Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
João
Maria Furtado
Pesquisador(a)
ABC
Pesquisadores Insurreição Comunista
de 1935
Nosso
Projeto |
Mapa Natal 1935 | Mapa
RN 1935 | ABC
Insurreição | ABC
dos Indiciados | Personagens
1935 | Jornal
A Liberdade | Livros
| Textos
e Reflexões | Bibliografia
| Linha
do Tempo 1935 | Imagens
1935 | Audios
1935 | Vídeos
1935 | ABC
Pesquisadores | Equipe
de Produção
 |
Vertentes
– Memórias
João Maria Furtado, 1976
O LEVANTE VERMELHO
A REPRESSÃO
FUGITIVOS
NO CEARÁ
NA PARAÍBA
DE REGRESSO
O LEVANTE VERMELHO
164
O Governador Rafael Fernandes, fazendo um governo essencialmente partidário, logo no início de sua administração, pelo Decreto n. 19, de 20 de novembro de 1935, extinguiu a Guarda Civil e criou, em substituição, a Inspetoria de Polícia, dispondo esse decreto extintivo que poderiam vir a ser admitidos na nova instituição elementos da extinta Guarda Civil que, a critério do Chefe de Polícia, tivessem “idoneidade comprovada” conforme ficou prescrito no seu art. 4º.
Foi esse um ato de mera perseguição, de odiosidade partidária porque a entidade extinta havia sido criada por João Café Filho e fora a força que, em todos os momentos de perturbação da ordem e nas diversas tentativas de deslocar do cargo o interventor Mário Câmara, seus componentes, à unanimidade, se mostraram absolutamente fiéis à autoridade constituída e imunes ao vírus político partidário.
165
Com esse Decreto n. 19/35 foram postos à rua cerca de 300 mantenedores da ordem que passaram a sofrer fome com suas famílias. Era um problema social artificial e criminosamente criado pelo novo governo, além de um caldo de cultura de revolta dos injustiçados sem culpa e daí porque alguns deles, um número aliás insignificante malgrado tudo, tomaram parte no levante vermelho, imaginando-o um meio de derrubar o governo que lhes tirara o pão de cada dia.
166
O levante de 1935 encontrou na situação do Estado um clima sumamente propício para sua eclosão. Concomitantemente, com a posse do Dr. Rafael Fernandes, o Cel. Baltazar Meireles, chefe político e grande proprietário, no Oeste do Estado, por certo dentro de um acertamento político para perturbação da ordem para uma possível ou prometida intervenção no Estado de parte do Governo Federal e, por esse meio, uma solução intermediária para eleição de outro governador, se levantou em armas. Parece que houve um acerto neste sentido, mas Getúlio Vargas falhou na última hora, vindo do Rio o Dr. Paulo Câmara, irmão do interventor Mário Câmara, a fim de desfazer a teia do levante e do qual Baltazar Meireles não foi avisado. O articulador principal desse levante teria sido o deputado Francisco Martins Veras.
167
Esse incidente de Baltazar Meireles, ocorrido ainda em outubro de 1935, concomitantemente, com a posse de Rafael Fernandes no governo, foi, pela polícia deste governador, transformado também em comunismo e seus autores incluídos entre os responsáveis pelo levante vermelho de novembro de 1935, cuja repressão neste Estado constituiu, uma página negra na história do Rio Grande do Norte, na expressão de um contemporâneo e imparcial assistente. Um exemplo de como foram os acontecimentos de então desfigurados no sentido exclusivo de apurá-los com a finalidade de exterminar os adversários do Partido Popular: o cidadão Artur Mangabeira, chefe político marista em São Tomé e Barcelona, grande proprietário ali e comprador de algodão, fora assassinado juntamente com um seu filho pela polícia de Rafael Fernandes, na semana anterior à eclosão do levante de 1935 (ele denunciara ao governador a nomeação para Barcelona de um sargento da Polícia seu inimigo capital a pedido de Ladislau Pereira como uma ameaça direta à sua vida, sem que a denúncia sensibilizasse o novo governo). Pois bem, dois anos depois, o jornal oficial “A República”, noticiando a passagem desse levante, incluiu os assassinos desses dois pacatos cidadãos como praticados nesse levante e como obra dos comunistas. . .
168
Em 1934 e 1935, como acontecia no Brasil, neste Estado, os elementos inconformados com a situação e fora do governo, conspiravam abertamente quase. Uniam-se nessa conspiração desde a extrema esquerda à extrema direita, incluindo os ditos liberais, entre os quais se contavam os carcomidos alijados do poder em 1930. Aqui no Estado, José Augusto Bezerra de Medeiros e todos os seus partidários conspiravam e tentaram algumas vezes depor o interventor Mário Câmara e continuaram a conspirar com os extremistas de novembro de 1935. E se algum elemento marista ou cafeista aderiu a esse levante – e só o fizeram figuras insignificantes de revoltados como alguns ex-componentes da Guarda Civil extinta – o foi na persuasão de se tratar da derrubada do Governador recém-eleito. E o exemplo típico dessa conspiração de todos os matizes está em Otávio Mangabeira de quem escreveu Hélio Silva, quando afirmou que a gênese do movimento de 1935 se encontra nos dias que sucedem à promulgação da Carta de 1934 e na inconformação com o domínio de Vargas:
“Há que fazê-lo descer” gritou da tribuna da Câmara Otávio Mangabeira, um dos chefes do movimento nacional de que os levantes de Natal, Recife e 3º RI e Escola de Aviação Militar foram um episódio embora relevante. Dele ouvi, primeiro no Hotel Glória onde morava, depois na Clínica de Repouso São Vicente, onde passava os períodos de crise de enfermidade: - “Estive em todas as conspirações contra Vargas. Em 1935, 1937, 38 e 45”. (1935 A Revolta Vermelha, pág. 43, VIII Volume).
169
Apontavam-se à época, neste Estado, os raros elementos conhecidos como comunistas. Entre eles, dois da família Reginaldo, um salineiro em Mossoró e outro, Raimundo Reginaldo, professor primário em Natal. A propósito, um depoimento partido de quem Chefe de Polícia em duas interventorias e elemento de real prestígio no operariado – e daí ser o mais combatido pelos comunistas – João Café Filho quando escreveu:
“Fora-me dado verificar então que eram muito poucos. Não havia no Rio Grande do Norte uma economia industrial capaz de proporcionar grandes núcleos operários. Por isso mesmo, a principal célula bolchevista não era civil porém militar, constituída de sargentos, cabos e soldados do 21 BC” (Do Sindicato ao Catete, José Olimpio, 2º vol. págs. 80/81).
Mesmo assim esse núcleo militar conspirador também não tinha formação marxista. Era dirigido ou orientado por leituras superficiais e os conhecidos slogans de propaganda extremista, sem um mínimo de conhecimento para assumir a liderança revolucionária e principalmente levar adiante, como aconteceu na Rússia, uma revolução na economia em sua forma de produção e distribuição.
170
Demos a palavra a outro escritor, este, o mais imparcial e mais documentado historiador dessa fase de nossa história, desde 1922 a 1938, Hélio Silva:
“O levante de Natal foi uma revolta de cabos e sargentos, operários, funcionários públicos. A maioria nada sabia de comunismo. Nem mesmo os dirigentes do movimento, os poucos declaradamente comunistas, tinham formação marxista. Eram revoltados simplesmente. O elemento de mais popularidade, o sargento Quintino, da banda de música do Regimento, não era letrado. Acreditava apenas que o comunismo solucionara os problemas brasileiros. O grosso dos adesistas julgava tratar-se de um movimento para repor o interventor Mário Câmara”. (1935 - A Revolta Vermelha, pág. 280).
171
O comandante do 21 BC, um coronel gaúcho da confiança de Getúlio Vargas, abrira inquérito para apurar as arruaças que soldados e oficiais desse batalhão vinham cometendo e, conforme narra ainda Hélio Silva, anunciou a expulsão dos indesejáveis sem que, no entanto, isso tenha acontecido. “Inexplicavelmente continuaram no quartel e nele ainda se encontravam a 23 de novembro”.
Explicável o inexplicável para Hélio Silva: aqui chegando o Coronel Otaviano Pinto Soares também passou a simpatizar o Partido Popular e aquelas “arruaças” de soldados do Exército eram praticadas e já vinham sendo contra a Polícia do interventor Mário Câmara e insufladas pela oficialidade, e assim, foram desconhecidas pelo novo comandante. . .
172
A revolta estourou no sábado 23 de novembro, quando o governador estava numa solenidade no Teatro Carlos Gomes. Dali se refugiou com amigos e secretários numa casa à rua Sachet e depois na residência do cônsul honorário da Itália, para posteriormente alarmados passarem a um navio mexicano surto no porto. O então rapazinho com cerca de 14 anos, depois Dr. Romildo Gurgel, tentou arrebatar desse navio os refugiados entre os quais, o des. Silvino Bezerra, infrutiferamente. O revolucionário tão precoce, filho do Dr. Nizario Gurgel, era sobrinho do Dr, Aldo Fernandes, o secretário geral do Estado todo poderoso. Preso Dr. Nizário Gurgel por sua evidente participação no levante – talvez o único instalado no prédio da antiga Escola de Aprendizes Artifices Rio Branco, na descida para o Alecrim, um presídio político para onde foram removidos muitos presos de maior categoria social, inclusive esse parente daquele secretário de Governo.
173
Apossado do Quartel do 21 BC, os revoltosos com um ardil rudimentar conseguiram atrair para ele o Dr. João Medeiros, Chefe de Polícia, que ali ficou detido e que em seu livro a respeito dos fatos – Meu Depoimento – Imprensa Oficial – Natal, 1937, diz ter sido ameaçado de fuzilamento. O Cel. Otaviano P. Soares foi para o quartel da Polícia Militar, então situado perto do Passo da Pátria, com os fundos dando para o rio Potengi.
Os revoltosos assestaram metralhadoras contra esse quartel dentre outros pontos de cima da torre da matriz e da rua hoje João da Maia, arrombando o muro da casa n. 606 da esquina e tirotearam o quartel desde às 21 horas até a manhã seguinte, quando se esgotou a munição da Polícia. A maioria de sua oficialidade então procurou escapar, lançando-se ao rio Potengi e somente o tenente José Paulino de Medeiros, que era profundamente odiado pelo situacionismo, acusado por ter sido o último Delegado Auxiliar do Interventor Mário Câmara e que fora fiel a este intransigentemente, homem de coragem pessoal a toda prova, após o levantamento da bandeira branca no quartel, saiu dele pela sua frente embora permanecessem os revoltosos em seus postos e de metralhadoras assestadas e prontas a fazer fogo. E adiante, numa esquina, foi alvejado pelos revoltosos, sendo atingido num braço.
174
O ferido foi levado para o hospital e lá, o Dr. José Tavares, por certo sem outro recurso, sacrificou-lhe o braço ferido, amputando-o.
Todos os demais oficiais que se encontravam no Quartel da Polícia, depois de permanecer dentro do Potengi, foram, sob a mira de armas dos revoltosos, retirados da água e presos, inclusive o comandante o major Luiz Júlio. E aqui cabe mais um registro especial: havendo permanecido à frente da resistência do Quartel da Polícia enquanto houve munição, o tenente Zuza, estava, assim, inutilizado para o seu serviço ativo e foi reformado, contra à letra expressa da lei, sem a promoção a que tinha direito por tê-lo sido por ferimento em defesa da legalidade. . .
175
A respeito do 1º tenente José Paulino de Medeiros, embora praticando atos de bravura, no cumprimento do dever e inutilizado para serviço ativo nesse serviço, basta transcrever o insuspeito depoimento do Dr. João Medeiros Filho, então Chefe de Polícia no seu livro citado, pág. 74:
“Conquanto tenham todos pelejado bravamente é de Justiça reconhecer o valor da atuação do Coronel Pinto Soares, major Luiz Júlio, cap. Joaquim de Moura, ttes. Bilac de Farias e José Paulino de Medeiros (Zuza Paulino) etc.”.
Em seguida:
“Em relação ao tem. José Paulino de Medeiros colhi de fonte segura que, logo após o início das hostilidades, seu aparecimento no quartel causou estranheza, por ser elemento contrário ao governo tendo o cap. Joaquim de Moura escalado dois sargentos, um dos quais o Sr. Gastão de Andrade, para o vigiarem com ordens severíssimas. No decorrer da luta, porém, o ten. Zuza demonstrou muita coragem, cumprindo o seu dever como soldado.”
176
Outro episódio a esclarecer: elementos que tomaram parte efetiva na revolta e com atuação destacada nela, sendo presos e posteriormente condenados, entre eles Sizenando Filgueira, Ramiro Magalhães, Carlos Vander Linden (este metralhou o quartel do alto da torre da matriz), além de outras pessoas, testemunhas dos acontecimentos, sempre afirmaram que, realmente, morreu, nas proximidades do quartel da Polícia um pobre demente, chamado Luiz Gonzaga, vulgo “Doidinho” (apelido deveras significativo) que vivia perambulando pelas ruas de Natal, mas que nunca fora soldado da Polícia Militar.
Sizenando Filgueira e Ramiro Magalhães, o primeiro ainda hoje vivo, me relataram que, após haver a Polícia Militar cessado fogo, eles, armados como estavam, desceram uma das ladeiras que conduzem ao quartel e, precavidamente, de longe, estavam observando se havia nele algum movimento, quando, num capinzal próximo dele, avistaram o paisano “Doidinho”, parece que, em sua insanidade, brincando com um fuzil e ao avistá-lo na esquina ainda bem distante, fez menção de atirar sendo então alvejado de fuzil por Sizenando que, relata um pormenor: “Doidinho” ao ser atingido, deu um grande pulo para cima e caiu, estirado no capim e o fuzil que empunhava também caiu para um lado.
177
Entretanto, o major Luiz Júlio resolveu “alistar” depois de morto Luiz Gonzaga, por alcunha “Doidinho”, como soldado da Polícia que, assim, teve na morte um herói.
Bem possível que ele, em sua demência, se haja reunido a outros civis que se refugiaram, ele sem consciência plena de seus atos, no quartel da Polícia Militar. Certo que está transformado em herói. E que ele era conhecido como “Doidinho” é relatado em dois depoimentos insuspeitos no caso do Dr. João Medeiros Filho: naquela obra já citada Meu Depoimento e na entrevista à Tribuna do Norte, de 23 de novembro de 1971.
178
Esse endeusamento de falsos mártires em movimentos revolucionários há acontecido pela história agora e neste Estado, em 1935, a par dele se acusaram inocentes e se praticaram, à sombra da repressão, injustiças e crimes, Hélio Silva, obra citada, pág. 282, historia:
“Precisavam de dinheiro. Foram à agência do Banco do Brasil, cujo gerente se recusou a atender a requisição de numerário. Tiveram de arrombar o cofre.”
.................................................................................................................................
Retiraram 3.600 contos de réis. Parte do dinheiro foi distribuído pela população. O restante foi guardado em Palácio. Na fuga nem todos puderam levar as importâncias partilhadas. Por precaução talvez, em face da perseguição que sabiam iminente e inevitável, preferiram deixá-los em poder de amigos e parentes. Posteriormente algumas pessoas ricas de Natal eram apontadas como beneficiárias daquele dinheiro.”
179
Daquela grande quantia de 3.600 contos de réis e de outras arrebanhadas pelos revoltosos quando se apoderaram de Natal e que foram distribuídas na Vila Cincinato e lá também foi deixada até pelos w.c. da casa e quintal, e tentada reaver, posteriormente, pela Polícia, só apareceram afinal menos de 900 contos. Fatos curiosos se passaram. Não somente aquelas “pessoas ricas” foram apontadas como beneficiárias daquele dinheiro. Houve ainda, na expressão do Dr. João Medeiros – entrevista acima citada – os felizes “achadores de dinheiro”. São textuais as seguintes palavras:
“Não é de estranhar muito que de tão vultosa quantia naquela época a polícia só tenha apreendido menos da terça parte. Além de inúmeros comunistas terem fugido conduzindo dinheiro, que foi dividido a mancheias na Vila Cincinato, alguns ficaram na prisão sonhando com o tesouro escondido, restando os que o povo na sua ironia atroz batizou de – “achadores de dinheiro”.
180
Ora, entre esses “achadores” não resta dúvida que estavam muitos dos encarregados da repressão e perseguição aos revoltosos.
Apontaram-se, então, muitos policiais e alguns mais destacados elementos, poucos, é verdade, da Polícia Militar que, sem ganharem na loteria, logo depois, construíram sobrados, naquele trecho da praça Pedro Velho que sendo um dos poucos logradouros públicos da cidade, foi pela metade, com protesto de elementos do próprio governo. Loteado pelo prefeito Gentil Ferreira e ele mesmo se encarregou de realizar as construções que ainda hoje lá se encontram, em geral sobrados. . .
Foi até tentando um Mandado de Segurança contra esse loteamento levado a efeito porque àquele prefeito interessava a negociata por dois aspectos: entrar dinheiro para a Prefeitura e ele como construtor fazer um bom negócio.
181
Sobre a arrecadação desse dinheiro espalhado pelos comunistas, escreve ainda Hélio Silva, ob. cit., mesma página:
“Terminada a revolta, a polícia procurou recuperar esse dinheiro. Invadiu casas de populares, obrigando os familiares a entregarem o que os chefes, ausentes, tinham escondido. Consta que vieram três policiais de Recife, Siqueira, Cisneiros e Alípio e arrecadaram para si mesmo, o que puderam recolher. O derrame de dinheiro assinalou um surto de progresso. O índice das construções cresceu assimbrosamente.”
Esse registro coincide com o nosso em relação aos “achadores de dinheiro”, encarregados da repressão aos revoltosos vencidos. O povo apontava nomes de oficiais da Polícia – poucos é justo salientar – que, cinicamente, construíram residências confortáveis sem pejo de ostentarem, à vista de todos e do governo, principalmente, uma riqueza sem explicação honesta.
182
Um dos delegados auxiliares, o Dr. Ivo Trindade, célebre como mandante de torturas a presos políticos, fez uma diligência em Barra de Maxaranguape, por onde teria fugido um dos mais altos participantes da revolta e teria arrecadado a maior soma de dinheiro distribuído, ali deixado por esse prócer vermelho.
Mas, para os efeitos administrativos, a diligência, a essa praia foi frustrada: nada foi recolhido aos cofres públicos.
Esse episódios foi muitíssimo comentado ao seu tempo.
183
Aqueles policiais pernambucanos aludidos por Hélio Silva que foram aqui bons “achadores de dinheiro” sem recolhimento legal, não se celebrizaram apenas por esse aspecto: foram trazidos principalmente como ficou sabido de todos para ensinar aos nossos policiais técnicas refinadas de torturas e extorções de confissões como haviam aprendido do meio policial de onde vieram.
184
Toda espécie de mentiras e calúnias foram assacadas aos revoltosos. Houve, realmente, excessos de alguns deles e entre outros assassínio de Otacílio Werneck. Houve saques a casas comerciais e num desses saques, Epifanio Guilhermino à frente, houve uma desavença deste com um soldado do 21 BC com troca de tiros. Epifanio Guilhermino foi atingido no ventre e matou a tiros seu ofensor. O ferido que era acusado da morte de Otacílio Werneck foi feito prisioneiro e foi mantido na prisão sem nenhum tratamento médico, com o evidente intuito de vê-lo morrer.
185
Entre as acusações aos revoltosos se inserem violações de alunas da Escola Doméstica, estabelecimento de ensino especializado e da elite do Estado e de muitos outros. O boato foi desmentido. Tiramos ainda de Hélio Silva, ob. cit., pág. 283 como transcrição o seguinte trecho:
“Posteriormente falou-se em violências de todos os matizes. Espalharam que os revolucionários haviam violentado as moças da Escola Doméstica, estabelecimento de alto padrão, criado pelo governo José Augusto. Os pais das moças e o bispo Marcolino Dantas desmentiram tal acusação.”
186
Os revoltosos se apoderaram da redação da Imprensa Oficial do Estado, onde fizeram publicar a 27 de novembro, o n. Um e último de seu jornal A Liberdade – Órgão Oficial do Governo Popular Revolucionário. – O dia 27 de novembro de 1935 foi uma quarta-feira quando já a revolta se diluira, fugindo os seus autores e dirigentes. Assim, a edição não teve divulgação, ficou guardada no próprio prédio onde fora impressa, à rua Junqueira Aires, esquina da Juvino Barreto.
Para editar esse número, com o mesmíssimo formato de A República, que era o órgão oficial do governo estadual, esteve na respectiva redação o revoltoso José Aguinaldo Barros (16-10-1905 – 10-9-1968), acompanhado pelo futuro advogado provisionado Gastão Correia que se encarregou de redigir a publicação, juntamente com o poeta Otoniel Menezes.
187
Gastão Correia e Otoniel Menezes nada tinham de formação marxista: eram sonhadores, fora da realidade, com dias melhores para o Brasil. Otoniel Menezes foi realmente, nesse episódio, um “poeta” no significado popular do termo, um sonhador. Desse nosso maior poeta, falecido há algum tempo na Guanabara, se identifica no estilo vibrante e no vigor da expressão, a manchete que se lê, nesse número único do jornal dos revoltosos, logo abaixo do respectivo título:
“Enfim, pelo esforço invencível dos oprimidos de ontem, pela colaboração decidida e unânime do povo, legitimamente representado por soldados, marinheiros, operários e camponeses, inaugura-se no Brasil a era da Liberdade, sonhada por tantos mártires, centralizada e corporificada na figura legendária – onipresente no amor e na confiança divinatória dos humildes – de Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro do Esperança.”
188
Esse número de A Liberdade trás ainda na primeira página um artigo com o titulo Sob a Aleluia Nacional da Liberdade e ainda outro Delenda Fascismo. Suas segundas e terceiras páginas estão cheias de matéria variada sobre a revolução e a quarta está evidentemente falha de matéria, com reclames da revolução em letras garrafais para tomar espaço, que, mesmo assim, ainda sobrou e foi preenchido com o reclame, obviamente gratuito, do Sal de Fruta Eno.
189
Possuímos em nosso arquivo e iremos doá-lo ao Instituto Histórico do Estado um exemplar desse jornal que até a direção da Imprensa Oficial ter passado, no governo José Varela, ao dr. Romildo Gurgel, podia ser encontrado ali em grande número para quem quisesse folhear ou levar consigo. Entendo, guardando esse número, como um precioso documento histórico muito curioso. E em sua folha 3ª está publicado o hino da Aliança Nacional Libertadora, cuja autoria nos é desconhecida e é cantada com a música do Hino da República.
190
E sobre essa agremiação política, tão sistematicamente acusada de instrumento do comunismo internacional, Hélio Silva – que de referência ao seu passado político, se declara um “carcomido”, num dos seus livros de “O Ciclo de Vargas” e, portanto, um conservador insuspeito – escreveu estes conceitos, op. cit., vol. VIII, pág. 43:
“Generalizado, embora, esse conceito não era unânime. Havia democratas sinceros que repeliam o totalitarismo da direita, vendo a ameaça iminente de um governo de força, implantando a ditadura no terreno fértil do descontentamento. Os elementos da esquerda, socialistas e comunistas, mais informados, sentiam a necessidade de formarem uma frente ampla de resistência no perigo comum.
Assim nasce a Aliança Nacional Libertadora. Não era um órgão comunista. Nem comunistas foram seus dirigentes. A aclamação de Luiz Carlos Prestes não cumpria uma determinação do COMINTERN. Nem ele, ausente do Brasil, estava em ligação com os aliancistas. Era quem mais alto representava a esperança do povo em dias melhores. “Foi o herói que aclamaram, não o chefe comunista.”
Esse é um testemunho insuspeitíssimo de quem escreveu muitos volumes sobre o que ele chamou o “Ciclo de Vargas”, através de uma documentação impressionante, manteve sempre uma imparcialidade quase sobre humana na apreciação dos fatos e dos homens, desde 1922 a 1938 com a revolta integralista.
191
É ainda desse grande historiador contemporâneo um retrato preciso dos acontecimentos então desenrolados:
“A difícil conjuntura econômica do Nordeste dava eficaz cobertura às atividades da ANL. Também a crise política, constante em todos os Estados, na fase de reconstitucionalização, falava mais eloqüentemente que os caravaneiros clamando Pão, Terra e Liberdade. No Rio Grande do Norte realizara-se uma campanha violenta em torno da eleição indireta do governador. Presidira o pleito como interventor Mário Câmara, que denunciava a Vargas, muitos meses antes, o perigo da rebelião. Procurava eleger-se e contava com as simpatias do Presidente. Combatido pelos elementos tradicionais da política local, chefiados por José Augusto Bezerra de Medeiros, aproximou-se à última hora, das forças da oposição, representadas por João Café Filho e Kerginaldo Cavalcanti. Depois a sua candidatura foi afastada pela do des. Elviro Carrilho, do Tribunal de Apelação carioca, mas potiguar de nascimento. Saiu triunfante a facção de José Augusto, elegendo Rafael Fernandes. O acordo das Oposições foi mantido para as eleições dos deputados federais e estaduais. Café Filho veio para a Câmara dos Deputados” (op. cit., págs. 279/280).
Retrato exato: eleito, o Des. Elviro Carrilho teria pacificado o Estado. Homem simples, magistrado sereno, sem nenhuma vinculação partidária, seria o seu anjo da paz. José Augusto, pela ambição de voltar de novo a governá-lo, não cedeu. Jamais, porém, realizaria sua ambição, pois apenas conseguiu se reeleger depois deputado federal e da última tentativa foi derrotado e para encobrir a decadência de seu prestígio justificou a derrota como fruto de uma fraude eleitoral.
192
Continua o quadro descrito por Hélio Silva:
“A vitória de Rafael Fernandes colocou a quantos se congregaram em torno do antigo interventor na situação de vencidos. A combatividade desses elementos que representavam a corrente pós 30, em oposição aos antigos políticos que reconquistavam o poder, as vinculações pessoais de Mário Câmara com o Presidente Vargas, criaram a perspectiva de que Rafael não tomaria posse.
A tensão política chegou a tal ponto que o comandante da Região, Gen. Manuel Rabelo, descolou-se de Recife para Natal” (op. cit., pág. 280).
Era, em verdade, crença generalizada entre os mais combativos oposicionistas a José Augusto que Rafael Fernandes ou não tomaria posse ou seria substituído por um interventor na eventualidade de um levante no Estado. Daí aquele movimento de Baltazar Meireles, na zona Oeste, que ficou isolado, indo seu chefe residir em Goiás, depois de processado pela polícia de Rafael Fernandes como envolvidos no levante vermelho, eclodido quase um mês depois. (¹)
193
Como já se viu, a presença do comandante da Região, Gen. Manuel Rabelo, às vésperas da posse de Rafael, além de relacionada pela situação alarmante do Estado, foi conseqüência também da denúncia de perturbação da ordem que o Comandante da Polícia de Mário Câmara, Ten. Aluizio Moura foi, pessoalmente, levar aquele general e que partiriam de elementos cafeistas, inclusive, componentes esses da Guarda Civil e que era, irregularmente, armada de fuzil.
_____________
(¹) A opinião de Hélio Silva e a nossa sobre como se processou a repressão neste Estado do movimento de novembro de 1935 é adotada também por Richard Levin no seu livro The Vargas Regime – The Critical Years – 1934-1938 – Columbia University Press – 1970. A pág. 109, escreve esse autor; referindo-se ao governador Rafael Fernandes:
“Nely confident ordered the arrest of all suspicions persons.”
É que o Dr. Mário Câmara, homem conservador e de imensa boa fé, sempre teve tendências contrárias às das alas radicais da Revolução de 30 a que se filiava Café Filho. Organizou um secretariado nessa base e andou, no início de seu governo, em conchavos com os correlegionários de José Augusto. Um dos seus Secretários, o da Educação, Anfilóquio Câmara, seu primo, além de outros auxiliares, eram ligados aos políticos decaídos e todos foram mantidos nas Secretarias, até o fim de sua interventoria. Esses Secretários, inclusive o Chefe de Polícia, Dr. Potiguar Fernandes (fiscal de consumo, boêmio e gozador) estavam ligados, assim, aos políticos tradicionais, que, dadas as substituições sucessivas de interventores com a respectiva descontinuidade de orientação partidária, cresceram de prestígio e se arvoraram a empalmar o poder no Estado, até com tentativas de deposição de Mário Câmara.
194
Numa dessas tentativas, em dias de fevereiro de 1935, à meia noite, esteve na Vila Cincinato, residência do Interventor uma comissão de oficiais do 21 BC, insinuando a renúncia deste, no que foram repelidos e não teve maiores conseqüências porque um navio da Armada Nacional, surto no porto, fez o pedido do intimado, descer à terra parte de sua guarnição, devidamente aparelhada para manter a autoridade do delegado do Governo Federal. As nove horas do dia seguinte, passada toda a noite em vigília, Dr. Mário Câmara, em minha presença, na Vila Cincinato, telefonou para o Sr. Anfilóquio Câmara, dizendo-lhe que poderia vir procurá-lo que ele ainda não fora deposto. . .
Era dessa fibra a maioria do Secretariado de Mário Câmara. Mesmo assim, foram todos mantidos até quando ele deixou a interventoria, em cuja intimidade nada se passava que seus adversários políticos não soubessem imediatamente.
195
O livro História de Uma Campanha, prefácio do Dr. José Augusto, é, nesse particular, uma condensação de fatos, totalmente invertidos e todos completamente desfiguradores da realidade. Por exemplo: ali se afirma que Vital Correia fora preso e espancado em Baixa-Verde pela Polícia local. Eu me encontrava na localidade. Vital Correia, que sempre foi um homem violento e extremado em política, armado ostensivamente de revólver, em pleno Mercado Público, desafiava em altos brados a Polícia e seus adversários políticos. Foi, naturalmente, desarmado e apenas levado á cadeia publica, onde foi, ao chegar, posto em liberdade, perdendo apenas o revólver, por intervenção direta do Prefeito Antônio Justino, por solicitação minha.
196
Em contraste, narrou-me o Dr. José Bezerra de Araújo, político udenista que chegou a exercer a senatoria pelo Estado e que pegou em armas contra o movimento de novembro de 1935, que, após sua derrocada, elementos do Partido Popular tiraram da cadeia de Currais Novos presos de justiça que lá se achavam e os que eram adversários políticos foram sumariamente fuzilados, depois de conduzidos a lugar ermo, fora da cidade.
Não resta dúvida que a campanha do Partido Popular foi o equívoco político mais prejudicial que ocorreu na história do Rio Grande do Norte. Que Mário Câmara pretendia pacificar o Estado prova-o a carta em anexo, por ele dirigida a Getúlio Vargas logo que assumiu a Interventoria.
A REPRESSÃO
197
Outra vez, Hélio Silva:
“A revolta instalada no sábado manteve seu domínio até a quarta-feira. Além de Natal, ocupara as cidades de Ceará-Mirim, Baixa-Verde, S. José de Mipibú, Santa Cruz e Canguaretama. Então já se sabia da reação em Pernambuco. Não havia esperança de reforços. Os rebeldes tinham organizado três colunas. Uma dirigia-se a Recife, outra a Mossoró. A terceira embrenhou-se pelo sertão com destino a Caicó. Esta transportava num caminhão alguns soldados e civis. Um chefe sertanejo, Dinarte Mariz, que tinha uma frota de caminhões, organizou sua gente e surpreendeu o transporte revolucionário na Serra do Doutor, dizimando seus homens. As outras colunas não prosseguiram. Seus soldados debandaram ou foram aprisionados.
Tropas do Exército e das Polícias dos Estados vizinhos ajudaram a restabelecer a ordem, voltando a governar Rafael Fernandes. Começou a apuração e a depuração. Os adversários políticos da situação foram presos juntamente com os que haviam tomado parte na revolução. Encheram-se as prisões. Iniciou-se a remessa de detentos para o Rio. São s personagens de Graciliano Ramos. Nem os chefes políticos de renome como Café Filho e Kerginaldo Cavalcanti escaparam da acusação. Quem estava contra o Governo era comunista”(Op. cit., págs. 283-284).
198
Logo que triunfou a revolta em Natal, os vitoriosos se dirigiam a Macaíba, caminho para Ceará-Mirim na época; entraram sem resistência. Eram acompanhados por alguns correligionários de José Augusto, dos quais muitos tomaram parte na revolução, não porque comunistas, mas porque pensavam se tratar de depor Getúlio Vargas. O mesmo acontecera com muitos dos seus adversários locais: pensavam se tratar de depor Rafael Fernandes. . .
Somente que os primeiros nada sofreram e os segundos, mesmo os que nada tiveram com o movimento, mas tinham qualquer significação social, foram, de cambulhada, detidos e processados.
199
Em Macaíba, por exemplo, Paulo Teixeira, populista de prestígio em Lages, onde era proprietário, entrou à frente dos revoltosos que estabeleceram num salão térreo de um sobrado seu quartel general. E em cima permaneceu João Severino da Câmara, amigo de Paulo Teixeira, que saira de Baixa-Verde. Ficou resguardado perfeitamente. E como, quando dos depoimentos tomados ali, apareceu o nome de Paulo Teixeira, o escrivão Cornélio Leite, propositadamente (já tinha uma péssima letra) a fez tão ilegível que não pôde depois serem decifrados muitos trechos do que fora escrito.
200
Tantos envolvidos teve esse populista Paulo Teixeira na revolta (nada sofreu e nem seu nome sequer apareceu em processo) que levou um dos principais elementos militares revoltosos para uma de suas fazendas em Lages, o cabo Giocondo, depois militante ativo do Partido Comunista Brasileiro. Lá ficou ele ao abrigo de prisão durante mais um ano. Posteriormente, porém, se desavindo com o proprietário, depois de uma tentativa de morte em que o protegido foi ferido a punhal, foi entregue à Polícia.
201
De Macaíba os revoltosos rumaram a Ceará-Mirim, numa coluna de militares e civis, entre estes Benilde Dantas e Sizenando Filgueira, Ramiro Magalhães, ainda de menoridade. Dirigindo um automóvel dos muitos apresados pelos revoltosos chegou a Ceará-Mirim fardado do Exército e acompanhado de militares também, Vital Correia, correligionário de José Augusto. Seu nome não apareceu nos inquéritos.
202
Uma coluna chefiada por Sizenando Filgueira foi até muriú e lá pôs debaixo de ordem aos Drs. Nestor Lima e Otávio Varela. Nessa coluna foi também Raimundo Antunes, não porque fosse comunista, mas como um dos que pensavam se tratar da deposição de Rafael Fernandes.
Raimundo Antunes que era cafeista por isso foi processado e condenado. De volta de Muriú, marchou ele com Sizenando para volta a Natal, face aos boatos que já corriam. Tiveram, antes de atravessar a ponte de Igapó, a certeza do fracasso. Sizenando continuou para Natal, havendo ficado escondido por muitos meses até ser preso nas vizinhanças do Alecrim e Raimundo retornou a pé para Ceará-Mirim. Lé se refugiou no engenho Umburana e vizinhanças, passando cerca de três meses dentro dos canaviais, dia e noite, para depois esconder-se em Poço Branco, na proteção de um pobre agricultor, dormindo num buraco, coberto com uma cama. Não foi preso até que veio a anistia.
Não cometera nenhum crime, a não ser, propriamente, adversário de Rafael Fernandes.
203
De Ceará-Mirim partiu uma coluna comandada por Benilde Dantas para Baixa-Verde, em cujas proximidades houve ligeiro tiroteio com a dispersão imediata dos defensores. Tomada a cidade, assumiu o controle dela, pelos revoltosos, uma praça do 21 BC, Manuel Alberto da Silva Filho, que se apresentava sob o falso nome de “Tenente Lins”. De Baixa-Verde, Benilde Dantas retornou e foi comandar a coluna que se dirigiu ao Seridó. Da Serra do Doutor onde sua coluna foi contida, ele teve conhecimento do fracasso da revolta e então, a pé, empreendeu uma caminhada de volta a Ceará-Mirim aonde conseguiu chegar muitos dias depois, maltrapilho e faminto, se escondendo de dia e andando de noite.
Refugiou-se no engenho Cajazeiras de um seu tio, João Dantas, ainda vivo, passando ali ainda três meses dentro do canavial. Por intermédio de Alfredo Edeltrudes conseguiu embarcar num bote de pescaria que o foi deixar nas costas de Olinda e daí conseguiu chegar até o Rio, onde ficou sob a proteção de seu cunhado Comandante Bertino Dutra, ex-interventor neste Estado. Depois de anistiado foi nomeado fiscal de consumo, falecendo muitos anos depois e deixando a tradição de poeta inspirado com um livro de versos em que canta, principalmente, a magia dos engenhos e dos canaviais de Ceará-Mirim, terra onde nasceu.
204
Duas vezes naquela sua obra citada (pág.315) diz Hélio Silva que “a rebelião de Natal fora provocada e precipitada” e à pág. 319 que “os revolucionários de então admitem, até hoje, que a eclosão do movimento foi precipitada pelos agentes do próprio governo”. A esse propósito há a considerar o seguinte: No livro Meu Depoimento, o Dr. João Medeiros faz transcrever dois dos bilhetes que um misterioso agente e chefe comunista de Natal, denominado BLUCHE escreveu determinando o fuzilamento dos integralistas.
Bem possível que esse BLUCHE é que tenha sido o agente provocador intempestivo da revolta aqui, porque admira que a repressão policial não tenha conseguido identificar e prender tal elemento: os chefes civis e militares do movimento que foram todos presos necessariamente sabiam a identidade desse BLUCHE. Porque então a Polícia se omitiu de perquirir esse pormenor, não teve qualquer interesse na identificação desse personagem misterioso? Não seria possível presumir que os elementos que aqui se revoltaram, civis e militares, recebessem instruções e ordem de quem desconheciam totalmente para em seus depoimentos não esclarecerem de quem se tratava. Possivelmente, esse BLUCHE foi esse agente da própria Polícia infiltrado no PC e que tinha a missão de provocar no interesse do governo o levante fadado ao fracasso.
205
A Polícia, na repressão à revolta e nos interrogatórios, sequer fez menção ao nome desse BLUCHE. O livro do Dr. João Medeiros trás dois clichês com dois bilhetes encontrados no quartel do 21 com assinatura dele. Esse personagem, portanto, existiu. Apenas não o procurou a polícia e nem teve nenhum interesse em identificá-los, embora subscrevesse ordens de fuzilamentos. . .
Da mesma forma, se verifica que, nem sequer, ao relatar os diversos inquéritos policiais abertos, a Polícia referiu ou mencionou esse nome BLUCHE (assim constando daqueles clichês do livro Meu Depoimento, do então Chefe de Polícia Dr. João Medeiros Filho, Imprensa Oficial, 1937, págs. 53 e 57 e v.), tanto que a principal denúncia oferecida ao Tribunal de Segurança Nacional sobre esse movimento, englobando cerca de 160 implicados, inclusive todos os chefes e dirigentes dele, civis e militares, em data de 3 de setembro de 1938, pelo Procurador interino da República, Carlos Gomes de Freitas (folheado em documento impresso em 42 folhas de papel, tamanho almaço) e em que se descrevem não só fatos que o antecederam como os que ocorreram durante ele, pormenorizadamente, não traz nenhuma a esse BLUCHE.
206
Tão minucioso é o histórico dos fatos, que a denúncia lamenta não ter sido a investigação policial feita a contar da interventoria Hercolino Cascardo, embora esse ilustre oficial de nossa Armada, com sua mentalidade progressista e com tendências socialistas, se não possa confundir com o extremismo vermelho. E no governo se cercou de elementos tradicionais e respeitáveis, fazendo uma administração profundamente honesta e liberal.
Assim como o nome de BLUCHE não figura nas conclusões dos inquéritos abertos pela Polícia do Dr. João Medeiros, também nelas não aparecem os de muitos adeptos do Partido Popular que elegeu governador o Dr. Rafael Fernandes e que sabidamente tomaram parte nesse movimento, embora, como já se afirmou, não se pudessem dizer senão oportunistas.
207
O primeiro dos bilhetes de BLUCHE, ditos encontrados no Quartel do 21 BC e estampados naquela publicação, estava assim redigido: “Companheiro Quintino:Você aja com toda atividade. . Tudo quando você quizer se informar faça por meio destes companheiros que são de confiança. O Chefe de Polícia vocês façam logo o serviço. Nós estamos firmes e estamos levantando o ânimo da massa. O governo revolucionário só amanhã, pois hoje estou em reunião. (a) Bluche.”
E o outro bilhete: “Cordeiro: Vocês não deram tempo que se mobilizar as nossas Forças. Você estava com sede. Muito bem toque para diante. Estamos trabalhando no sentido de levantar as massas. Não confie em nenhum oficial. Já enviamos mais de cem homens para aí. Já demos instruções aos camaradas no sentido de liquidar os integralistas. Haja com toda energia. Viva o 21 BC. Viva L. Carlos Prestes. Viva o Exército Brasileiro que nunca traiu o povo. BLUCHE. Ano 1º da Revolução no Brasil. mande-me dizer se já seguraram o comandante da Polícia Militar.”
Tudo está conforme o “clichê.”
208
A publicação em que estão inseridos esses bilhetes em “clichês” é de 1937. Todos os inquéritos policiais que apuraram os acontecimentos de novembro de 1935 foram logo terminados. Os originais desses bilhetes – encontrados no quartel do 21 BC – após a jugulação da revolta ficaram, portanto, desde aí, em poder da Polícia, do Chefe de Polícia. E porque não foram instruir aqueles inquéritos como documentos de grande importância? E qual a explicação de terem servido apenas para sua publicação nesse livro do então Chefe de Polícia quase dois anos depois?
Há duas alternativas: ou esse “Bluche” fora, assim encoberto, um agente provocador do governo e este não tinha interesse em identificá-lo ou esses bilhetes foram “fabricados” para dar relevo à atuação do autor do livro na qualidade de Chefe de Polícia. A primeira hipótese é a mais provável, embora a segunda tivesse também como a finalidade mostrar as intenções sanguinárias dos revoltosos contra os quais conforme frisa o referido Hélio Silva se atribuíram muitos crimes, inclusive atentados a moças que nunca aconteceram. E mesmo alguns dirigentes revolucionários usaram pseudônimos como “Buda” e “Santa” em ordens de requisições etc. tais bilhetes também devem ter sido encontrados, mas também não figuraram nos inquéritos, tanto que a denúncia oferecida, minuciando todos os fatos, não alude a esses pseudônimos.
209
A revolta vermelha de 1935 como escreve Hélio Silva (op. citada, pág. 44), foi reprimida a ferro e a fogo. Foram cometidas aqui toda a sorte de injustiças, atrocidades e até fuzilamentos.
Houve, é certo, políticos potiguares, absolutamente não comunistas que, impensadamente, deram ao movimento certa colaboração ou com ele simpatizaram ou lhe foram indiferentes no sentido de não hostilizá-lo. Muitos a imaginavam útil à derrubada de Rafael Fernandes do governo estadual e não ponderaram no poder de barganha e na fria impassibilidade de Getúlio Vargas face a acontecimentos políticos que sempre que ele podia orientava exclusivamente no sentido de permitir-lhe a permanência no poder sem compaixão para as vítimas dessa política e sem nenhuma consideração de ordem pessoal nessa maquiavélica orientação. Mais tarde ele provaria essa feição de seu caráter comparecendo num palanque, em público, na companhia de Luiz Carlos Prestes. E Plínio Salgado provou o gosto amargo do getulismo ao se embair de confiança naquelas palavras com que enganou o Sigma, visitante do Catete, logo após o golpe do Estado Novo: “Vós sois a esperança verde do Brasil.”
210
Contou-me o Dr. Francisco Martins Veras, à época desses acontecimentos, deputado federal pela Coligação Mário Câmara – Café Filho que durante os dias em que a revolta dominava Natal, ele freqüentava o Catete e numa das conversas com Getúlio que lhe perguntava pelo paradeiro do governador Rafael Fernandes, o Presidente teve a seguinte piada a propósito: “Rafael deve ser chamado pro edital”. . .
211
Um documento oficial retrata o quadro de injustiças que prevaleceu no Rio Grande do Norte sob o pretexto de repressão ao movimento de novembro de 1935. São as palavras do Procurador Himalaia Virgulino ao se pronunciar no Processo n. 11, em que se apuraram os acontecimentos relativos aos municípios de Ceará-Mirim, Taipu, Touros, Baixa-Verde, Lages e Angicos:
“No momento em que toda a nação estava inteiramente interessada em sufocar o extremismo no Brasil, era de esperar que, nas diligências procedidas fosse esquecido qualquer rancor ou interesse político partidário. Tal, entretanto, não ocorreu.
Depreende-se, sem esforço, dos presentes autos que houve preconstituido propósito em apurar-se menos a responsabilidade dos que, no Estado, pertenciam à “Aliança Nacional Libertadora” sob cuja bandeira política se fizera a revolução do que o de, sob a égide de reação ao comunismo, eliminar vultos de maior valor nos municípios em oposição ao partido dominante no Estado e solidários com o Governo Federal.”
.................................................................................................................................
“Três adversários de vulto foram imediatamente atingidos pelas diligências policias: - Luiz Varela, ex-prefeito de Ceará-Mirim, durante o governo do interventor Mário Câmara; José Carrilho da Fonseca e Silva, irmão do desembargador Elviro Carrilho, candidato do partido então dominante para governador do Estado e o Dr. João Maria Furtado, juiz de direito da comarca de Baixa-Verde.
.................................................................................................................................
“Luis Lopes Varela merecera aprimorado empenho do delegado especial para ser envolvido na rebelião extremista. Prefeito da época da interventoria, dispondo de fartos recursos, de homens e munição, usineiro abastado, chefe político de subido prestígio e mais do que tudo, irmão do Procurador da República em exercício, não podia ser esquecido.
Era o momento de aniquilar o adversário e de impor ao procurador a sua suspeição no processo, favorecendo a oportunidade de nomear-se outro procurador à feição e que coroasse de pleno êxito o plano político partidário.
Era mister que fossem denunciados todos os adversários do governo estadual, cujos nomes aparecessem no processo mesmo por testemunhas de encomenda e de ouvida vaga.”
.................................................................................................................................
Maior perseguição foi movida contra o juiz de direito da Comarca, Dr. João Maria Furtado. Estava esse Juiz a praia de banhos de “Cajueiro”, distante quatro léguas, mais ou menos, de Baixa-Verde, quando foi invadida essa cidade, assumindo o governo proletário a praça do 21 BC, Manuel Alberto da Silva Filho, vulgo “Tenente Lins”.
Fracassado o movimento no dia 28, foi mandado prender pelo delegado especial e conduzido a Baixa-Verde onde se lavrou um auto de prisão em flagrante (Fls. 120), apresentado ao juiz que recusou assiná-lo.”
As declarações desse magistrado, de fis. 352 a 359 v. bem esclarecem a série inominável de humilhantes violências sofridas do Sr. João Câmara.”
As transcrições feitas constam daquele Processo n. 11, julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional, e também da DEFESA do então deputado pela “Aliança Social” que reuniu os maristas e cafeistas no Estado, Amancio Leite, e sob o título Carta Aberta divulgada em folheto impresso na tipografia Nordeste, rua Cel. Vicente Sabóia, 17, Mossoró, 1938.
212
Esse parecer do Procurador da República, Dr. Himalaia Virgolino, concluiu pedindo a exclusão da denúncia de numerosos acusados o que foi unanimemente deferido pelo Tribunal de Segurança Nacional, em acórdão de 10 de agosto de 1937 que concluiu assim:
“Vistos e relatados estes autos de processo n. quatro do Rio Grande do Norte, em que são acusados Benilde Dantas e outros. Atendendo que o Dr. Procurador deixou de oferecer denúncia contra vários indiciados, conforme se vê de fis. doze; atendendo a que compete ao Tribunal decidir sobre o pedido de arquivamento de inquérito ou exclusão da denúncia, quando um ou mais réus que figurem no inquérito ex vi do disposto no artigo décimo número sexto do Regimento Interno; Atendendo aos elementos constantes do inquérito policial; Acordam os Juízes do Tribunal de Segurança Nacional, por unanimidade de votos, deferir a exclusão da denúncia pedida pelo doutor Procurador, em relação aos acusados José Carrilho da Fonseca e Silva, Horónio Varela Buriti, Mauro Varela da Fonseca e Silva, João Ferreira Cabral, Raimundo Alves Ferreira, Climério Ferreira Cabral, Mário Alves, Francisco Machado Dantas, Luiz Lopes Varela, Manuel Marçal, João Mateus, Misael Coelho, Manuel Sebastião, Luis de Matos, Valdemar Antunes Quirino de Melo, João Maria Furtado, Antônio Justino de Sousa, Manuel Rodrigues das Chagas, Orlando Nicácio da Cunha, Alcides Antônio de Oliveira e José Vicente. Sala das Sessões, Março, dezessete, de mil novecentos e trinta e sete (aa.) Barros Barreto, Presidente e Relator. Costa Melo, Juizes Lemos Bastos, Braga e Raul Machado.”
Guardo certidão desse acórdão, devidamente transcrita no Livro B-26 do Registro de Titulos e Documentos, fls. 82v. n. de ordem 4.556, em data de 4 de março de 1947, no Segundo Oficio de Notas de Natal, do tabelião Paulo Mesquita.
213
Na cidade de Santa Cruz o inquérito foi tão vergonhosamente organizado que os depoimentos (oito testemunhas) eram todos os mesmos, verbo ad verbum, sem uma palavra a mais ou menos em todos eles. Tradução: foram “fabricados” para posterior assinatura das testemunhas. Assim, todos os elementos importantes que anteriormente haviam tomado posição política contrária ao Partido Popular que elegeu o Governador Rafael Fernandes foram deliberadamente envolvidos em investigações policiais como tendo participado do movimento extremista.
Não ficou um só município do Estado em que isso não aconteceu. Era preciso liquidar com o adversário político: abertas as investigações era os investigados detidos desde logo ou teriam para evitar a prisão que se foragir para os Estados vizinhos.
214
Aquela publicação do deputado Amâncio Leite se originou de um processo policial aberto já nos meados de 1936. Muitos meses após a derrocada da revolução extremista, surgiu nos municípios de Macau e Mossoró a primeira guerrilha vermelha da América, a antecessora de Che Guevara. Elementos operários das salinas entre eles Manuel Torquato num gesto evidentemente suicida sob o comando do advogado provisionado Miguel Moreira penetraram na caatinga desses dois municípios e chegaram a assaltar propriedades e até ônibus das carreiras regulares para Mossoró, travando diversos choques com a Polícia. Morto Manuel Torquato, traiçoeiramente, por um dos componentes da guerrilha, os demais foram presos sendo que Miguel Moreira perdeu um olho na permanência de alguns meses em continua movimentação nessa louca aventura.
215
Aproveitando esse episódio a repressão abriu inquérito e alguns dos componentes desse grupo de guerrilha, debaixo de torturas inflingidas pelo sargento Valdomiro Alves, foram forçados a responsabilizar alguns deputados da Oposição com assento na Assembléia Legislativa como fornecedores de armas ao grupo. Entre esses deputados estavam Amâncio Leite, residente em Mossoró e Benedito Saldanha, residente em Alto Santo, no Ceará, onde possuía uma grande propriedade. Era mais um pretexto para inutilizar alguns adversários políticos.
216
Deputados estaduais tinham então como ainda agora imunidades parlamentares – somente poderiam ser processados mediante licença do respectivo corpo legislativo. Então contra aqueles dois deputados e mais o Dr. Raimundo Ferreira de Macedo, eleitos pela Coligação Mário Câmara – Café Filho, foi requerida aquela licença. Em relação ao último, envolvido nos inquéritos policiais por outra acusação que não a mesma dos primeiros, a Assembléia por 17 votos negou a licença e em relação aos dois primeiros houve empate no plenário, cabendo votar desempatando o seu presidente que era o Monsenhor João da Mata Paiva, empedernido político, filiado ao Partido Popular.
Dada a natureza da matéria, o voto então seria o chamado de Minerva, favorável ao acusado, mas foi ao contrário: votou pela concessão da licença, escandalizando os meios jurídicos do Estado.
217
E mais uma prova de mentalidade sectaria desse sacerdote atuando como político: envolvido injustamente nas investigações sobre esse levante, fui preso por um destacamento do Exército, guiado por Luiz Cordeiro, civil a serviço e da confiança do chefe político populista de Baixa-Verde, João Câmara, na praia do Cajueiro, no município de Touros onde me encontrava veraneando com minha família, a do meu cunhado Domingos Romano e a do meu pai, há cerca de 15 dias. Em conseqüência, o Governador baixou ato me afastando das funções do cargo de juiz de direito daquela comarca, o que era, afinal, a meta do meu envolvimento como participante da revolta.
218
Excluído da denúncia, em março de 1937, retornei ao Estado e requeri ao Governador a revogação do ato de novembro de 1935 que me afastara das funções de Juiz de direito. O Dr. Rafael Fernandes se encontrava no Rio e assumira o Executivo Potiguar aquele sacerdote que se omitiu por quase 30 dias a despachar meu pedido, ensejando-me requerer Mandado de Segurança que, antes de ser informado, produziu o efeito desejado: o Diário Oficial do Estado de 27 de maio de 1937 publicou ato, assinado por aquele sacerdote, revogando o anterior n. 184, de 30 de novembro de 1935, permitindo-me reassumir minhas funções.
O executivo não teria nenhum pretexto a alegar como informação a contestar o direito pleiteado.
219
Na transcrição de trechos da denúncia do Procurador Himalaia Virgolino, no Processo n. 11, feita no n. 209, está fixada minha posição e situação em relação ao movimento extremista de novembro de 1935. Chegando a Baixa-Verde sob escolta militar, que me foi intimar a regressar de Cajueiro, constatei, de imediato, a completa anarquia e desorganização ali e me apresentei ao “Tenente Lins” que (fardado), se achava dentro do prédio da Prefeitura e lhe pedi permissão para me corresponder telegraficamente com meu concunhado Sandoval Capistrano, residente em Natal, no que fui atendido.
220
Constatei também que a firma comercial de João Câmara estava com algumas portas arrombadas e sendo saqueada por muita gente. O espetáculo que percebi à distância me encheu de repugnância. Sebastião Félix, escrivão do único cartório e adversário da situação e que me pareceu simpático ao movimento, embora condenando o saque, me informou que fora ordenado pelo “Tenente Lins” como uma represália à residência armada tentada sob a direção de elementos da firma à entrada dos revoltosos na cidade, ocorrendo então rápido tiroteio.
221
Ao apresentar-me ao “Tenente Lins”, juntamente com o Dr. José Siqueira de Medeiros, promotor da comarca, logo à chegada, e declinando nossos nomes e funções, ele, nos retrucou que pertencíamos aos partidos decaídos e que, portanto, devíamos resguardar-nos de atitudes contrárias ao movimento vitorioso. Era pela manhã do dia 25 de novembro.
222
Verifiquei, de logo, que tudo era uma completa desorganização e que nada restava a fazer senão retornar para onde se achava minha família. Para isso mandei procurar um transporte e só consegui à noite um caminhão particular de um meu amigo Francisco Inácio de Melo. Almocei juntamente com o Dr. José Siqueira em casa do velho servidor federal João Alfredo, coletor geral e correligionário do ex-interventor Mário Câmara. Depois recolhi-me à casa de meu cunhado Domingos Romano, cuja família também se achava em Cajueiro e juntamente com ele, à noite, retornamos àquela praia.
223
Nesse transporte de Francisco Inácio de Melo, voltou a Baixa-Verde, Manuel Bezerra Galvão, parente de meu pai e humilde servidor da Prefeitura de Baixa-Verde e que me acompanhara a Cajueiro para evitar de ser alvo de qualquer perseguição na minha eventual ausência da cidade. Com as notícias que foi colhendo pelo caminho, procurou chegar à casa ocultamente, embora nada tivesse com a revolução, pois estava em Cajueiro há 15 dias. Foi porém, procurado imediatamente para ser preso e tece que fugir, até que com a anistia pôde voltar ao seu cargo. Não deixou, porém, de ser mais uma vez perseguido. Foi ilegalmente demitido, mas a Justiça lhe deu ganho de causa e hoje tem uma pequena aposentadoria como ex-procurador de impostos municipais.
224
Em Cajueiro, fiquei aguardando os acontecimentos, porém, tendo a certeza de que seria alvo de grandes vexames. Mas, com o destemor e a coragem dos que tem consciência limpa, recusei refugiar-se das perseguições que chegariam em breve. Na madrugada de terça para quarta-feira, 27 de novembro, recebi por duas vezes, um após outro, dois recados por um portador a cavalo de André Gomes de Sousa (1º-2-1885 – 28-12-1956), proprietário em Touros e pessoa com quem tinha poucas relações de amizade, oferecendo-se para ocultar-me em suas propriedades o que recusei, inclusive, porque, aceitando essa oferta, daria a entender ser culpado de algum delito.
225
Para o momento vivido no Rio Grande do Norte então, esse gesto de abnegação foi um ato de surpresa coragem e desprendimento. Jamais o esquecerei. André Gomes de Sousa há muitos anos descansa em paz no cemitério de sua humilde terra, que é Touros, e como não tive em sua vida a oportunidade de demonstra-lhe, de pagar-lhe esse favor que tentou prestar-me com espontaneidade generosa e altruística, devo-lhe este registro, a significar um In Memoriam para que sua lembrança sobreviva um momento que seja nos que venham a ler estas páginas e possam recordar esse nome que é o que um grande homem que, de tão humilde, sequer compreendia a grandeza de sua nobre ação.
226
Começava para mim, uma longa via crucis de atribulações e sofrimento. Para mim e para minha família.
Na quinta-feira, 28 de novembro, um caminhão com soldados do Exército, guiado por Luiz Cordeiro, um guarda-costas atrabiliário de João Câmara, foi prender-me e a meu cunhado Domingos Romano, em Cajueiro. Retornamos todos com nossas famílias também que nada mais tinham a fazer ali. Descemos em Baixa-Verde frente à Prefeitura, em cujo interior, se apinhavam populares e soldados do Exército e da Polícia, cumprindo todos as ordens dadas pelo Coronel João Câmara que fardado de capitão do Exército, comandava, do local, a repressão. A entrada de cada detido, ele prorrimpia em recriminações, aos gritos. Pretendeu fazer comigo e meu cunhado a mesma encenação de autoridade e prestígio, mas não conseguiu porque, repliquei-lhe altivamente e no mesmo tom de voz, exprobando-lhe as arbitrariedades que vinha cometendo. Ficou do episódio uma sensação na assistência e que mais tarde me foi relatada por alguns dos espectadores.
227
Com esta altivez pública ante a arrogância que a força e as circunstâncias faziam crescer na mentalidade daquele típico senhor de baraço e cutelo, ele se aquietou. Imediatamente fui recolhido a um quarto do prédio onde já se encontrava detido também Antônio Justino de Sousa, ex-prefeito do município na interventoria Mário Câmara, por sua vez vítima de insensata injustiça.
228
Pouco mais tarde, recebi ali um bilhete assinado pelo Capitão da Polícia Militar, Severino Raul Gadelha, designado como Delegado Especial para o inquérito, chamando-me para assinar um auto de prisão em flagrante que fora mandado lavrar contra mim. Naturalmente, como consta no parecer do Dr. Himalaia Virgonlino, recusei-me a essa assinatura.
229
Guardei, porém, esse bilhete como uma relíquia a provar por si só a falsidade desse flagrante, cujo auto fora lavrado na ausência do “flagrado”. . . Cumpre notar que aquele Delegado Especial estava assessorado pelo bacharel Abilio Cesar Cavalcante, que no governo Juvenal Lamartine se celebrizara por presidir todos oos inquéritos do “Esquadrão da Morte” da época: o fuzilamento dos dois elementos do bando de Lampeão quando atacou Mossoró, os quais, feridos, caíram prisioneiros, concluindo o inquérito policial que eles se haviam suicidado, e o assassínio de Francisco Pereira, a que já fiz referência, quando seguia escoltado e algemado da Cadeia de Macaíba para responder júri em Acari e foi a única “vítima fatal” de um “desastre” com o carro que conduzia o preso e sua escolta nas proximidades de Currais Novos.
230
O “desastre” está sumariamente noticiado em A República de 30-10-28. Comandava a escolta o capitão Joaquim de Moura, além do sargento Luiz Auspício, sendo o carro dirigido pelo sargento Genésio Cabral e mais o soldado Feliciano Tertulino. A história do crime está contada no livro “Vingança, Não”, do Padre P. Pereira da Nóbrega (Rio, 1960, ed. Freitas Bastos) e pormenorizada através de trechos de uma carta daquele motorista, falecido em 1972, filho do assassinado (fls. 268/271). O preso, assim sacrificado, seria defendido pelo provisionado João Café Filho.
231
Alguns meses passados, aquele bilhete que me chamava para assinar tal “flagrante” foi lido deputado João Café Filho em discurso na Câmara criticando a forma porque se vinha processando a repressão ao movimento vermelho de novembro de 1935 no Estado e as injustiças praticadas à sombra dessa repressão de que era prova sem resposta aquele documento. Essa exibição causou espanto e hilaridade na Câmara Federal e na sua assistência, sendo o fato notícia na imprensa do Rio.
232
A noite desse dia fui conduzido preso para Natal. Meu cunhado Domingos Romano fora solto em Baixa-Verde. Fiquei alojado no Distrito Policial da Ribeira, prédio vizinho ao da Secretaria de Segurança e depois de quatro dias, removido para o 1º andar do prédio da então Escola de Aprendizes Artífices, depois Escola Industrial e que funcionava ainda à Avenida Rio Branco, hoje ocupada por uma dependência da Universidade Federal. O edifício fora transformado em presídio para alojar grande número de detidos.
233
Tinha o prédio um portão de ferro que dava para a travessa “Professor Zuza”. Essa entrada desapareceu com a remodelação feita pela Universidade em 1971. Era por essa entrada desaparecida que os presos eram recolhidos ali. A travessa “Professor Zuza” separava o prédio, na parte em que ela sai na Rio Branco, da casa de residência do Dr. Nizário Gurgel, cunhado do Dr. Aldo Fernandes, Secretário Geral do Governo Rafael Fernandes e eminência parda desse Governo.
234
Registro a circunstância porque, de lá de cima do 1º andar onde foram alojados os presos políticos, o dentista Nizário Gurgel, de viva voz, e comunicava com seus familiares, solicitando tudo que lhe interessava. Nizário, apesar de tudo, estivera tão profundamente envolvido no movimento, que afinal, veio a ser condenado a 4 anos de reclusão. Papel destacado também no movimento teve seu filho menor impúbere, mas demonstrado uma precocidade impressionante na seara do mal, Romildo Gurgel. Com esse filho menor, Nizário intimou a uma esquadrilha de navios mexicanos, surta no porto e na qual se refugiaram alguns brasileiros, temerosos das conseqüências do movimento, entre os quais, o desembargador Silvino Bezerra, fizesse a entrega dos asilados.
235
E registro mais outra circunstância: no relatório do inquérito policial o Dr. Nizário Gurgel, embora demasiadamente conhecido, teve seu nome modificado para Nicácio Gurgel e assim foi denunciado pelo Procurador da República conforme se vê nessa peça. Tais pormenores são dignos de nota: havia algo no interesse de exculpá-lo, não seu se por virtude de seu parentesco com o mais prestigiado membro do governo estadual.
236
Estas observações se explicam nas referências sobre os correligionários do então governador que, apesar de haverem aderido ao movimento vermelho, no entanto, passaram nas largas malhas das investigações policiais, que, por sua vez, colheram tudo quanto foi adversário político de alguma importância, mesmo sem qualquer participação nele.
237
Contou-me José Alecrim, funcionário aposentado do Telegrafo Nacional que, durante o mês de novembro de 1935, sendo encarregado da estação telegráfica de Touros, que o delegado de polícia ali, recém-nomeado, sargento João Felinto, apareceu em sua repartição de lenço encarnado e lhe indagou porque não colocava bandeira vermelha já drapejando em muitas casas, respondendo ele que somente receberia ordens de seus superiores. Contou mais que João Felinto veio imediatamente para Natal e como o Quartel da Polícia já caira em mãos dos vermelhos, armou-se de fuzil, sendo detido ou desarmado em São José de Mipibu. Seu nome jamais figurou nas investigações pois se tratava de pessoa grada ao situacionismo.
238
Tenho, desde 1935, com dados da época e não pelo registro de memória, uma lista desses “populistas” – adeptos do Partido Popular – que elegeu o governador Rafael Fernandes, com pormenorização de fatos e circunstâncias elucidativas da participação de cada um na revolta vermelha daquele ano. Com relação, por exemplo, a Paulo Teixeira, além do que foi narrado anteriormente ele andou de metralhadora em punho juntamente com o cabo Giocondo, do 21 BC, em Macaíba, ambos se havendo hospedado na residência de Mesquita Filho, chefe político populista ali.
239
Nessa cidade foi organizado um “comitê” comunista sob a chefia de Giocondo, havendo até fornecido um salvo conduto ao Dr. Virgílio Dantas. Havia reuniões desses elementos em casa de João Matias de Araújo, 1º suplente de delegado, nomeado pelo recém-empossado governador do Estado. O Tenente Francisco Germano Filho esteve constantemente no quartel do 21 BC e foi visto nas Rocas atirando de fuzil. Austriclínio Vilarim, que participou do movimento, almoçou com esse tenente no 21 BC. José Rodolfo, sub-inspetor da Guarda Civil, Santos Lima, empregado da Estrada de Ferro, Renato Caldas, poeta, Manuel Augusto Fernandes, fiscal de rendas Baixa-Verde; e Sérgio Severo, um dos chefes integralistas da terra, além de outros partidários da situação, embora não comunistas, tiveram participação no movimento, mas seus nomes não foram objetos de investigações policiais.
240
Estiveram detidos no presídio da Escola de Aprendizes Artífices, na Rio Branco, entre outros; Dr. José Siqueira de Medeiros, Amaro Magalhães da Silva, então intransigente cafeista; Gastão Correia, provisionado e jornalista; Dr. José Pinto, médico, que, adepto, do ex-interventor Mário Câmara, se achava no alto Oeste do Estado, onde do movimento chegara apenas a notícia; José Anselmo Alves de Sousa, tio do futuro donatário do Estado, o Senador Georgino Avelino; Luiz Máximo, cafeista etc. etc. O presídio guardado, a princípio, pela Polícia Paraibana, entre cujos oficiais se encontravam, o capitão Manuel Benício e não ocultavam suas simpatias por muitos dos detidos que ficaram sabendo absolutamente inocentes.
241
Na forma do disposto no art. 19, § 3º das Disposições Gerais da Constituição então vigente, a de 1934, foram designados “Juízes do Sítio” dois juízes de direito da capital, entre eles, o Dr. Floriano Cavalcanti. Tinham a missão daquele dispositivo constitucional: ouvir os detidos, “dentro de cinco dias”. Raros deles – que eram em grandíssimo número – o foram dentro desse prazo, como era de prever.
242
Entendi, então, que, ultrapassado aquele limite, se caracterizara a “ilegalidade da detenção” e comecei a redigir habeas-corpus dirigidos à Justiça Federal. Exercia o cargo de juiz federal o Dr. Teotonio Freire e o de substituto o Dr. Celestino Wanderley, o tipo mais acabado do juiz compassivo e bondoso. O Dr. Teotonio Freire julgou logo o processo oriundo da cidade de Macaíba, em que estava envolvido um seu parente em grau não proibido, Teodorico Freire, provisionado e elemento do grupo cafeista que jamais tivera a participação no movimento e nem jamais professado idéias comunistas. Algum tempo depois, Dr. Teotonio Freire entrou em licença.
243
O Dr. Gil Soares requereu o habeas-corpus a meu favor, talvez o primeiro, havendo aquele juiz declinado de sua competência para o juiz do sítio. Houve recurso e o Supremo Tribunal Federal logo decidiu pela competência do juiz federal. Então apesar das mais incríveis pressões o Dr. Celestino Wanderley começou a conceder todos os habeas-corpus com essa fundamentação aos detidos ouvidos fora dos cinco dias determinados na Constituição. Fui um dos beneficiados. Assim, obtive liberdade, após uma detenção de cinquenta e cinco dias. E como tinha consciência plena de minha inculpabilidade, resolvi esperar aqui mesmo, no Estado, pelo processo para me defender. Vaga a casa de veraneio de meu concunhado, Sandoval Capistrano, na Redinha, para ali me transladei no final de janeiro de 1936.
244
A praia estava deserta de veranistas e a casa por mim ocupada ficava na rua que dá frente para o Rio Potengi. Não existia o Mercado Público ali muitos anos depois construído, e nessa rua apenas três casas estavam ocupadas, pois todas pertenciam a veranistas já retornados a Natal: além da minha, a de José Aguinaldo Barros e a do telegrafista João Dória Correia, casado com uma filha de D. Adelaide Silva, viúva e parteira já falecida e das mais conceituadas e conhecidas que já trabalharam em Natal.
245
Natural que essas três famílias, isoladas assim numa praia e rua de casas desabitadas, mantivessem, às noites, principalmente, contato e convivência. Foi nessa convivência que José Aguinaldo de Barros, meu velho conhecido e colega do “Santo Antônio”, me apareceu sob ângulo absolutamente desconhecido para mim: a do homem sensível e apaixonado pela poesia singela das canções potiguares, tão cheias de lirismo puro, na simplicidade e no profundo encanto de versos e rima, de música que fala ao coração. Em muitas noites dessa temporada em que “a lua descorada brilhava nas paragens luminosas” fizemos continuadas tertúlias e pela primeira vez José Aguinaldo me pôs em contato com aquelas singelíssimas estrofes de José A. Bezerra, musicadas por Eduardo Medeiros, de uma simplicidade ímpar no exprimir amor e sentimento. E as guardei para sempre, na memória e no coração, com um sabor de doçura e angústia que encheram aqueles meus dias, assim:
“Dizem que o sol, a lua e as estrelas
Todos nascem das bandas do Oriente
No entanto, sendo a mais formosa delas
Só me surges dos lados do Ocidente.
Chamo-te estrela porque toda tarde |