Porém, as tropas reacionárias ocupam as oficinas gráficas do Jornal A República e A Liberdade , o jornal oficial do Governo Popular Revolucionário, não circula.

A Liberdade, o jornal oficial revolucionário, mais parece obra de ficção. Um artigo sobre a Marcha da Revolução Libertadora traz informações apologéticas e inverídicas da revolução no país. Um amontoado de notícias sobrelevantes, greves e vitórias do movimento Nacional Libertador, inverídicas:


Cumprimos o grato dever de, com alegria, verdadeiramente revolucionária, comunicar ao povo desse Estado a marcha ascensiva da revolução. Isto podemos fazer porque estamos de posse do Telegrapho e dos rádios e controlando todas as notícias que por eles veem.Nós sabíamos que o Brasil era um imenso “Barril de Pólvora” e que bastaria uma centelha para que ele explodisse, que nós rio-grandenses do norte acendemos, podemos dizer ao Brasil extasiado que fomos a primeira pedra desse grande edifício que vai ser o governo popular. Ao echo da nossa metralha já responderam os companheiros da Parahyba do Norte, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo. E do Rio de Janeiro e Maranhão, as quais já estão nas mãos dos Nacionais Libertadores. São Paulo está insurrecionado com o povo em armas e o proletariado em greve revolucionária, tudo indicando que o governo não se sustentará por muitas horas, e mais para o Sul o proletariado se atira a greves combativas aclamando o nome de Luís Carlos Prestes. A Gloriosa Marinha brasileira também já virou os seus canhões contra a tyrania, estando revoltada na baía da Guanabara e bem assim no Pará, Santa Catharina levantou-se a poucos minutos, sob o comando do valente companheiro Hercolino Cascardo.

Viva a Aliança Nacional Libertadora!

Viva Luís Carlos Prestes!

Viva o Governo Popular Revolucionário!38


A tarefa da edição de A Liberdade foi confiada ao Raymundo Reginaldo da Rocha, que usou tintas panfletárias. Apresentou o Programa da ANL – Sob a Aleluia da Liberdade! e elencou os propósitos da revolução: reforma agrária, democracia, proteção dos trabalhadores, proteção da cultura e do ensino, moratória da dívida externa, nacionalização dos bancos e de empresas estrangeiras. A tribuna da luta revolucionária anti-imperialista bate forte nos lacaios e vendilhões da nação.

Não deixa de ser pitoresca a preocupação de A Liberdade com temas considerados eruditos, para a maioria do povo. Na página Cultural, o artigo de André Malraux sobre reencarnação da arte. Nele, o articulista analisa o simbolismo em máscaras egípcias, crucifixos medievais e outras representações. Noutro artigo, a resposta do humanista Georges Duhamel, conhecido autor de Vie des Martyres. Uma resposta crítica à enquete literária provocativa do fascista Jacques Ploucard, autor de Les Letres de L’intransigeant.

Contudo, o fato mais pitoresco dessa histórica edição foi, indubitavelmente, a estampa publicitária do Sal de Frutas Eno, fabricado pelo laboratório estrangeiro Glaxo Simithkline. Tendo sobrado espaço na quarta página, o gráfico, prontamente, preencheu o espaço vazio com a estampilha do Sal de frutas Eno. Pérola da publicidade: jornal oficial do Governo Popular Revolucionário Nacional Libertador fazer publicidade gratuita para produto de laboratório estrangeiro. O Sal Eno é remédio à base de bicarbonato de sódio, utilizável no tratamento de azias e más digestões. Certamente, os comunistas recorreram ao Sal Eno depois dessa grande gafe.

No entanto, para o bem ou para o mal, A Liberdade, sequer chegou a circular. A tiragem de mil exemplares foi apreendida, na oficina. As tropas da contrarrevolução ocupam a gráfica e prendem todos: editores, gráficos, jornaleiros, eventuais distribuidores. E quem mais estivesse na gráfica e adjacências.

São Nicolau de Florença dava conselhos aos príncipes para eles serem amados e temidos. O príncipe ideal, metade raposa, metade leão, agisse com força e esperteza, que os fins justificam os meios. No Governo Popular Revolucionário faltavam leões e raposas. Os revolucionários bem que tentam ser amados . Baixaram preços, soltaram presos, distribuíram dinheiro. Se o Banco é do Brasil, o dinheiro pertencia ao povo brasileiro. Mas o povo não é ninguém, e o dinheiro pertence aos banqueiros.

Quem apoiava a revolução? Militares e civis, comunistas, filiados da ANL, mulheres da UFB, deputados, prefeitos, cabos eleitorais ligados a Café Filho e a Mário Câmara. Bastavam para dar sustentação a um governo estadual? Talvez sim. Mas, o RN era parte da Federação. Não estava sozinho, mas unido ao pacto nacional de poder. E dependia da correção de forças locais e nacionais. Localmente até poderiam tentar alguma resistência. Mas, nacionalmente, isolado, nem pensar. No RN a derrota da revolução não se deu pela reação de forças internas. A lenda do General do Seridó não funcionaria sem as forças da Polícia da Paraíba e sem o Exército dos estados vizinhos. Os revolucionários, tão ilegítimos, essencialmente, quanto os legítimos governantes depostos. Eleitos na fraudado bico da pena, nos currais eleitorais. A maior parcela da população de Natal e do Estado permanecia do lado fora do banquete. Sem assento à mesa. Por isso, não chorou na deposição do Rafael, nem chorou na debacle dos revolucionários. Maioria excluída e silenciosa, neceninneccontrarium .

Ativa e barulhenta foi a postura das classes produtoras. Pouquíssimos proprietários restaram indiferentes: cinco aderiam à revolução, mas a elite econômica, agrária e comercial do Estado, como todo, defendeu a antiga ordem, o governo deposto. E boicotam a ação dos revolucionários. Dois proprietários rurais e treze comerciantes, foram condenados, no Tribunal de Segurança.

A tensão social no RN aumentava, no passar das horas. As falhas do transporte público, a falta de abastecimento e a insegurança. As medidas interventivas de confisco de mercadorias, as requisições forçadas, geravam, mais e mais, desconfianças. E mais retaliações, dos prejudicados. O governo popular precisava e requisitou, veículos, armas, munição e dinheiro. Mas a história costuma ser contada pelos vencedores, e como eles perderam, ficaram como vândalos, violentos, ladrões.

Com esse escopo, o Relatório Policial do responsável pelas masmorras reais, registra os saques nos cofres do Banco do Brasil, da Recebedoria de Rendas eda Inspetoria de Polícia e a pilhagem de casas do comércio, Chilenita, M. Martins & Cia, Severino Alves Bila, Viúva Machado, Cia. Sul América, M. Alves Afonso, Armazém Copacabana, no Mercado Público e em quiosques. Também no interior do estado, em Macaíba, São Gonçalo, Vila Nova, Canguaretama, Goianinha, Panelas, Santa Cruz, entre outras localidades.39

Naturalmente, pescadores de águas turvas aproveitaram a ocasião, saqueadores, ladrões, assaltantes. Contudo, as requisições dos revolucionários foram expropriações e requisições à luz do dia com recibo passado e assinado formalmente pelo comissário do Governo Popular responsável. É razoável dizer que na perspectiva do “expropriado” ou “requisitado”, não pouca diferença fazia, já que “atendia” as demandas dos ditos comissários, coativamente. Contudo, diferenças há, na forma e no conteúdo, de requisições e roubos, de ordens da Junta governamental constituída com a ação solerte dos ladrões, do crime motivado pela ação política com o crime de motivação torpe e comum.

No entanto, os documentos policiais classificam todos saques e roubos, atribuindo a autoria aos comunistas. Relatórios, denúncias e ofícios grotescos, sem considerar, provas documentais, fatos notórios e de domínio público quais os boletins da Junta contra o vandalismo, com ameaça de punir os saqueadores e as medidas ostensivas das patrulhas e rondas montadas, para dar segurança à propriedade.

Porém, o núcleo dirigente da polícia norte-rio-grandense, intencionalmente, não diferençava comunistas, cangaceiros, saqueadores, ladrões, incendiários e assassinos. Para eles, os comunistas eram os inimigos os quais deviam aparecer como a síntese de toda hediondez criminosa. Núcleo de estagiários da escola nazista de Josep Goebbels, cujos ensinamentos, rompiam fronteiras.

Na segunda-feira, dia 25, José Macedo, o Comissário de Finanças do Governo Popular Revolucionário, apresentou-se ao Sr. Carlyle Magalhães, gerente do Banco do Brasil, e determinou a abertura do cofre forte da agência. O gerente recusou. O perigoso comissário extremista José Macedo adotou solução salomônica. Não mandou fuzilar o gerente sabotador da revolução. Foi buscar um mecânico munido de maçarico para resolver o problema da revolução e do gerente, sem derramar sangue. O Comissário de Finanças José Macedo viajou no navio-presídio com o escritor Graciliano Ramos. Em suas Memórias do Cárcere, Graciliano relembra a preocupação do preso Macedo, em alto-mar, rumo ao Tribunal de Segurança Nacional para ser julgado, com a contabilidade do Governo Popular.

Da denúncia consta que Macedo liderou a escolta revolucionária que conduziu o mecânico Manoel Severino ao BB. A porta do cofre do BB foi arrombada no fogo de maçarico. Quase três mil contos de réis foram “confiscados”, recebidos e assinados. A fotografia do cofre arrombado chocava. E foi estampada, nas primeiras páginas dos jornais, a demonstrar o vandalismo dos extremistas.

Pela contabilidade do delegado de Ordem Social, Enoch Garcia, e do Chefe de Polícia, João Medeiros,


Do Banco do Brasil foi roubada a quantia de R$$ 2.944:104$500 (dois mil novecentos e quarenta e quatro contos, centro e quatro mil e quinhentos reis), sendo recolhido ao Tesouro do Estado R$$ 886:124$500 (oitocentos e oitenta e seis contos, cento e vinte e quatro mil e seiscentos e cinquenta reis).40

Contudo, a conta sobe, no telegrama destinado ao Presidente Getúlio Vargas, após a retomada da governança. O Governador inflaciona o tamanho da conta, fala em numerários superiores a 5 mil réis. Certamente, o Gurjão computava o Banco do Brasil, as Recebedorias, o Banco do Estado e inelutáveis rubricas ocultas.

Nessa gangorra da dinheirama pública, dois mil e novecentos contos saqueados, apenas oitocentos mil foram devolvidos, pelas autoridades. Mais de dois terços da fortuna, ninguém sabe, ninguém viu.

O chefe de Polícia opina que o dinheiro não devolvido ao tesouro ficou com os comunistas, muito bem escondido. Muita gente opina que a dinheirama ficou na polícia. E com outros cidadãos, acima de qualquer suspeita. O mistério do dinheiro desaparecido deu origem à lenda dos “achadores de dinheiro”, do folclore de Natal. A questiúncula será examinada, oportunamente. Por enquanto, fiquemos com as efemérides da governança popular revolucionária. O brejeiro popular diz que se o tatu está gordo, alguma coisa ele come. Bastaria o Sherlock atrapalhado adotar a técnica investigativa do tatu gordo. Seu olhar agudo sobre a cidade de Natal, os sinais exteriores de riqueza, se o tatu estiver acima do peso, calhava explicar a origem dessa engorda.

Interiorizar a revolução passou à prioridade do Governo Popular . Impulsionar e consolidar a revolução, rumo ao interior do estado, atrair novos adeptos. Com esse objetivo foram formadas três Colunas : a primeira seguiria em direção ao litoral Sul, rumando à divisa da Paraíba; a segunda partia em direção ao litoral Norte, alcançando Macau, Mossoró e chegando à divisa do Ceará; a terceira rumava em direção ao Sertão, passando por Nova Cruz, Caicó, Santo Antônio e toda extensão do Seridó.

Ditas Colunas deviam ocupar as cidades, tomar nas mãos as prefeituras, invadir as cadeias e soltar os presos de opinião, localizar os cofres e confiscar o dinheiro, confiscar as armas encontradas e munições, aliciar novos revolucionários, formar os governos populares.

Quase metade, do total dos quarenta e um municípios existentes no Estado, conheceu a passagem do tufão revolucionário de 1935. Em algumas cidades, formaram-se governos populares, com personalidades e lideranças locais ligadas ao PCB, à Aliança Social ou à Aliança Nacional Libertadora, dês que opositores do PP.

Pequena escolta foi enviada à praia da Redinha, na outra margem do rio Potengi, onde se suspeitava da ocultação de pessoas e de armas. Uma vila de pescadores e balneário de veraneio dos ricos de Natal. Lá, o Sr. Arnaldo Lyra, integralista, reagiu à abordagem da escolta e recebeu voz de prisão. Imediatamente, foi conduzido preso à Vila Cincinato, sede do Governo Popular, em Natal. Nesse local, o Arnaldo Lyra envolveu-se noutra discussão e recebeu um golpe de sabre, no abdômen. O soldado agressor foi preso na hora e a vítima ferida levada ao hospital. Arnaldo Lyra veio a falecer, alguns dias depois, em decorrência dos ferimentos, não resistiu.

O cabo Giocondo Dias a dizer que não se fazem omeletes sem quebrar os ovos expediu e assinou a ordem de prisão e de fuzilamento contra outro cabo que desertou. No telegrama assinado, usa nome e sobrenome e a patente. Para sorte de ambos, ordenador e condenado, o desertor não foi preso, tampouco foi fuzilado: “Felizmente ele conseguiu passar sem ser preso. Depois ele veio para o Partido, trabalhou muitos anos, era meu amigo. E achava que eu agira certo, que estava com a razão”.41

Caprichosa a roda da fortuna, em seus giros inimagináveis das revoluções sociais. Uma desfrutando passava o verão, em tranquila vila de pescador e balneário, longe dos ruídos da revolução, estocado com sabre morreu por motivo fútil. Outro mais afortunado, pegou o fuzil, assaltou o quartel, escapou ileso. Depois desistiu e debandou, em guerra fuga é traição, recebeu condenação, não foi preso nem morreu, escapou vivo, lépido e fagueiro, na mão e contramão, da tal revolução. Sobre tais desatinos da sorte, Dona Rosa, mater semper, lecionava: até entre as flores, há diferença de sorte, algumas enfeitam a vida, já outras enfeitam a morte.

 

 

 

 

 

 

 

 

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