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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

João Maria Furtado
Pesquisador(a)

ABC Pesquisadores Insurreição Comunista de 1935

 

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Vertentes – Memórias
João Maria Furtado, 1976

 

 

 

 

 O LEVANTE VERMELHO
   A REPRESSÃO
   FUGITIVOS
   NO CEARÁ
   NA PARAÍBA
   DE REGRESSO

 

O LEVANTE VERMELHO

164

O Governador Rafael Fernandes, fazendo um governo essencialmente partidário, logo no início de sua administração, pelo Decreto n. 19, de 20 de novembro de 1935, extinguiu a Guarda Civil e criou, em substituição, a Inspetoria de Polícia, dispondo esse decreto extintivo que poderiam vir a ser admitidos na nova instituição elementos da extinta Guarda Civil que, a critério do Chefe de Polícia, tivessem “idoneidade comprovada” conforme ficou prescrito no seu art. 4º.

          Foi esse um ato de mera perseguição, de odiosidade partidária porque a entidade extinta havia sido criada por João Café Filho e fora a força que, em todos os momentos de perturbação da ordem e nas diversas tentativas de deslocar do cargo o interventor Mário Câmara, seus componentes, à unanimidade, se mostraram absolutamente fiéis à autoridade constituída e imunes ao vírus político partidário.
         
165

          Com esse Decreto n. 19/35 foram postos à rua cerca de 300 mantenedores da ordem que passaram a sofrer fome com suas famílias. Era um problema social artificial e criminosamente criado pelo novo governo, além de um caldo de cultura de revolta dos injustiçados sem culpa e daí porque alguns deles, um número aliás insignificante malgrado tudo, tomaram parte no levante vermelho, imaginando-o um meio de derrubar o governo que lhes tirara o pão de cada dia.

166

           O levante de 1935 encontrou na situação do Estado um clima sumamente propício para sua eclosão. Concomitantemente, com a posse do Dr. Rafael Fernandes, o Cel. Baltazar Meireles, chefe político e grande proprietário, no Oeste do Estado, por certo dentro de um acertamento político para perturbação da ordem para uma possível ou prometida intervenção no Estado de parte do Governo Federal e, por esse meio, uma solução intermediária para eleição de outro governador, se levantou em armas. Parece que houve um acerto neste sentido, mas Getúlio Vargas falhou na última hora, vindo do Rio o Dr. Paulo Câmara, irmão do interventor Mário Câmara, a fim de desfazer a teia do levante e do qual Baltazar Meireles não foi avisado. O articulador principal desse levante teria sido o deputado Francisco Martins Veras.
         
                                               167

          Esse incidente de Baltazar Meireles, ocorrido ainda em outubro de 1935, concomitantemente, com a posse de Rafael Fernandes no governo, foi, pela polícia deste governador, transformado também em comunismo e seus autores incluídos entre os responsáveis pelo levante vermelho de novembro de 1935, cuja repressão neste Estado constituiu, uma página negra na história do Rio Grande do Norte, na expressão de um contemporâneo e imparcial assistente. Um exemplo de como foram os acontecimentos de então desfigurados no sentido exclusivo de apurá-los com a finalidade de exterminar os adversários do Partido Popular: o cidadão Artur Mangabeira, chefe político marista em São Tomé e Barcelona, grande proprietário ali e comprador de algodão, fora assassinado juntamente com um seu filho pela polícia de Rafael Fernandes, na semana anterior à eclosão do levante de 1935 (ele denunciara ao governador a nomeação para Barcelona de um sargento da Polícia seu inimigo capital a pedido de Ladislau Pereira como uma ameaça direta à sua vida, sem que a denúncia sensibilizasse o novo governo). Pois bem, dois anos depois, o jornal oficial “A República”, noticiando a passagem desse levante, incluiu os assassinos desses dois pacatos cidadãos como praticados nesse levante e como obra dos comunistas. . .

168

          Em 1934 e 1935, como acontecia no Brasil, neste Estado, os elementos inconformados com a situação e fora do governo, conspiravam abertamente quase. Uniam-se nessa conspiração desde a extrema esquerda à extrema direita, incluindo os ditos liberais, entre os quais se contavam os carcomidos alijados do poder em 1930. Aqui no Estado, José Augusto Bezerra de Medeiros e todos os seus partidários conspiravam e tentaram algumas vezes depor o interventor Mário Câmara e continuaram a conspirar com os extremistas de novembro de 1935. E se algum elemento marista ou cafeista aderiu a esse levante – e só o fizeram figuras insignificantes de revoltados como alguns ex-componentes da Guarda Civil extinta – o foi na persuasão de se tratar da derrubada do Governador recém-eleito. E o exemplo típico dessa conspiração de todos os matizes está em Otávio Mangabeira de quem escreveu Hélio Silva, quando afirmou que a gênese do movimento de 1935 se encontra nos dias que sucedem à promulgação da Carta de 1934 e na inconformação com o domínio de Vargas:

          “Há que fazê-lo descer” gritou da tribuna da Câmara Otávio Mangabeira, um dos chefes do movimento nacional de que os levantes de Natal, Recife e 3º RI e Escola de Aviação Militar foram um episódio embora relevante. Dele ouvi, primeiro no Hotel Glória onde morava, depois na Clínica de Repouso São Vicente, onde passava os períodos de crise de enfermidade: - “Estive em todas as conspirações contra Vargas. Em 1935, 1937, 38 e 45”. (1935 A Revolta Vermelha, pág. 43, VIII Volume).

169

          Apontavam-se à época, neste Estado, os raros elementos conhecidos como comunistas. Entre eles, dois da família Reginaldo, um salineiro em Mossoró e outro, Raimundo Reginaldo, professor primário em Natal. A propósito, um depoimento partido de quem Chefe de Polícia em duas interventorias e elemento de real prestígio no operariado – e daí ser o mais combatido pelos comunistas – João Café Filho quando escreveu:

          “Fora-me dado verificar então que eram muito poucos. Não havia no Rio Grande do Norte uma economia industrial capaz de proporcionar grandes núcleos operários. Por isso mesmo, a principal célula bolchevista não era civil porém militar, constituída de sargentos, cabos e soldados do 21 BC” (Do Sindicato ao Catete, José Olimpio, 2º vol. págs. 80/81).

          Mesmo assim esse núcleo militar conspirador também não tinha formação marxista. Era dirigido ou orientado por leituras superficiais e os conhecidos slogans de propaganda extremista, sem um mínimo de conhecimento para assumir a liderança revolucionária e principalmente levar adiante, como aconteceu na Rússia, uma revolução na economia em sua forma de produção e distribuição.
         
170

          Demos a palavra a outro escritor, este, o mais imparcial e mais documentado historiador dessa fase de nossa história, desde 1922 a 1938, Hélio Silva:

          “O levante de Natal foi uma revolta de cabos e sargentos, operários, funcionários públicos. A maioria nada sabia de comunismo. Nem mesmo os dirigentes do movimento, os poucos declaradamente comunistas, tinham formação marxista. Eram revoltados simplesmente. O elemento de mais popularidade, o sargento Quintino, da banda de música do Regimento, não era letrado. Acreditava apenas que o comunismo solucionara os problemas brasileiros. O grosso dos adesistas julgava tratar-se de um movimento para repor o interventor Mário Câmara”. (1935 - A Revolta Vermelha, pág. 280).

171

          O comandante do 21 BC, um coronel gaúcho da confiança de Getúlio Vargas, abrira inquérito para apurar as arruaças que soldados e oficiais desse batalhão vinham cometendo e, conforme narra ainda Hélio Silva, anunciou a expulsão dos indesejáveis sem que, no entanto, isso tenha acontecido. “Inexplicavelmente continuaram no quartel e nele ainda se encontravam a 23 de novembro”.
          Explicável o inexplicável para Hélio Silva: aqui chegando o Coronel Otaviano Pinto Soares também passou a simpatizar o Partido Popular e aquelas “arruaças” de soldados do Exército eram praticadas e já vinham sendo contra a Polícia do interventor Mário Câmara e insufladas pela oficialidade, e assim, foram desconhecidas pelo novo comandante. . .

172

          A revolta estourou no sábado 23 de novembro, quando o governador estava numa solenidade no Teatro Carlos Gomes. Dali se refugiou com amigos e secretários numa casa à rua Sachet e depois na residência do cônsul honorário da Itália, para posteriormente alarmados passarem a um navio mexicano surto no porto. O então rapazinho com cerca de 14 anos, depois Dr. Romildo Gurgel, tentou arrebatar desse navio os refugiados entre os quais, o des. Silvino Bezerra, infrutiferamente. O revolucionário tão precoce, filho do Dr. Nizario Gurgel, era sobrinho do Dr, Aldo Fernandes, o secretário geral do Estado todo poderoso. Preso Dr. Nizário Gurgel por sua evidente participação no levante – talvez o único instalado no prédio da antiga Escola de Aprendizes Artifices Rio Branco, na descida para o Alecrim, um presídio político para onde foram removidos muitos presos de maior categoria social, inclusive esse parente daquele secretário de Governo.

 

173

          Apossado do Quartel do 21 BC, os revoltosos com um ardil rudimentar conseguiram atrair para ele o Dr. João Medeiros, Chefe de Polícia, que ali ficou detido e que em seu livro a respeito dos fatos – Meu Depoimento – Imprensa Oficial – Natal, 1937, diz ter sido ameaçado de fuzilamento. O Cel. Otaviano P. Soares foi para o quartel da Polícia Militar, então situado perto do Passo da Pátria, com os fundos dando para o rio Potengi.
          Os revoltosos assestaram metralhadoras contra esse quartel dentre outros pontos de cima da torre da matriz e da rua hoje João da Maia, arrombando o muro da casa n. 606 da esquina e tirotearam o quartel desde às 21 horas até a manhã seguinte, quando se esgotou a munição da Polícia. A maioria de sua oficialidade então procurou escapar, lançando-se ao rio Potengi e somente o tenente José Paulino de Medeiros, que era profundamente odiado pelo situacionismo, acusado por ter sido o último Delegado Auxiliar do Interventor Mário Câmara e que fora fiel a este intransigentemente, homem de coragem pessoal a toda prova, após o levantamento da bandeira branca no quartel, saiu dele pela sua frente embora permanecessem os revoltosos em seus postos e de metralhadoras assestadas e prontas a fazer fogo. E adiante, numa esquina, foi alvejado pelos revoltosos, sendo atingido num braço.

174

          O ferido foi levado para o hospital e lá, o Dr. José Tavares, por certo sem outro recurso, sacrificou-lhe o braço ferido, amputando-o.
          Todos os demais oficiais que se encontravam no Quartel da Polícia, depois de permanecer dentro do Potengi, foram, sob a mira de armas dos revoltosos, retirados da água e presos, inclusive o comandante o major Luiz Júlio. E aqui cabe mais um registro especial: havendo permanecido à frente da resistência do Quartel da Polícia enquanto houve munição, o tenente Zuza, estava, assim, inutilizado para o seu serviço ativo e foi reformado, contra à letra expressa da lei, sem a promoção a que tinha direito por tê-lo sido por ferimento em defesa da legalidade. . .

175

           A respeito do 1º tenente José Paulino de Medeiros, embora praticando atos de bravura, no cumprimento do dever e inutilizado para serviço ativo nesse serviço, basta transcrever o insuspeito depoimento do Dr. João Medeiros Filho, então Chefe de Polícia no seu livro citado, pág. 74:

          “Conquanto tenham todos pelejado bravamente é de Justiça reconhecer o valor da atuação do Coronel Pinto Soares, major Luiz Júlio, cap. Joaquim de Moura, ttes. Bilac de Farias e José Paulino de Medeiros (Zuza Paulino) etc.”.

Em seguida:

          “Em relação ao tem. José Paulino de Medeiros colhi de fonte segura que, logo após o início das hostilidades, seu aparecimento no quartel causou estranheza, por ser elemento contrário ao governo tendo o cap. Joaquim de Moura escalado dois sargentos, um dos quais o Sr. Gastão de Andrade, para o vigiarem com ordens severíssimas. No decorrer da luta, porém, o ten. Zuza demonstrou muita coragem, cumprindo o seu dever como soldado.”

176

          Outro episódio a esclarecer: elementos que tomaram parte efetiva na revolta e com atuação destacada nela, sendo presos e posteriormente condenados, entre eles Sizenando Filgueira, Ramiro Magalhães, Carlos Vander Linden (este metralhou o quartel do alto da torre da matriz), além de outras pessoas, testemunhas dos acontecimentos, sempre afirmaram que, realmente, morreu, nas proximidades do quartel da Polícia um pobre demente, chamado Luiz Gonzaga, vulgo “Doidinho” (apelido deveras significativo) que vivia perambulando pelas ruas de Natal, mas que nunca fora soldado da Polícia Militar.
          Sizenando Filgueira e Ramiro Magalhães, o primeiro ainda hoje vivo, me relataram que, após haver a Polícia Militar cessado fogo, eles, armados como estavam, desceram uma das ladeiras que conduzem ao quartel e, precavidamente, de longe, estavam observando se havia nele algum movimento, quando, num capinzal próximo dele, avistaram o paisano “Doidinho”, parece que, em sua insanidade, brincando com um fuzil e ao avistá-lo na esquina ainda bem distante, fez menção de atirar sendo então alvejado de fuzil por Sizenando que, relata um pormenor: “Doidinho” ao ser atingido, deu um grande pulo para cima e caiu, estirado no capim e o fuzil que empunhava também caiu para um lado.

177

          Entretanto, o major Luiz Júlio resolveu “alistar” depois de morto Luiz Gonzaga, por alcunha “Doidinho”, como soldado da Polícia que, assim, teve na morte um herói.
          Bem possível que ele, em sua demência, se haja reunido a outros civis que se refugiaram, ele sem consciência plena de seus atos, no quartel da Polícia Militar. Certo que está transformado em herói. E que ele era conhecido como “Doidinho” é relatado em dois depoimentos insuspeitos no caso do Dr. João Medeiros Filho: naquela obra já citada Meu Depoimento e na entrevista à Tribuna do Norte, de 23 de novembro de 1971.

178

          Esse endeusamento de falsos mártires em movimentos revolucionários há acontecido pela história agora e neste Estado, em 1935, a par dele se acusaram inocentes e se praticaram, à sombra da repressão, injustiças e crimes, Hélio Silva, obra citada, pág. 282, historia:

          “Precisavam de dinheiro. Foram à agência do Banco do Brasil, cujo gerente se recusou a atender a requisição de numerário. Tiveram de arrombar o cofre.”

.................................................................................................................................

          Retiraram 3.600 contos de réis. Parte do dinheiro foi distribuído pela população. O restante foi guardado em Palácio. Na fuga nem todos puderam levar as importâncias partilhadas. Por precaução talvez, em face da perseguição que sabiam iminente e inevitável, preferiram deixá-los em poder de amigos e parentes. Posteriormente algumas pessoas ricas de Natal eram apontadas como beneficiárias daquele dinheiro.”

179

          Daquela grande quantia de 3.600 contos de réis e de outras arrebanhadas pelos revoltosos quando se apoderaram de Natal e que foram distribuídas na Vila Cincinato e lá também foi deixada até pelos w.c. da casa e quintal, e tentada reaver, posteriormente, pela Polícia, só apareceram afinal menos de 900 contos. Fatos curiosos se passaram. Não somente aquelas “pessoas ricas” foram apontadas como beneficiárias daquele dinheiro. Houve ainda, na expressão do Dr. João Medeiros – entrevista acima citada – os felizes “achadores de dinheiro”. São textuais as seguintes palavras:

          “Não é de estranhar muito que de tão vultosa quantia naquela época a polícia só tenha apreendido menos da terça parte. Além de inúmeros comunistas terem fugido conduzindo dinheiro, que foi dividido a mancheias na Vila Cincinato, alguns ficaram na prisão sonhando com o tesouro escondido, restando os que o povo na sua ironia atroz batizou de – “achadores de dinheiro”.

180

          Ora, entre esses “achadores” não resta dúvida que estavam muitos dos encarregados da repressão e perseguição aos revoltosos.
          Apontaram-se, então, muitos policiais e alguns mais destacados elementos, poucos, é verdade, da Polícia Militar que, sem ganharem na loteria, logo depois, construíram sobrados, naquele trecho da praça Pedro Velho que sendo um dos poucos logradouros públicos da cidade, foi pela metade, com protesto de elementos do próprio governo. Loteado pelo prefeito Gentil Ferreira e ele mesmo se encarregou de realizar as construções que ainda hoje lá se encontram, em geral sobrados. . .
          Foi até tentando um Mandado de Segurança contra esse loteamento levado a efeito porque àquele prefeito interessava a negociata por dois aspectos: entrar dinheiro para a Prefeitura e ele como construtor fazer um bom negócio.

181

          Sobre a arrecadação desse dinheiro espalhado pelos comunistas, escreve ainda Hélio Silva, ob. cit., mesma página:

          “Terminada a revolta, a polícia procurou recuperar esse dinheiro. Invadiu casas de populares, obrigando os familiares a entregarem o que os chefes, ausentes, tinham escondido. Consta que vieram três policiais de Recife, Siqueira, Cisneiros e Alípio e arrecadaram para si mesmo, o que puderam recolher. O derrame de dinheiro assinalou um surto de progresso. O índice das construções cresceu assimbrosamente.”

          Esse registro coincide com o nosso em relação aos “achadores de dinheiro”, encarregados da repressão aos revoltosos vencidos. O povo apontava nomes de oficiais da Polícia – poucos é justo salientar – que, cinicamente, construíram residências  confortáveis sem pejo de ostentarem, à vista de todos e do governo, principalmente, uma riqueza sem explicação honesta.
182

          Um dos delegados auxiliares, o Dr. Ivo Trindade, célebre como mandante de torturas a presos políticos, fez uma diligência em Barra de Maxaranguape, por onde teria fugido um dos mais altos participantes da revolta e teria arrecadado a maior soma de dinheiro distribuído, ali deixado por esse prócer vermelho.
          Mas, para os efeitos administrativos, a diligência, a essa praia foi frustrada: nada foi recolhido aos cofres públicos.
          Esse episódios foi muitíssimo comentado ao seu tempo.

183

          Aqueles policiais pernambucanos aludidos por Hélio Silva que foram aqui bons “achadores de dinheiro” sem recolhimento legal, não se celebrizaram apenas por esse aspecto: foram trazidos principalmente como ficou sabido de todos para ensinar aos nossos policiais técnicas refinadas de torturas e extorções de confissões como haviam aprendido do meio policial de onde vieram.

184

          Toda espécie de mentiras e calúnias foram assacadas aos revoltosos. Houve, realmente, excessos de alguns deles e entre outros assassínio de Otacílio Werneck. Houve saques a casas comerciais e num desses saques, Epifanio Guilhermino à frente, houve uma desavença deste com um soldado do 21 BC com troca de tiros. Epifanio Guilhermino foi atingido no ventre e matou a tiros seu ofensor. O ferido que era acusado da morte de Otacílio Werneck foi feito prisioneiro e foi mantido na prisão sem nenhum tratamento médico, com o evidente intuito de vê-lo morrer.

185

          Entre as acusações aos revoltosos se inserem violações de alunas da Escola Doméstica, estabelecimento de ensino especializado e da elite do Estado e de muitos outros. O boato foi desmentido. Tiramos ainda de Hélio Silva, ob. cit., pág. 283 como transcrição o seguinte trecho:

          “Posteriormente falou-se em violências de todos os matizes. Espalharam que os revolucionários haviam violentado as moças da Escola Doméstica, estabelecimento de alto padrão, criado pelo governo José Augusto. Os pais das moças e o bispo Marcolino Dantas desmentiram tal acusação.”

186

          Os revoltosos se apoderaram da redação da Imprensa Oficial do Estado, onde fizeram publicar a 27 de novembro, o n. Um e último de seu jornal A Liberdade – Órgão Oficial do Governo Popular Revolucionário. – O dia 27 de novembro de 1935 foi uma quarta-feira quando já a revolta se diluira, fugindo os seus autores e dirigentes. Assim, a edição não teve divulgação, ficou guardada no próprio prédio onde fora impressa, à rua Junqueira Aires, esquina da Juvino Barreto.
          Para editar esse número, com o mesmíssimo formato de A República, que era o órgão oficial do governo estadual, esteve na respectiva redação o revoltoso José Aguinaldo Barros (16-10-1905 – 10-9-1968), acompanhado pelo futuro advogado provisionado Gastão Correia que se encarregou de redigir a publicação, juntamente com o poeta Otoniel Menezes.

187

          Gastão Correia e Otoniel Menezes nada tinham de formação marxista: eram sonhadores, fora da realidade, com dias melhores para o Brasil. Otoniel Menezes foi realmente, nesse episódio, um “poeta” no significado popular do termo, um sonhador. Desse nosso maior poeta, falecido há algum tempo na Guanabara, se identifica no estilo vibrante e no vigor da expressão, a manchete que se lê, nesse número único do jornal dos revoltosos, logo abaixo do respectivo título:

          “Enfim, pelo esforço invencível dos oprimidos de ontem, pela colaboração decidida e unânime do povo, legitimamente representado por soldados, marinheiros, operários e camponeses, inaugura-se no Brasil a era da Liberdade, sonhada por tantos mártires, centralizada e corporificada na figura legendária – onipresente no amor e na confiança divinatória dos humildes – de Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro do Esperança.”

188

          Esse número de A Liberdade trás ainda na primeira página um artigo com o titulo Sob a Aleluia Nacional da Liberdade e ainda outro Delenda Fascismo. Suas segundas e terceiras páginas estão cheias de matéria variada sobre a revolução e a quarta está evidentemente falha de matéria, com reclames da revolução em letras garrafais para tomar espaço, que, mesmo assim, ainda sobrou e foi preenchido com o reclame, obviamente gratuito, do Sal de Fruta Eno.

189

          Possuímos em nosso arquivo e iremos doá-lo ao Instituto Histórico do Estado um exemplar desse jornal que até a direção da Imprensa Oficial ter passado, no governo José Varela, ao dr. Romildo Gurgel, podia ser encontrado ali em grande número para quem quisesse folhear ou levar consigo. Entendo, guardando esse número, como um precioso documento histórico muito curioso. E em sua folha 3ª está publicado o hino da Aliança Nacional Libertadora, cuja autoria nos é desconhecida e é cantada com a música do Hino da República.

190

          E sobre essa agremiação política, tão sistematicamente acusada de instrumento do comunismo internacional, Hélio Silva – que de referência ao seu passado político, se declara um “carcomido”, num dos seus livros de “O Ciclo de Vargas” e, portanto, um conservador insuspeito – escreveu estes conceitos, op. cit., vol. VIII, pág. 43:

          “Generalizado, embora, esse conceito não era unânime. Havia democratas sinceros que repeliam o totalitarismo da direita, vendo a ameaça iminente de um governo de força, implantando a ditadura no terreno fértil do descontentamento. Os elementos da esquerda, socialistas e comunistas, mais informados, sentiam a necessidade de formarem uma frente ampla de resistência no perigo comum.
          Assim nasce a Aliança Nacional Libertadora. Não era um órgão comunista. Nem comunistas foram seus dirigentes. A aclamação de Luiz Carlos Prestes não cumpria uma determinação do COMINTERN. Nem ele, ausente do Brasil, estava em ligação com os aliancistas. Era quem mais alto representava a esperança do povo em dias melhores. “Foi o herói que aclamaram, não o chefe comunista.”

          Esse é um testemunho insuspeitíssimo de quem escreveu muitos volumes sobre o que ele chamou o “Ciclo de Vargas”, através de uma documentação impressionante, manteve sempre uma imparcialidade quase sobre humana na apreciação dos fatos e dos homens, desde 1922 a 1938 com a revolta integralista.

191

          É ainda desse grande historiador contemporâneo um retrato preciso dos acontecimentos então desenrolados:

          “A difícil conjuntura econômica do Nordeste dava eficaz cobertura às atividades da ANL. Também a crise política, constante em todos os Estados, na fase de reconstitucionalização, falava mais eloqüentemente que os caravaneiros clamando Pão, Terra e Liberdade. No Rio Grande do Norte realizara-se uma campanha violenta em torno da eleição indireta do governador. Presidira o pleito como interventor Mário Câmara, que denunciava a Vargas, muitos meses antes, o perigo da rebelião. Procurava eleger-se e contava com as simpatias do Presidente. Combatido pelos elementos tradicionais da política local, chefiados por José Augusto Bezerra de Medeiros, aproximou-se à última hora, das forças da oposição, representadas por João Café Filho e Kerginaldo Cavalcanti. Depois a sua candidatura foi afastada pela do des. Elviro Carrilho, do Tribunal de Apelação carioca, mas potiguar de nascimento. Saiu triunfante a facção de José Augusto, elegendo Rafael Fernandes. O acordo das Oposições foi mantido para as eleições dos deputados federais e estaduais. Café Filho veio para a Câmara dos Deputados” (op. cit., págs. 279/280).

          Retrato exato: eleito, o Des. Elviro Carrilho teria pacificado o Estado. Homem simples, magistrado sereno, sem nenhuma vinculação partidária, seria o seu anjo da paz. José Augusto, pela ambição de voltar de novo a governá-lo, não cedeu. Jamais, porém, realizaria sua ambição, pois apenas conseguiu se reeleger depois deputado federal e da última tentativa foi derrotado e para encobrir a decadência de seu prestígio justificou a derrota como fruto de uma fraude eleitoral.

192

Continua o quadro descrito por Hélio Silva:

          “A vitória de Rafael Fernandes colocou a quantos se congregaram em torno do antigo interventor na situação de vencidos. A combatividade desses elementos que representavam a corrente pós 30, em oposição aos antigos políticos que reconquistavam o poder, as vinculações pessoais de Mário Câmara com o Presidente Vargas, criaram a perspectiva de que Rafael não tomaria posse.
          A tensão política chegou a tal ponto que o comandante da Região, Gen. Manuel Rabelo, descolou-se de Recife para Natal” (op. cit., pág. 280).

          Era, em verdade, crença generalizada entre os mais combativos oposicionistas a José Augusto que Rafael Fernandes ou não tomaria posse ou seria substituído por um interventor na eventualidade de um levante no Estado. Daí aquele movimento de Baltazar Meireles, na zona Oeste, que ficou isolado, indo seu chefe residir em Goiás, depois de processado pela polícia de Rafael Fernandes como envolvidos no levante vermelho, eclodido quase um mês depois. (¹)

193

          Como já se viu, a presença do comandante da Região, Gen. Manuel Rabelo, às vésperas da posse de Rafael, além de relacionada pela situação alarmante do Estado, foi conseqüência também da denúncia de perturbação da ordem que o Comandante da Polícia de Mário Câmara, Ten. Aluizio Moura foi, pessoalmente, levar aquele general e que partiriam de elementos cafeistas, inclusive, componentes esses da Guarda Civil e que era, irregularmente, armada de fuzil.
         
_____________
          (¹) A opinião de Hélio Silva e a nossa sobre como se processou a repressão neste Estado do movimento de novembro de 1935 é adotada também por Richard Levin no seu livro The Vargas Regime – The Critical Years – 1934-1938 – Columbia University Press – 1970. A pág. 109, escreve esse autor; referindo-se ao governador Rafael Fernandes:

                    “Nely confident ordered the arrest of all suspicions persons.”         

          É que o Dr. Mário Câmara, homem conservador e de imensa boa fé, sempre teve tendências contrárias às das alas radicais da Revolução de 30 a que se filiava Café Filho. Organizou um secretariado nessa base e andou, no início de seu governo, em conchavos com os correlegionários de José Augusto. Um dos seus Secretários, o da Educação, Anfilóquio Câmara, seu primo, além de outros auxiliares, eram ligados aos políticos decaídos e todos foram mantidos nas Secretarias, até o fim de sua interventoria. Esses Secretários, inclusive o Chefe de Polícia, Dr. Potiguar Fernandes (fiscal de consumo, boêmio e gozador) estavam ligados, assim, aos políticos tradicionais, que, dadas as substituições sucessivas de interventores com a respectiva descontinuidade de orientação partidária, cresceram de prestígio e se arvoraram a empalmar o poder no Estado, até com tentativas de deposição de Mário Câmara.

194

          Numa dessas tentativas, em dias de fevereiro de 1935, à meia noite, esteve na Vila Cincinato, residência do Interventor uma comissão de oficiais do 21 BC, insinuando a renúncia deste, no que foram repelidos e não teve maiores conseqüências porque um navio da Armada Nacional, surto no porto, fez o pedido do intimado, descer à terra parte de sua guarnição, devidamente aparelhada para manter a autoridade do delegado do Governo Federal. As nove horas do dia seguinte, passada toda a noite em vigília, Dr. Mário Câmara, em minha presença, na Vila Cincinato, telefonou para o Sr. Anfilóquio Câmara, dizendo-lhe que poderia vir procurá-lo que ele ainda não fora deposto. . .
          Era dessa fibra a maioria do Secretariado de Mário Câmara. Mesmo assim, foram todos mantidos até quando ele deixou a interventoria, em cuja intimidade nada se passava que seus adversários políticos não soubessem imediatamente.

195

          O livro História de Uma Campanha, prefácio do Dr. José Augusto, é, nesse particular, uma condensação de fatos, totalmente invertidos e todos completamente desfiguradores da realidade. Por exemplo: ali se afirma que Vital Correia fora preso e espancado em Baixa-Verde pela Polícia local. Eu me encontrava na localidade. Vital Correia, que sempre foi um homem violento e extremado em política, armado ostensivamente de revólver, em pleno Mercado Público, desafiava em altos brados a Polícia e seus adversários políticos. Foi, naturalmente, desarmado e apenas levado á cadeia publica, onde foi, ao chegar, posto em liberdade, perdendo apenas o revólver, por intervenção direta do Prefeito Antônio Justino, por solicitação minha.

196

          Em contraste, narrou-me o Dr. José Bezerra de Araújo, político udenista que chegou a exercer a senatoria pelo Estado e que pegou em armas contra o movimento de novembro de 1935, que, após sua derrocada, elementos do Partido Popular tiraram da cadeia de Currais Novos presos de justiça que lá se achavam e os que eram adversários políticos foram sumariamente fuzilados, depois de conduzidos a lugar ermo, fora da cidade.
          Não resta dúvida que a campanha do Partido Popular foi o equívoco político mais prejudicial que ocorreu na história do Rio Grande do Norte. Que Mário Câmara pretendia pacificar o Estado prova-o a carta em anexo, por ele dirigida a Getúlio Vargas logo que assumiu a Interventoria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A REPRESSÃO

 

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          Outra vez, Hélio Silva:

          “A revolta instalada no sábado manteve seu domínio até a quarta-feira. Além de Natal, ocupara as cidades de Ceará-Mirim, Baixa-Verde, S. José de Mipibú, Santa Cruz e Canguaretama. Então já se sabia da reação em Pernambuco. Não havia esperança de reforços. Os rebeldes tinham organizado três colunas. Uma dirigia-se a Recife, outra a Mossoró. A terceira embrenhou-se pelo sertão com destino a Caicó. Esta transportava num caminhão alguns soldados e civis. Um chefe sertanejo, Dinarte Mariz, que tinha uma frota de caminhões, organizou sua gente e surpreendeu o transporte revolucionário na Serra do Doutor, dizimando seus homens. As outras colunas não prosseguiram. Seus soldados debandaram ou foram aprisionados.
          Tropas do Exército e das Polícias dos Estados vizinhos ajudaram a restabelecer a ordem, voltando a governar Rafael Fernandes. Começou a apuração e a depuração. Os adversários políticos da situação foram presos juntamente com os que haviam tomado parte na revolução. Encheram-se as prisões. Iniciou-se a remessa de detentos para o Rio. São s personagens de Graciliano Ramos. Nem os chefes políticos de renome como Café Filho e Kerginaldo Cavalcanti escaparam da acusação. Quem estava contra o Governo era comunista”(Op. cit., págs. 283-284).

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          Logo que triunfou a revolta em Natal, os vitoriosos se dirigiam a Macaíba, caminho para Ceará-Mirim na época; entraram sem resistência. Eram acompanhados por alguns correligionários de José Augusto, dos quais muitos tomaram parte na revolução, não porque comunistas, mas porque pensavam se tratar de depor Getúlio Vargas. O mesmo acontecera com muitos dos seus adversários locais: pensavam se tratar de depor Rafael Fernandes. . .
          Somente que os primeiros nada sofreram e os segundos, mesmo os que nada tiveram com o movimento, mas tinham qualquer significação social, foram, de cambulhada, detidos e processados.

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          Em Macaíba, por exemplo, Paulo Teixeira, populista de prestígio em Lages, onde era proprietário, entrou à frente dos revoltosos que estabeleceram num salão térreo de um sobrado seu quartel general. E em cima permaneceu João Severino da Câmara, amigo de Paulo Teixeira, que saira de Baixa-Verde. Ficou resguardado perfeitamente. E como, quando dos depoimentos tomados ali, apareceu o nome de Paulo Teixeira, o escrivão Cornélio Leite, propositadamente (já tinha uma péssima letra) a fez tão ilegível que não pôde depois serem decifrados muitos trechos do que fora escrito.

 

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          Tantos envolvidos teve esse populista Paulo Teixeira na revolta (nada sofreu e nem seu nome sequer apareceu em processo) que levou um dos principais elementos militares revoltosos para uma de suas fazendas em Lages, o cabo Giocondo, depois militante ativo do Partido Comunista Brasileiro. Lá ficou ele ao abrigo de prisão durante mais um ano. Posteriormente, porém, se desavindo com o proprietário, depois de uma tentativa de morte em que o protegido foi ferido a punhal, foi entregue à Polícia.

201

          De Macaíba os revoltosos rumaram a Ceará-Mirim, numa coluna de militares e civis, entre estes Benilde Dantas e Sizenando Filgueira, Ramiro Magalhães, ainda de menoridade. Dirigindo um automóvel dos muitos apresados pelos revoltosos chegou a Ceará-Mirim fardado do Exército e acompanhado de militares também, Vital Correia, correligionário de José Augusto. Seu nome não apareceu nos inquéritos.

202

          Uma coluna chefiada por Sizenando Filgueira foi até muriú e lá pôs debaixo de ordem aos Drs. Nestor Lima e Otávio Varela. Nessa coluna foi também Raimundo Antunes, não porque fosse comunista, mas como um dos que pensavam se tratar da deposição de Rafael Fernandes.
          Raimundo Antunes que era cafeista por isso foi processado e condenado. De volta de Muriú, marchou ele com Sizenando para volta a Natal, face aos boatos que já corriam. Tiveram, antes de atravessar a ponte de Igapó, a certeza do fracasso. Sizenando continuou para Natal, havendo ficado escondido por muitos meses até ser preso nas vizinhanças do Alecrim e Raimundo retornou a pé para Ceará-Mirim. Lé se refugiou no engenho Umburana e vizinhanças, passando cerca de três meses dentro dos canaviais, dia e noite, para depois esconder-se em Poço Branco, na proteção de um pobre agricultor, dormindo num buraco, coberto com uma cama. Não foi preso até que veio a anistia.
          Não cometera nenhum crime, a não ser, propriamente, adversário de Rafael Fernandes.

203

          De Ceará-Mirim partiu uma coluna comandada por Benilde Dantas para Baixa-Verde, em cujas proximidades houve ligeiro tiroteio com a dispersão imediata dos defensores. Tomada a cidade, assumiu o controle dela, pelos revoltosos, uma praça do 21 BC, Manuel Alberto da Silva Filho, que se apresentava sob o falso nome de “Tenente Lins”. De Baixa-Verde, Benilde Dantas retornou e foi comandar a coluna que se dirigiu ao Seridó. Da Serra do Doutor onde sua coluna foi contida, ele teve conhecimento do fracasso da revolta e então, a pé, empreendeu uma caminhada de volta a Ceará-Mirim aonde conseguiu chegar muitos dias depois, maltrapilho e faminto, se escondendo de dia e andando de noite.
          Refugiou-se no engenho Cajazeiras de um seu tio, João Dantas, ainda vivo, passando ali ainda três meses dentro do canavial. Por intermédio de Alfredo Edeltrudes conseguiu embarcar num bote de pescaria que o foi deixar nas costas de Olinda e daí conseguiu chegar até o Rio, onde ficou sob a proteção de seu cunhado Comandante Bertino Dutra, ex-interventor neste Estado. Depois de anistiado foi nomeado fiscal de consumo, falecendo muitos anos depois e deixando a tradição de poeta inspirado com um livro de versos em que canta, principalmente, a magia dos engenhos e dos canaviais de Ceará-Mirim, terra onde nasceu.

204

          Duas vezes naquela sua obra citada (pág.315) diz Hélio Silva que “a rebelião de Natal fora provocada e precipitada” e à pág. 319 que “os revolucionários de então admitem, até hoje, que a eclosão do movimento foi precipitada pelos agentes do próprio governo”. A esse propósito há a considerar o seguinte: No livro Meu Depoimento, o Dr. João Medeiros faz transcrever dois dos bilhetes que um misterioso agente e chefe comunista de Natal, denominado BLUCHE escreveu determinando o fuzilamento dos integralistas.
          Bem possível que esse BLUCHE é que tenha sido o agente provocador intempestivo da revolta aqui, porque admira que a repressão policial não tenha conseguido identificar e prender tal elemento: os chefes civis e militares do movimento que foram todos presos necessariamente sabiam a identidade desse BLUCHE. Porque então a Polícia se omitiu de perquirir esse pormenor, não teve qualquer interesse na identificação desse personagem misterioso? Não seria possível presumir que os elementos que aqui se revoltaram, civis e militares, recebessem instruções e ordem de quem desconheciam totalmente para em seus depoimentos não esclarecerem de quem se tratava. Possivelmente, esse BLUCHE foi esse agente da própria Polícia infiltrado no PC e que tinha a missão de provocar no interesse do governo o levante fadado ao fracasso.

205

          A Polícia, na repressão à revolta e nos interrogatórios, sequer fez menção ao nome desse BLUCHE. O livro do Dr. João Medeiros trás dois clichês com dois bilhetes encontrados no quartel do 21 com assinatura dele. Esse personagem, portanto, existiu. Apenas não o procurou a polícia e nem teve nenhum interesse em identificá-los, embora subscrevesse ordens de fuzilamentos. . .
          Da mesma forma, se verifica que, nem sequer, ao relatar os diversos inquéritos policiais abertos, a Polícia referiu ou mencionou esse nome BLUCHE (assim constando daqueles clichês do livro Meu Depoimento, do então Chefe de Polícia Dr. João Medeiros Filho, Imprensa Oficial, 1937, págs. 53 e 57 e v.), tanto que a principal denúncia oferecida ao Tribunal de Segurança Nacional sobre esse movimento, englobando cerca de 160 implicados, inclusive todos os chefes e dirigentes dele, civis e militares, em data de 3 de setembro de 1938, pelo Procurador interino da República, Carlos Gomes de Freitas (folheado em documento impresso em 42 folhas de papel, tamanho almaço) e em que se descrevem não só fatos que o antecederam como os que ocorreram durante ele, pormenorizadamente, não traz nenhuma a esse BLUCHE.
         
206

          Tão minucioso é o histórico dos fatos, que a denúncia lamenta não ter sido a investigação policial feita a contar da interventoria Hercolino Cascardo, embora esse ilustre oficial de nossa Armada, com sua mentalidade progressista e com tendências socialistas, se não possa confundir com o extremismo vermelho. E no governo se cercou de elementos tradicionais e respeitáveis, fazendo uma administração profundamente honesta e liberal.
          Assim como o nome de BLUCHE não figura nas conclusões dos inquéritos abertos pela Polícia do Dr. João Medeiros, também nelas não aparecem os de muitos adeptos do Partido Popular que elegeu governador o Dr. Rafael Fernandes e que sabidamente tomaram parte nesse movimento, embora, como já se afirmou, não se pudessem dizer senão oportunistas.

207

          O primeiro dos bilhetes de BLUCHE, ditos encontrados no Quartel do 21 BC e estampados naquela publicação, estava assim redigido: “Companheiro Quintino:Você aja com toda atividade. . Tudo quando você quizer se informar faça por meio destes companheiros que são de confiança. O Chefe de Polícia vocês façam logo o serviço. Nós estamos firmes e estamos levantando o ânimo da massa. O governo revolucionário só amanhã, pois hoje estou em reunião. (a) Bluche.”
          E o outro bilhete: “Cordeiro: Vocês não deram tempo que se mobilizar as nossas Forças. Você estava com sede. Muito bem toque para diante. Estamos trabalhando no sentido de levantar as massas. Não confie em nenhum oficial. Já enviamos mais de cem homens para aí. Já demos instruções aos camaradas no sentido de liquidar os integralistas. Haja com toda energia. Viva o 21 BC. Viva L. Carlos Prestes. Viva o Exército Brasileiro que nunca traiu o povo. BLUCHE. Ano 1º da Revolução no Brasil. mande-me dizer se já seguraram o comandante da Polícia Militar.”
          Tudo está conforme o “clichê.”

208

          A publicação em que estão inseridos esses bilhetes em “clichês” é de 1937. Todos os inquéritos policiais que apuraram os acontecimentos de novembro de 1935 foram logo terminados. Os originais desses bilhetes – encontrados no quartel do 21 BC – após a jugulação da revolta ficaram, portanto, desde aí, em poder da Polícia, do Chefe de Polícia. E porque não foram instruir aqueles inquéritos como documentos de grande importância? E qual a explicação de terem servido apenas para sua publicação nesse livro do então Chefe de Polícia quase dois anos depois?
          Há duas alternativas: ou esse “Bluche” fora, assim encoberto, um agente provocador do governo e este não tinha interesse em identificá-lo ou esses bilhetes foram “fabricados” para dar relevo à atuação do autor do livro na qualidade de Chefe de Polícia. A primeira hipótese é a mais provável, embora a segunda tivesse também como a finalidade mostrar as intenções sanguinárias dos revoltosos contra os quais conforme frisa o referido Hélio Silva se atribuíram muitos crimes, inclusive atentados a moças que nunca aconteceram. E mesmo alguns dirigentes revolucionários usaram pseudônimos como “Buda” e “Santa” em ordens de requisições etc. tais bilhetes também devem ter sido encontrados, mas também não figuraram nos inquéritos, tanto que a denúncia oferecida, minuciando todos os fatos, não alude a esses pseudônimos.

209

          A revolta vermelha de 1935 como escreve Hélio Silva (op. citada, pág. 44), foi reprimida a ferro e a fogo. Foram cometidas aqui toda a sorte de injustiças, atrocidades e até fuzilamentos.
          Houve, é certo, políticos potiguares, absolutamente não comunistas que, impensadamente, deram ao movimento certa colaboração ou com ele simpatizaram ou lhe foram indiferentes no sentido de não hostilizá-lo. Muitos a imaginavam útil à derrubada de Rafael Fernandes do governo estadual e não ponderaram no poder de barganha e na fria impassibilidade de Getúlio Vargas face a acontecimentos políticos que sempre que ele podia orientava exclusivamente no sentido de permitir-lhe a permanência no poder sem compaixão para as vítimas dessa política e sem nenhuma consideração de ordem pessoal nessa maquiavélica orientação. Mais tarde ele provaria essa feição de seu caráter comparecendo num palanque, em público, na companhia de Luiz Carlos Prestes. E Plínio Salgado provou o gosto amargo do getulismo ao se embair de confiança naquelas palavras com que enganou o Sigma, visitante do Catete, logo após o golpe do Estado Novo: “Vós sois a esperança verde do Brasil.”

210

          Contou-me o Dr. Francisco Martins Veras, à época desses acontecimentos, deputado federal pela Coligação Mário Câmara – Café Filho que durante os dias em que a revolta dominava Natal, ele freqüentava o Catete e numa das conversas com Getúlio que lhe perguntava pelo paradeiro do governador Rafael Fernandes, o Presidente teve a seguinte piada a propósito: “Rafael deve ser chamado pro edital”. . .

211

          Um documento oficial retrata o quadro de injustiças que prevaleceu no Rio Grande do Norte sob o pretexto de repressão ao movimento de novembro de 1935. São as palavras do Procurador Himalaia Virgulino ao se pronunciar no Processo n. 11, em que se apuraram os acontecimentos relativos aos municípios de Ceará-Mirim, Taipu, Touros, Baixa-Verde, Lages e Angicos:

          “No momento em que toda a nação estava inteiramente interessada em sufocar o extremismo no Brasil, era de esperar que, nas diligências procedidas fosse esquecido qualquer rancor ou interesse político partidário. Tal, entretanto, não ocorreu.
          Depreende-se, sem esforço, dos presentes autos que houve preconstituido propósito em apurar-se menos a responsabilidade dos que, no Estado, pertenciam à “Aliança Nacional Libertadora” sob cuja bandeira política se fizera a revolução do que o de, sob a égide de reação ao comunismo, eliminar vultos de maior valor nos municípios em oposição ao partido dominante no Estado e solidários com o Governo Federal.”

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          “Três adversários de vulto foram imediatamente atingidos pelas diligências policias: - Luiz Varela, ex-prefeito de Ceará-Mirim, durante o governo do interventor Mário Câmara; José Carrilho da Fonseca e Silva, irmão do desembargador Elviro Carrilho, candidato do partido então dominante para governador do Estado e o Dr. João Maria Furtado, juiz de direito da comarca de Baixa-Verde.

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          “Luis Lopes Varela merecera aprimorado empenho do delegado especial para ser envolvido na rebelião extremista. Prefeito da época da interventoria, dispondo de fartos recursos, de homens e munição, usineiro abastado, chefe político de subido prestígio e mais do que tudo, irmão do Procurador da República em exercício, não podia ser esquecido.
          Era o momento de aniquilar o adversário e de impor ao procurador a sua suspeição no processo, favorecendo a oportunidade de nomear-se outro procurador à feição e que coroasse de pleno êxito o plano político partidário.
          Era mister que fossem denunciados todos os adversários do governo estadual, cujos nomes aparecessem no processo mesmo por testemunhas de encomenda e de ouvida vaga.”

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          Maior perseguição foi movida contra o juiz de direito da Comarca, Dr. João Maria Furtado. Estava esse Juiz a praia de banhos de “Cajueiro”, distante quatro léguas, mais ou menos, de Baixa-Verde, quando foi invadida essa cidade, assumindo o governo proletário a praça do 21 BC, Manuel Alberto da Silva Filho, vulgo “Tenente Lins”.
          Fracassado o movimento no dia 28, foi mandado prender pelo delegado especial e conduzido a Baixa-Verde onde se lavrou um auto de prisão em flagrante (Fls. 120), apresentado ao juiz que recusou assiná-lo.”
          As declarações desse magistrado, de fis. 352 a 359 v. bem esclarecem a série inominável de humilhantes violências sofridas do Sr. João Câmara.”

          As transcrições feitas constam daquele Processo n. 11, julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional, e também da DEFESA do então deputado pela “Aliança Social” que reuniu os maristas e cafeistas no Estado, Amancio Leite, e sob o título Carta Aberta divulgada em folheto impresso na tipografia Nordeste, rua Cel. Vicente Sabóia, 17, Mossoró, 1938.
         
212

          Esse parecer do Procurador da República, Dr. Himalaia Virgolino, concluiu pedindo a exclusão da denúncia de numerosos acusados o que foi unanimemente deferido pelo Tribunal de Segurança Nacional, em acórdão de 10 de agosto de 1937 que concluiu assim:

          “Vistos e relatados estes autos de processo n. quatro do Rio Grande do Norte, em que são acusados Benilde Dantas e outros. Atendendo que o Dr. Procurador deixou de oferecer denúncia contra vários indiciados, conforme se vê de fis. doze; atendendo a que compete ao Tribunal decidir sobre o pedido de arquivamento de inquérito ou exclusão da denúncia, quando um ou mais réus que figurem no inquérito ex vi do disposto no artigo décimo número sexto do Regimento Interno; Atendendo aos elementos constantes do inquérito policial; Acordam os Juízes do Tribunal de Segurança Nacional, por unanimidade de votos, deferir a exclusão da denúncia pedida pelo doutor Procurador, em relação aos acusados José Carrilho da Fonseca e Silva, Horónio Varela Buriti, Mauro Varela da Fonseca e Silva, João Ferreira Cabral, Raimundo Alves Ferreira, Climério Ferreira Cabral, Mário Alves, Francisco Machado Dantas, Luiz Lopes Varela, Manuel Marçal, João Mateus, Misael Coelho, Manuel Sebastião, Luis de Matos, Valdemar Antunes Quirino de Melo, João Maria Furtado, Antônio Justino de Sousa, Manuel Rodrigues das Chagas, Orlando Nicácio da Cunha, Alcides Antônio de Oliveira e José Vicente. Sala das Sessões, Março, dezessete, de mil novecentos e trinta e sete (aa.) Barros Barreto, Presidente e Relator. Costa Melo, Juizes Lemos Bastos, Braga e Raul Machado.”

          Guardo certidão desse acórdão, devidamente transcrita no Livro B-26 do Registro de Titulos e Documentos, fls. 82v. n. de ordem 4.556, em data de 4 de março de 1947, no Segundo Oficio de Notas de Natal, do tabelião Paulo Mesquita.

213

          Na cidade de Santa Cruz o inquérito foi tão vergonhosamente organizado que os depoimentos (oito testemunhas) eram todos os mesmos, verbo ad verbum, sem uma palavra a mais ou menos em todos eles. Tradução: foram “fabricados” para posterior assinatura das testemunhas. Assim, todos os elementos importantes que anteriormente haviam tomado posição política contrária ao Partido Popular que elegeu o Governador Rafael Fernandes foram deliberadamente envolvidos em investigações policiais como tendo participado do movimento extremista.
          Não ficou um só município do Estado em que isso não aconteceu. Era preciso liquidar com o adversário político: abertas as investigações era os investigados detidos desde logo ou teriam para evitar a prisão que se foragir para os Estados vizinhos.

214

          Aquela publicação do deputado Amâncio Leite se originou de um processo policial aberto já nos meados de 1936. Muitos meses após a derrocada da revolução extremista, surgiu nos municípios de Macau e Mossoró a primeira guerrilha vermelha da América, a antecessora de Che Guevara. Elementos operários das salinas entre eles Manuel Torquato num gesto evidentemente suicida sob o comando do advogado provisionado Miguel Moreira penetraram na caatinga desses dois municípios e chegaram a assaltar propriedades e até ônibus das carreiras regulares para Mossoró, travando diversos choques com a Polícia. Morto Manuel Torquato, traiçoeiramente, por um dos componentes da guerrilha, os demais foram presos sendo que Miguel Moreira perdeu um olho na permanência de alguns meses em continua movimentação nessa louca aventura.

215

           Aproveitando esse episódio a repressão abriu inquérito e alguns dos componentes desse grupo de guerrilha, debaixo de torturas inflingidas pelo sargento Valdomiro Alves, foram forçados a responsabilizar alguns deputados da Oposição com assento na Assembléia Legislativa como fornecedores de armas ao grupo. Entre esses deputados estavam Amâncio Leite, residente em Mossoró e Benedito Saldanha, residente em Alto Santo, no Ceará, onde possuía uma grande propriedade. Era mais um pretexto para inutilizar alguns adversários políticos.

 

216

          Deputados estaduais tinham então como ainda agora imunidades parlamentares – somente poderiam ser processados mediante licença do respectivo corpo legislativo. Então contra aqueles dois deputados e mais o Dr. Raimundo Ferreira de Macedo, eleitos pela Coligação Mário Câmara – Café Filho, foi requerida aquela licença. Em relação ao último, envolvido nos inquéritos policiais por outra acusação que não a mesma dos primeiros, a Assembléia por 17 votos negou a licença e em relação aos dois primeiros houve empate no plenário, cabendo votar desempatando o seu presidente que era o Monsenhor João da Mata Paiva, empedernido político, filiado ao Partido Popular.
          Dada a natureza da matéria, o voto então seria o chamado de Minerva, favorável ao acusado, mas foi ao contrário: votou pela concessão da licença, escandalizando os meios jurídicos do Estado.

217

          E mais uma prova de mentalidade sectaria desse sacerdote atuando como político: envolvido injustamente nas investigações sobre esse levante, fui preso por um destacamento do Exército, guiado por Luiz Cordeiro, civil a serviço e da confiança do chefe político populista de Baixa-Verde, João Câmara, na praia do Cajueiro, no município de Touros onde me encontrava veraneando com minha família, a do meu cunhado Domingos Romano e a do meu pai, há cerca de 15 dias. Em conseqüência, o Governador baixou ato me afastando das funções do cargo de juiz de direito daquela comarca, o que era, afinal, a meta do meu envolvimento como participante da revolta.

218

          Excluído da denúncia, em março de 1937, retornei ao Estado e requeri ao Governador a revogação do ato de novembro de 1935 que me afastara das funções de Juiz de direito. O Dr. Rafael Fernandes se encontrava no Rio e assumira o Executivo Potiguar aquele sacerdote que se omitiu por quase 30 dias a despachar meu pedido, ensejando-me requerer Mandado de Segurança que, antes de ser informado, produziu o efeito desejado: o Diário Oficial do Estado de 27 de maio de 1937 publicou ato, assinado por aquele sacerdote, revogando o anterior n. 184, de 30 de novembro de 1935, permitindo-me reassumir minhas funções.
          O executivo não teria nenhum pretexto a alegar como informação a contestar o direito pleiteado.

219

          Na transcrição de trechos da denúncia do Procurador Himalaia Virgolino, no Processo n. 11, feita no n. 209, está fixada minha posição e situação em relação ao movimento extremista de novembro de 1935. Chegando a Baixa-Verde sob escolta militar, que me foi intimar a regressar de Cajueiro, constatei, de imediato, a completa anarquia e desorganização ali e me apresentei ao “Tenente Lins” que (fardado), se achava dentro do prédio da Prefeitura e lhe pedi permissão para me corresponder telegraficamente com meu concunhado Sandoval Capistrano, residente em Natal, no que fui atendido.

 

220

          Constatei também que a firma comercial de João Câmara estava com algumas portas arrombadas e sendo saqueada por muita gente. O espetáculo que percebi à distância me encheu de repugnância. Sebastião Félix, escrivão do único cartório e adversário da situação e que me pareceu simpático ao movimento, embora condenando o saque, me informou que fora ordenado pelo “Tenente Lins” como uma represália à residência armada tentada sob a direção de elementos da firma à entrada dos revoltosos na cidade, ocorrendo então rápido tiroteio.

221

          Ao apresentar-me ao “Tenente Lins”, juntamente com o Dr. José Siqueira de Medeiros, promotor da comarca, logo à chegada, e declinando nossos nomes e funções, ele, nos retrucou que pertencíamos aos partidos decaídos e que, portanto, devíamos resguardar-nos de atitudes contrárias ao movimento vitorioso. Era pela manhã do dia 25 de novembro.

222

          Verifiquei, de logo, que tudo era uma completa desorganização e que nada restava a fazer senão retornar para onde se achava minha família. Para isso mandei procurar um transporte e só consegui à noite um caminhão particular de um meu amigo Francisco Inácio de Melo. Almocei juntamente com o Dr. José Siqueira em casa do velho servidor federal João Alfredo, coletor geral e correligionário do ex-interventor Mário Câmara. Depois recolhi-me à casa de meu cunhado Domingos Romano, cuja família também se achava em Cajueiro e juntamente com ele, à noite, retornamos àquela praia.

223

          Nesse transporte de Francisco Inácio de Melo, voltou a Baixa-Verde, Manuel Bezerra Galvão, parente de meu pai e humilde servidor da Prefeitura de Baixa-Verde e que me acompanhara a Cajueiro para evitar de ser alvo de qualquer perseguição na minha eventual ausência da cidade. Com as notícias que foi colhendo pelo caminho, procurou chegar à casa ocultamente, embora nada tivesse com a revolução, pois estava em Cajueiro há 15 dias. Foi porém, procurado imediatamente para ser preso e tece que fugir, até que com a anistia pôde voltar ao seu cargo. Não deixou, porém, de ser mais uma vez perseguido. Foi ilegalmente demitido, mas a Justiça lhe deu ganho de causa e hoje tem uma pequena aposentadoria como ex-procurador de impostos municipais.

224

          Em Cajueiro, fiquei aguardando os acontecimentos, porém, tendo a certeza de que seria alvo de grandes vexames. Mas, com o destemor e a coragem dos que tem consciência limpa, recusei refugiar-se das perseguições que chegariam em breve. Na madrugada de terça para quarta-feira, 27 de novembro, recebi por duas vezes, um após outro, dois recados por um portador a cavalo de André Gomes de Sousa (1º-2-1885 – 28-12-1956), proprietário em Touros e pessoa com quem tinha poucas relações de amizade, oferecendo-se para ocultar-me em suas propriedades o que recusei, inclusive, porque, aceitando essa oferta, daria a entender ser culpado de algum delito.

225

          Para o momento vivido no Rio Grande do Norte então, esse gesto de abnegação foi um ato de surpresa coragem e desprendimento. Jamais o esquecerei. André Gomes de Sousa há muitos anos descansa em paz no cemitério de sua humilde terra, que é Touros, e como não tive em sua vida a oportunidade de demonstra-lhe, de pagar-lhe esse favor que tentou prestar-me com espontaneidade generosa e altruística, devo-lhe este registro, a significar um In Memoriam para que sua lembrança sobreviva um momento que seja nos que venham a ler estas páginas e possam recordar esse nome que é o que um grande homem que, de tão humilde, sequer compreendia a grandeza de sua nobre ação.

226

         
          Começava para mim, uma longa via crucis de atribulações e sofrimento. Para mim e para minha família.
          Na quinta-feira, 28 de novembro, um caminhão com soldados do Exército, guiado por Luiz Cordeiro, um guarda-costas atrabiliário de João Câmara, foi prender-me e a meu cunhado Domingos Romano, em Cajueiro. Retornamos todos com nossas famílias também que nada mais tinham a fazer ali. Descemos em Baixa-Verde frente à Prefeitura, em cujo interior, se apinhavam populares e soldados do Exército e da Polícia, cumprindo todos as ordens dadas pelo Coronel João Câmara que fardado de capitão do Exército, comandava, do local, a repressão. A entrada de cada detido, ele prorrimpia em recriminações, aos gritos. Pretendeu fazer comigo e meu cunhado a mesma encenação de autoridade e prestígio, mas não conseguiu porque, repliquei-lhe altivamente e no mesmo tom de voz, exprobando-lhe as arbitrariedades que vinha cometendo. Ficou do episódio uma sensação na assistência e que mais tarde me foi relatada por alguns dos espectadores.

227
          Com esta altivez pública ante a arrogância que a força e as circunstâncias faziam crescer na mentalidade daquele típico senhor de baraço e cutelo, ele se aquietou. Imediatamente fui recolhido a um quarto do prédio onde já se encontrava detido também Antônio Justino de Sousa, ex-prefeito do município na interventoria Mário Câmara, por sua vez vítima de insensata injustiça.

228

          Pouco mais tarde, recebi ali um bilhete assinado pelo Capitão da Polícia Militar, Severino Raul Gadelha, designado como Delegado Especial para o inquérito, chamando-me para assinar um auto de prisão em flagrante que fora mandado lavrar contra mim. Naturalmente, como consta no parecer do Dr. Himalaia Virgonlino, recusei-me a essa assinatura.

 

229

          Guardei, porém, esse bilhete como uma relíquia a provar por si só a falsidade desse flagrante, cujo auto fora lavrado na ausência do “flagrado”. . . Cumpre notar que aquele Delegado Especial estava assessorado pelo bacharel Abilio Cesar Cavalcante, que no governo Juvenal Lamartine se celebrizara por presidir todos oos inquéritos do “Esquadrão da Morte” da época: o fuzilamento dos dois elementos do bando de Lampeão quando atacou Mossoró, os quais, feridos, caíram prisioneiros, concluindo o inquérito policial que eles se haviam suicidado, e o assassínio de Francisco Pereira, a que já fiz referência, quando seguia escoltado e algemado da Cadeia de Macaíba para responder júri em Acari e foi a única “vítima fatal” de um “desastre” com o carro que conduzia o preso e sua escolta nas proximidades de Currais Novos.

230

          O “desastre” está sumariamente noticiado em A República de 30-10-28. Comandava a escolta o capitão Joaquim de Moura, além do sargento Luiz Auspício, sendo o carro dirigido pelo sargento Genésio Cabral e mais o soldado Feliciano Tertulino. A história do crime está contada no livro “Vingança, Não”, do Padre P. Pereira da Nóbrega (Rio, 1960, ed. Freitas Bastos) e pormenorizada através de trechos de uma carta daquele motorista, falecido em 1972, filho do assassinado (fls. 268/271). O preso, assim sacrificado, seria defendido pelo provisionado João Café Filho.

231

          Alguns meses passados, aquele bilhete que me chamava para assinar tal “flagrante” foi lido deputado João Café Filho em discurso na Câmara criticando a forma porque se vinha processando a repressão ao movimento vermelho de novembro de 1935 no Estado e as injustiças praticadas à sombra dessa repressão de que era prova sem resposta aquele documento. Essa exibição causou espanto e hilaridade na Câmara Federal e na sua assistência, sendo o fato notícia na imprensa do Rio.

232

          A noite desse dia fui conduzido preso para Natal. Meu cunhado Domingos Romano fora solto em Baixa-Verde. Fiquei alojado no Distrito Policial da Ribeira, prédio vizinho ao da Secretaria de Segurança e depois de quatro dias, removido para o 1º andar do prédio da então Escola de Aprendizes Artífices, depois Escola Industrial e que funcionava ainda à Avenida Rio Branco, hoje ocupada por uma dependência da Universidade Federal. O edifício fora transformado em presídio para alojar grande número de detidos.

233

          Tinha o prédio um portão de ferro que dava para a travessa “Professor Zuza”. Essa entrada desapareceu com a remodelação feita pela Universidade em 1971. Era por essa entrada desaparecida que os presos eram recolhidos ali. A travessa “Professor Zuza” separava o prédio, na parte em que ela sai na Rio Branco, da casa de residência do Dr. Nizário Gurgel, cunhado do Dr. Aldo Fernandes, Secretário Geral do Governo Rafael Fernandes e eminência parda desse Governo.

234

          Registro a circunstância porque, de lá de cima do 1º andar onde foram alojados os presos políticos, o dentista Nizário Gurgel, de viva voz, e comunicava com seus familiares, solicitando tudo que lhe interessava. Nizário, apesar de tudo, estivera tão profundamente envolvido no movimento, que afinal, veio a ser condenado a 4 anos de reclusão. Papel destacado também no movimento teve seu filho menor impúbere, mas demonstrado uma precocidade impressionante na seara do mal, Romildo Gurgel. Com esse filho menor, Nizário intimou a uma esquadrilha de navios mexicanos, surta no porto e na qual se refugiaram alguns brasileiros, temerosos das conseqüências do movimento, entre os quais, o desembargador Silvino Bezerra, fizesse a entrega dos asilados.

235

          E registro mais outra circunstância: no relatório do inquérito policial o Dr. Nizário Gurgel, embora demasiadamente conhecido, teve seu nome modificado para Nicácio Gurgel e assim foi denunciado pelo Procurador da República conforme se vê nessa peça. Tais pormenores são dignos de nota: havia algo no interesse de exculpá-lo, não seu se por virtude de seu parentesco com o mais prestigiado membro do governo estadual.

236

          Estas observações se explicam nas referências sobre os correligionários do então governador que, apesar de haverem aderido ao movimento vermelho, no entanto, passaram nas largas malhas das investigações policiais, que, por sua vez, colheram tudo quanto foi adversário político de alguma importância, mesmo sem qualquer participação nele.

237

          Contou-me José Alecrim, funcionário aposentado do Telegrafo Nacional que, durante o mês de novembro de 1935, sendo encarregado da estação telegráfica de Touros, que o delegado de polícia ali, recém-nomeado, sargento João Felinto, apareceu em sua repartição de lenço encarnado e lhe indagou porque não colocava bandeira vermelha já drapejando em muitas casas, respondendo ele que somente receberia ordens de seus superiores. Contou mais que João Felinto veio imediatamente para Natal e como o Quartel da Polícia já caira em mãos dos vermelhos, armou-se de fuzil, sendo detido ou desarmado em São José de Mipibu. Seu nome jamais figurou nas investigações pois se tratava de pessoa grada ao situacionismo.

238

          Tenho, desde 1935, com dados da época e não pelo registro de memória, uma lista desses “populistas” – adeptos do Partido Popular – que elegeu o governador Rafael Fernandes, com pormenorização de fatos e circunstâncias elucidativas da participação de cada um na revolta vermelha daquele ano. Com relação, por exemplo, a Paulo Teixeira, além do que foi narrado anteriormente ele andou de metralhadora em punho juntamente com o cabo Giocondo, do 21 BC, em Macaíba, ambos se havendo hospedado na residência de Mesquita Filho, chefe político populista ali.

239

          Nessa cidade foi organizado um “comitê” comunista sob a chefia de Giocondo, havendo até fornecido um salvo conduto ao Dr. Virgílio Dantas. Havia reuniões desses elementos em casa de João Matias de Araújo, 1º suplente de delegado, nomeado pelo recém-empossado governador do Estado. O Tenente Francisco Germano Filho esteve constantemente no quartel do 21 BC e foi visto nas Rocas atirando de fuzil. Austriclínio Vilarim, que participou do movimento, almoçou com esse tenente no 21 BC. José Rodolfo, sub-inspetor da Guarda Civil, Santos Lima, empregado da Estrada de Ferro, Renato Caldas, poeta, Manuel Augusto Fernandes, fiscal de rendas Baixa-Verde; e Sérgio Severo, um dos chefes integralistas da terra, além de outros partidários da situação, embora não comunistas, tiveram participação no movimento, mas seus nomes não foram objetos de investigações policiais.

240

          Estiveram detidos no presídio da Escola de Aprendizes Artífices, na Rio Branco, entre outros; Dr. José Siqueira de Medeiros, Amaro Magalhães da Silva, então intransigente cafeista; Gastão Correia, provisionado e jornalista; Dr. José Pinto, médico, que, adepto, do ex-interventor Mário Câmara, se achava no alto Oeste do Estado, onde do movimento chegara apenas a notícia; José Anselmo Alves de Sousa, tio do futuro donatário do Estado, o Senador Georgino Avelino; Luiz Máximo, cafeista etc. etc. O presídio guardado, a princípio, pela Polícia Paraibana, entre cujos oficiais se encontravam, o capitão Manuel Benício e não ocultavam suas simpatias por muitos dos detidos que ficaram sabendo absolutamente inocentes.

241

          Na forma do disposto no art. 19, § 3º das Disposições Gerais da Constituição então vigente, a de 1934, foram designados “Juízes do Sítio” dois juízes de direito da capital, entre eles, o Dr. Floriano Cavalcanti. Tinham a missão daquele dispositivo constitucional: ouvir os detidos, “dentro de cinco dias”. Raros deles – que eram em grandíssimo número – o foram dentro desse prazo, como era de prever.

242

          Entendi, então, que, ultrapassado aquele limite, se caracterizara a “ilegalidade da detenção” e comecei a redigir habeas-corpus dirigidos à Justiça Federal. Exercia o cargo de juiz federal o Dr. Teotonio Freire e o de substituto o Dr. Celestino Wanderley, o tipo mais acabado do juiz compassivo e bondoso. O Dr. Teotonio Freire julgou logo o processo oriundo da cidade de Macaíba, em que estava envolvido um seu parente em grau não proibido, Teodorico Freire, provisionado e elemento do grupo cafeista que jamais tivera a participação no movimento e nem jamais professado idéias comunistas. Algum tempo depois, Dr. Teotonio Freire entrou em licença.

 

243

          O Dr. Gil Soares requereu o habeas-corpus a meu favor, talvez o primeiro, havendo aquele juiz declinado de sua competência para o juiz do sítio. Houve recurso e o Supremo Tribunal Federal logo decidiu pela competência do juiz federal. Então apesar das mais incríveis pressões o Dr. Celestino Wanderley começou a conceder todos os habeas-corpus com essa fundamentação aos detidos ouvidos fora dos cinco dias determinados na Constituição. Fui um dos beneficiados. Assim, obtive liberdade, após uma detenção de cinquenta e cinco dias. E como tinha consciência plena de minha inculpabilidade, resolvi esperar aqui mesmo, no Estado, pelo processo para me defender. Vaga a casa de veraneio de meu concunhado, Sandoval Capistrano, na Redinha, para ali me transladei no final de janeiro de 1936.

244

          A praia estava deserta de veranistas e a casa por mim ocupada ficava na rua que dá frente para o Rio Potengi. Não existia o Mercado Público ali muitos anos depois construído, e nessa rua apenas três casas estavam ocupadas, pois todas pertenciam a veranistas já retornados a Natal: além da minha, a de José Aguinaldo Barros e a do telegrafista João Dória Correia, casado com uma filha de D. Adelaide Silva, viúva e parteira já falecida e das mais conceituadas e conhecidas que já trabalharam em Natal.

245

          Natural que essas três famílias, isoladas assim numa praia e rua de casas desabitadas, mantivessem, às noites, principalmente, contato e convivência. Foi nessa convivência que José Aguinaldo de Barros, meu velho conhecido e colega do “Santo Antônio”, me apareceu sob ângulo absolutamente desconhecido para mim: a do homem sensível e apaixonado pela poesia singela das canções potiguares, tão cheias de lirismo puro, na simplicidade e no profundo encanto de versos e rima, de música que fala ao coração. Em muitas noites dessa temporada em que “a lua descorada brilhava nas paragens luminosas” fizemos continuadas tertúlias e pela primeira vez José Aguinaldo me pôs em contato com aquelas singelíssimas estrofes de José A. Bezerra, musicadas por Eduardo Medeiros, de uma simplicidade ímpar no exprimir amor e sentimento. E as guardei para sempre, na memória e no coração, com um sabor de doçura e angústia que encheram aqueles meus dias, assim:

          “Dizem que o sol, a lua e as estrelas
          Todos nascem das bandas do Oriente
          No entanto, sendo a mais formosa delas
          Só me surges dos lados do Ocidente.

          Chamo-te estrela porque toda tarde
          É o teu vulto que a noite me anuncia
          E quando a sombra o firmamento encarde
          Me apareces com toda primazia.

          Se às vezes uma flor ou mesmo um ramo
          Em prova de amizade me ofereces
          E quando vou dizer que sempre te amo
          Tu me afirmas também que não me esqueces.

          Que nossos dias sejam prediletos
          Calmos, risonhos, quase seculares.
          Tu sempre adivinhando os meus projetos
          Eu decifrando sempre os teus olhares!”

246

          É que esses nossos dias, meus e de José Aguinaldo, na Redinha, começaram a se encher de inquietação e sobressaltos com as notícias que se foram amiudando de que a Polícia pretendia prender novamente e remeter para o Rio todos os que, envolvidos em processos, haviam sido libertados por habeas-corpus. Precaviamente, passamos a dormir numa casa um tanto distante da nossa, onde morava uma pobre lavadeira de Sandoval Capistrano.

247

          Depois, com notícias mais positivas, resolvemos passar as noites num quarto situado nos fundos de uma das casas desabitadas e mais próxima da minha para efeito de algum aviso. E na noite seguinte a esse outro esconderijo noturno, cerca das nove horas, uma lancha da Polícia chegou à praia bem em frente à nossa casa e ao descerem, à luz da lua, alguns investigadores, minha esposa pressentiu essa presença, rapidamente nos veio avisar pelo quintal e retornou a tempo de receber na porta, calmamente, os policiais.

 

 

 

FUGITIVOS

248

          Com a maior rapidez possível atravessamos o quintal e saímos dele entrando na sombra de árvores que impedia fossemos divisados ao longe e fomos nos acolher no cume de um morro, no caminho de Pajuçara, coberto nos flancos de cerrada vegetação, mais escassa no cimo, lugar escolhido anteriormente em companhia de meu cunhado Silvio Brandão para em qualquer eventualidade se saber em casa onde nos encontrávamos. Estávamos calçados e com capa e envolvidos nos quais passamos a noite ali, pois já nos abrigávamos fora de casa completamente preparados para fugir.

249

          Pela manhã dessa noite não dormida, enrolados em nossas capas e deitados na areia, passamos a vigiar os arredores, evitando ser vistos por quem passasse em qualquer dos dois caminhos que, em lados opostos, se avistavam do alto do nosso esconderijo. Esperamos a manhã toda que nos fosse trazido por Sílvio algum alimento para o desjejum. Pelo meio dia perdemos esse esperança. À tarde, famintos e sedentos, avistávamos num capinzal próximo, cultivado por Sandoval Capistrano para alimentação de seu grado de vacaria, um empregado deste, cortando capim, Precavidamente, desci até perto dele, perguntei notícias que não soube dar, pedi-lhe colher alguns cocos de coqueiros ali existentes e entreguei-lhe um bilhete para minha casa, recomendando entregá-lo sem despertar a atenção e pedindo resposta. Esse portador entregou-me quatro cocos e se foi com o bilhete não mais voltando.

250

          Mais tarde avistamos, vindo por um dos caminhos, armado de espingarda e bolsa a tiracolo como quem vai caçar, mas assobiando constantemente e olhando para todos os lados como quem quisesse encontrar outrem ou chamar a atenção para si mesmo, nosso vizinho e veranista retardatário, João Doria Correia. Certo de que nos procurava, sai ao seu encontro. Num ligeiríssimo contato, me entregou enrolados num pano, certa quantidade de farinha, um pedaço de carne seca crua e alguns limões e sugeriu fugirmos dali, pois a polícia continuava na praia, vigiando nossa casa. E rapidamente, sem nos dar oportunidade de fazer perguntas, desapareceu, fingindo estar caçando.

251

          Logo que minha esposa, na noite anterior, nos avisou, rapidissimamante, que a polícia estava chegando, o que possibilitou nossa fuga, ao retornar, os investigadores já batiam na porta da frente, perguntando por mim. Com toda a presença de espírito, ela respondeu que eu estava na cidade e ainda não havia voltado. Então a polícia mandada pelo Dr. João Medeiros Filho para minha segunda prisão, percorreu e revistou a casa até por baixo das camas e abrindo as jarras como depósitos dágua. Decepcionada, permaneceu do lado de fora e quando Jacira fechou as portas para se recolher cerca de meia noite, alegrando não esperar mais minha volta, acordada, os investigadores chegaram a subir ao telhado não deixando ninguém dormir, aterrorizando minha família por todos os meios, até disparando armas a esmo dentro da noite.

252

          E nessa situação, vigiada pela polícia, permaneceu minha família, na Redinha, por mais dez dias, tempo necessário para que eu pudesse me refugiar fora do Estado. A permanência ali era um despistamento sobre meu destino, dando a presumir que eu me encontrasse ainda pelos arredores.

253

          Minha nova prisão na oportunidade teria resultado no embarque para o Rio de Janeiro como aconteceu com a quase totalidade dos outros detidos políticos. Teria tido eu a companhia do grande Graciliano Ramos, que, no seu livro imortal, Memórias do Cárcere, fixa com tanta percuciência a personalidade de muitos dos presos potiguares. Ali estão retratados Manuel Macedo e Lauro Lago, dois dos membros do Governo Revolucionário que esteve à frente do Estado por três dias, Carlos Vander Linden, lembrado pelo gesto de heroísmo, salvando um náufrago na Ilha Grande e Ramiro Magalhães menor de 18 anos, também enviado para as masmorras do Sul.

254

          Depois do breve contato com João Dória, de cujo auxílio trazido apenas aproveitamos os limões, chupados com avidez inenarrável, resolvamos que, caindo a noite, teríamos de procurar alcançar Ceará-Mirim, onde poderíamos nos abrigar. Planejei a rota a seguir, alcançando pela Pajuçara e seguindo, à margem esquerda do Potengi, os trilhos da Estrada de Ferro Central e viajando, então, por essa trilha certa.

255

          Com os últimos clarões do crepúsculo levantou-se uma lua brilhantíssima que utilmente nos facilitou a caminhada. Sem nunca ter entrado por ali, sabia que, guiado pelo reflexo da iluminação de Natal e procurando a direção do poente, fatalmente, chegaria aos trilhos da estrada de ferro de Igapó. Tomei a dianteira e depressa verificamos que nosso caminho ia chegar ao mangue da margem do Potengi. Retrocedi e passando por debaixo de uma frondosa árvore, dela voaram assustados numerosos jacus. Mais acima tomamos o caminho que deixáramos à nossa direita.

256

          Muito adiante batemos numa casa humilde e atendidos tomamos água e fomos informados de que íamos no rumo certo de Igapó. Dirigindo a caminhada e para saber o que José Aguinaldo dela conhecia, perguntei-lhe de que lado ficava o mar e ele respondeu na direção diretamente oposta. . .
          Assim, se houvesse saído sozinho talvez não soubesse se guiar para chegar onde fosse necessário. Estava então, completamente desorientado.

257

          Ia bem alta já a noite quando nos aproximamos das primeiras habitações de Igapó e esta nossa presença no caminho foi denunciada por muitos latidos de cães nos quintais vizinhos. Era um alarme inconveniente, principalmente incomodativo, na situação em que nos encontrávamos. Mas sem atropelos, alcançamos os trilhos da Estrada de Ferro e por ela caminhando atingiríamos sem errar Ceará-Mirim, aonde deveríamos chegar ainda com noite. Daí a necessidade de apressar nossa marcha. Em breve, na descida da curva do “Carro Caido”, deparou-se-nos o deslumbrante cenário da Lagoa de Extremoz, com suas águas tranqüilas adormecidas sob o mágico fascínio de um alvíssimo e encantador luar. Debaixo da sugestão dessa paisagem de sonho, revivi, de súbito, a lenda do sino a tocar em horas mortas da noite no fundo das águas. Não ouvi esse misterioso toque, mas a tradição que o perpetua, real e vivo na memória perene do povo, me veio de súbito à lembrança pareceu-me ouvi-lo, ao recitar para mim mesmo, os versos de Damasceno Bezerra:

EXTREMOZ

         
          “A tarde expira. A noite se avisinha,
          Enchendo de silêncio a vila inteira
          Da “Ave Maria” a nota derradeira
          Solta no espaço a torre da igrejinha.

          Ao fim da estrada em plácida casinha
          Crepita vivo o fumo da lareira.
          Descrevendo espirais passa, ligeira,
          Buscando abrigo a ave ribeirinha.

          Serena, estanque, límpida, uniforme
          Sob o pálio da noite erma e tranqüila,
          Sonhando lendas a lagoa dorme.
         
          E em breve a lua, alteando o macilento
          Rosto por todo o céu, contempla a vila
          E chora sob as ruínas do convento.

258

          Muito distante já e passando horas da meia noite, marchando eu sempre à frente e mais apressado, comecei a perceber a necessidade de avançar mais, a fim de alcançarmos a Usina São Francisco ainda com a noite. Tive, porém, que esperar algumas vezes por José Aguinaldo, mais atrazado e revelando maior fadiga do que eu e já querendo claudicar na marcha. Estávamos, realmente, estenuados, era a segunda noite sem dormir e quase 36 horas, praticamente sem alimentação, além da marcha em que nos empenhávamos de muitas léguas.

259

          Não conduzíamos relógio, mas pude perceber, apesar da pouca experiência, os sinais da madrugada pela posição, aparecimento de estrelas e cantos dos pássaros. O dia estava se aproximando. Convenci a José Aguinaldo a um pouco mais de sacrifício e em breve, ainda com escuro, batemos à porta de um empregado daquela Usina que nos comunicou não se encontrar ali, seu proprietário, Luiz Varela – outro perseguido da situação – e, sim, seu irmão Paulo Varela que foi imediatamente avisado de nossa presença.

260

          Logo depois chegaram aonde nos achávamos – banheiro dentro do canavial – existente ainda hoje, em Umburanas, Paulo Varela (25-1º-1898 – 12-2-1973) e Jorge Câmara (27-9-1894 – 9-10-1958). Este nos serviu um pouco de rum, que muito nos reanimou. Tomamos banho para desenfadar, e comemos alguma coisa para matar a fome de dois dias.

261

          Somos então alojados numa pequena palhoça construída especialmente para abrigo noturno de Raimundo Antunes de Oliveira, também perseguido e que vivia ainda por esse tempo dentro dos canaviais de proprietários amigos, desde novembro do ano anterior. Estávamos no fim de fevereiro de 1936. Essa palhoça estava localizada dentro de uma mata alta e densa então existente, em frente à casa de residência de Umburanas, entre o alagadiço e a cerca da propriedade, ao longo da qual passa a estrada de automóvel que vem da rua para os engenhos da margem esquerda do vale do Ceará-Mirim. Hoje aquela mata foi substituída por um coqueiral. O chão da palhoça estava juncado de pontas de cigarros marca “17” fumados ali por Raimundo Antunes.

262

          Ficamos sendo alimentados da residência de Paulo Varela ali muito perto, durante três dias. À noite do que seria o quarto dia fomos “removidos” para outro refúgio: o engenho São Leopoldo, de Jorge Câmara, já no início do Baixo Vale. Ficamos agasalhados num quarto, à margem esquerda da estrada de automóvel, o engenho à margem direita. Ali permanecemos cerca de quatro dias.
          Desde a hora em que chegamos a São Francisco, a família de meu sogro Oscar Brandão teve conhecimento disso e discretamente os meus familiares em Redinha também souberam. Mas ali permaneceram até que pudéssemos sair de Ceará-Mirim.

263

          Alta noite do 4º dia nosso em São Leopoldo saímos, conduzidos por Manduca (Manuel Soares da Câmara, (10-4-1894 – 29-4-1955), empregado da mais alta confiança de Jorge Câmara, a cavalo com destino à praia de Maxaranguape.
          Descemos na proximidade das casas e nosso condutor foi se entender com Augusto Pirangi, o dono e timoneiro do pequeno bote denominado América, já contratado por Jorge Câmara para nos deixar no Ceará. Manduca voltou e nós fomos alojados no porão muito pequeno do bote que se achava dentro do rio Maxaranguape, esperando a maré que na enchente o elevasse da areia onde estava encalhado e permitisse sair barra afora.

264

          Tudo fora acertando em mais de uma viagem de Newton Câmara, filho de Jorge Câmara, então estudante e posteriormente formado em medicina e se dedicando hoje a empresas industriais, à Barra de Maxaranguape junto a Alexandre Câmara, conhecido por “Xandu”, proprietário e residente ali, homem de prestígio e sincero em suas amizades. Ele tudo preparou para nos dar escapula em bote, da mesma forma que fizera, com Benilde Dantas, por intermédio de Alfredo Edeltrudes de Sousa.

265

          Tudo estava perfeitamente coordenado, pois antes do dia clarear começamos a ouvir pancadas de maretas da enchente no costado do América e sentíamos que, aos poucos, ele ia subindo e começava a balançar.
          Logo chegou a tripulação: além de Augusto Pirangi, proprietário do bote, o único que sabia de nossa situação, mais dois tripulantes chamados Germano e Evaristo. Eram humildes pescadores locais, afeitos ao mar e conhecedores dos seus segredos e mistérios. Almas simples e até desprovidas de curiosidade, nada de nós indagaram durante toda a viagem.

266

          Quando se levantou o sol, já estávamos muito fora da barra, com um mar sereno dentro da esplendorosa claridade da manhã. Logo ao sair do porto, subimos do porão para o costado do bote. Preparado o café, o tomamos. Estávamos abastecidos por Jorge Câmara de toda a alimentação para a viagem, inclusive uma grande manta de carne seca de que almoçamos, apetitosamente, sem os contratempos de enjôos tão comuns às pessoas não habituadas a viajar no mar em pequenas embarcações.

267

          O oceano, tão plácido até então, antes do meio dia, começou a se encrespar ao sopro de vento cada vez mais forte, vindo pela popa do bote. E esse vento foi aproveitado para encher as duas velas, abertas a bombordo e a boroeste e impelir com maior velocidade o bote. Estávamos num quase temporal e toda a larga superfície do mãe se apresentava salpicada, até onde a vista alcançava de uma espumarada muito alva, como se a crista das ondas, sucedendo-se umas sobre as outras, ininterruptamente, houvesse sido engalanada num estendal de rosas imaculadamente alvas, rebrilhando ao sol.
          Um espetáculo que jamais meus olhos deslumbrados esqueceram.

268

          O barco jogava fortemente e já pela tarde, no arremesso de uma onda mais forte, a tranca da vela de boreste, enfiou a ponta na água e se arrebentou. A vela foi recolhida e içada num “bolso” de vento para melhorar a velocidade do bote. Estávamos à altura da praia de Cajueiro e fomos forçados a fazer uma arribada a Caiçara, município de Baixa-Verde então, o que não estava em nossos projetos.

269

          Ao escurecer ancoramos um pouco ao largo e distante de um grande número de barcos de pesca ali fundeados. Dormimos e logo cedo Augusto Pirangi foi à terra levando a tranca partida, trazendo-a consertada pela tardinha. E com a chegada do “terral”, vento que sopra à saída da noite naquele litoral, levantamos ferro para a segunda etapa da nossa viagem destino ao Ceará.

270

          Contou-nos Augusto Pirangi que se encontrou em Caiçara com Alexandre Câmara, “Xandú”, irmão de João Câmara, que estava veraneando ali com a família, se esse veranista houvesse pressentido minha presença em um dos multíssimos botes ancorados ao largo, naturalmente, a polícia teria ido nos tirar de bordo para a prisão.
          Precavidamente, porém, havíamos fundeado à distancia de outras embarcações impedindo, assim, qualquer identificação possível ou uma delação.

271

          De Caiçara rumamos nos afastando muito da costa. Viagem à noite, esse rumo fazia com que o bote passasse ao largo das “Urcas”, rochedos que nas marés mais baixas apontam acima das águas, constituindo, desse modo, um real perigo à navegação. São escolhos que, fora da linha do horizonte de terra para o mar, se situam ao largo, em frente à praia de Galinhos.
          E nesse afastamento fomos tão fora que, ao amanhecer, avistamos apenas mar e céu. Rumamos imediatamente em direção à terra e somente à tardinha, apesar de vento muito favorável, é que conseguimos chegar à praia de Redonda.

272

          Ali, sem nenhum receio descemos à terra e compramos peixe para nosso jantar a bordo. Aproveitamos novamente o “terral” e nos encaminhamos na última etapa em demanda do Ceará, ao cair da noite.

273

          No bote, dormíamos muito bem, na respectiva coberta, amparados e acostados à borda e enrolados em pedaços de uma vela que se fizera imprestável. Adormecíamos olhando as estrelas nas profundezas dos céus, com o pensamento voltado para a terra e os entes queridos dos quais nos distanciávamos cada vez mais. A tripulação se revezava seguidamente no leme.

274

          Nessa nossa última noite nosso rumo não se afastou muito da terra e pela manhã já estávamos avistando ao longe praias do Ceará.
          Cerca das onze horas, divisamos na costa algumas habitações e sem saber precisamente o nome do povoado procuramos chegar à terra.
          Esta última travessia começou a nos aparecer perigosa, pois com a maré baixa, apontavam constantemente fora das águas grande número de mourões provenientes de “currais” abandonados. Felizmente, conseguimos chegar sem incidentes à terra.

275

          Desembarcamos e nos despedimos da tripulação do bote que nos trouxera até ali. Foi com um sentimento quase inexprimível de angústia, que apertei as mãos desses nossos três companheiros de viagem: eles nos entregavam ao nosso próprio destino, ao desconhecido e retornavam à nossa terra. Era como se nos separássemos para sempre de todos os que ficaram para trás, como se partíssemos para nunca mais voltar. . .

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NO CEARÁ

276

          Com nossas duas macas à mão – havíamos conseguido recebê-las para a viagem projetada quando ainda nos achávamos em São Leopoldo – tomamos um caminho na praia desconhecida que conduzia a casas um pouco distantes e indagamos de um homem que passava, que identificamos como pescador, se havia ali alguém que nos desse hospedagem e antes da resposta, aproximou-se outro homem também se aparência humilde que, escutando nossa indagação, disse que esperássemos por ele que ia ali adiante comprar peixe e nos levaria a uma estalagem.

277

          Realmente, em pouco tempo, “Seu Antônio” voltava e ficamos hospedados em sua própria casa. Almoçamos sob a curiosidade indagadora de uma sua filha, a perquirir nossos nomes, para onde íamos etc. já de nomes trocados, informamos que vínhamos de Barra de Maxaranguape e íamos para uma promessa no Juazeiro.
          Assim, nos encartamos de peregrinos, crentes do Padre Cícero. Era a melhor saída para justificar nossa passagem por ali.

278

          Acertamos logo com nosso hospedeiro, vizivelmente um homem muito pobre, nos deixar no outro dia em Aracati. A viagem seria a cavalo, pela beira da praia. Desde logo combinamos o preço para o aluguel dos animais e do trabalho de “Seu Antônio” em nos acompanhar até aquela cidade.

279

          O caminho beirando o mar, que encetamos muito cedo ainda no escuro da noite já diluído pelos albores da madrugada, em pouco se foi tornando impraticável com a maré em ascensão a bater em grandes ondas no imenso paredão caído a pique sobre a praia numa extensão de quilômetros. Então a estrada se alcandorava numa trilha estreita e arenosa sobre esse paredão formado pelo contínuo martelar das vagas e quase sempre muito próxima à sua borda de altura vertiginosa. Havia passagens perigosíssimas pela proximidade da estrada da orla do abismo.

280

          Durante toda manhã, prosseguimos quase que inteiramente nessa trilha, a cavaleiro das ondas que bramiam em baixo, de encontro à barreira. Desse alto, olhando quase sempre o mar, o espetáculo era deslumbrante, a superfície em tonalidades diversas, do verde macio ao azul ofuscante, numa extensão incomensurável, sob a luminosidade siderante da manhã e um horizonte sem fim. Do lado da terra, seguidamente, deparávamos, à distância, lagoas e açudecos, baixios e canaviais e aqui e ali, sítios e engenhocas que nosso guia informava fabricarem quase que exclusivamente aguardente.

 

281

          Cerca de treze horas, modificado o relevo da praia pelo mar, agora com suas ondas morrendo suavemente numa planície, deparamos com umas habitações e à porta de uma delas, bem frente ao oceano, pendurado no alpendre e já em parte cortado, um camurupim. Compramos dele para o almoço que mandamos ali mesmo preparar, enquanto nosso guia tratava dos animais para o resto da viagem, eu e José Aguinaldo nos distanciamos à beira mar e adiante, longe da vista de intrusos, tomamos, sem necessidade de calções, um inesquecível banho de mar. O primeiro e único, em águas do Ceará.

282

          Banho de mar, realmente inesquecível e maravilhoso. Sob um céu refulgente, com nuvens brancas esparsas nos altos dos céus, entramos no mar ao encontro das ondas crespas e cheias de uma doçura refrescante e reanimadora. Ali deixamos a imensa fadiga do corpo e as aflições do espírito como se nos houvéssemos banhado numa fonte de milagres e de esquecimento de nossa própria situação. O dia estava gloriosamente luminoso e um vento brando completava a paisagem paradisíaca que nos cercava. Deu-nos um rejuvenescimento de corpo e espírito.

283

          Nunca saboreamos com maior apetite um almoço de camurupim, cozido apenas na água e no sal e temperado com um molho de pimentas colhidas na ocasião.
          Continuamos a viagem e ao anoitecer atravessávamos uma planície extensa que era a foz do rio Jaguaribe, através da qual em breve nos achávamos alojados num modesto hotel em Aracati.

284

          Na hora de nos despedir e de pagar o trabalho do nosso guia, quis acrescentar-lhe ao ajustado mais algum dinheiro, ele polidamente o recusou e nos confidenciou que estava certo de que nós éramos perseguidos do Rio Grande do Norte e não romeiros do Padre Cícero. Mas que não tivéssemos o menor cuidado, pois ele saberia, se necessário, guardar segredo a propósito.
          Fácil seria uma delação: o hotel onde nos hospedamos estava com diversos hóspedes de uma concentração integralista local. . .

285

          Nosso itinerário era alcançar Fortaleza e a casa de um sócio de José Aguinaldo num escritório comercial. Descemos do ônibus que, pela manhã do outro dia saiu de Aracati, cerca das três horas da tarde, na Praça do Ferreira onde era localizado o escritório e ao penetrarmos nele, de surpresa, o sócio de José Aguinaldo, subitamente empalideceu e nos levou para sua residência: naquele preciso momento ocupava o telefone do escritório  um investigador da polícia.

 

286

          Estávamos no mês de março de 1936. Ficamos abrigados num quarto da casa de residência do sócio de José Aguinaldo. Imediatamente tentei fazer chegar notícia minha aos meus e enderecei à minha esposa uma carta, cujo primeiro envelope levava o nome d Desembargador Antônio Soares e o segundo, envolvido pelo primeiro, o do seu filho, Dr. Gil Soares, então deputado estadual da aliança Café Filho – Mário Câmara. Não havia possibilidade de ser violada no correio, por desconfiança, uma carta endereçada àquele magistrado.

287

          A carta chegou ao seu destino. Nela pedia a minha esposa para conseguir do deputado Benedito Saldanha, proprietário em Alto Santo, no Ceará, para nos mandar para o interior sob a proteção de muitos dos seus amigos.
          As providências pedidas tiveram certo retardamento, dadas as dificuldades de contato de minha senhora com aquele deputado, mas chegaram. Não era possível continuar onde estávamos dentro de Fortaleza.

288

          Quando em março de 1936 o Presidente da República proclamou o estado de guerra no país para facilitar a repressão ao extremismo de esquerda, ouvi a notícia, pela Hora do Brasil, ainda na casa que nos acolhera em Fortaleza. Compreendi melhor a necessidade de sair de onde estávamos.

289

          Vim a saber depois também que, na noite seguinte àquela em que havíamos deixado o engenho São Leopoldo para tomar o bote em Maxaranguape, a polícia varejava o engenho. Andava, de certa maneira, em nossa pista e aqueles que nos abrigaram como Paulo Varela e Jorge Câmara naqueles dias demonstraram coragem e desprendimento, virtudes raras então, convergindo os interesses em coletar as graças e as simpatias do governo.

290

          Certo dia chegou à casa onde nos achávamos em Fortaleza um motorista que se disse autorizado a nos transportar para o interior em missão do deputado Benedito Saldanha. Este, ao receber meu pedido, viajou ao Ceará e deu essas providências a nosso respeito. Recebi do motorista uma carta dirigida ao dono da propriedade para onde fomos remetidos, denominada “Rato”, pertencente a Manuel Guedes Martins (6-6-1888 – 18-10-1956).

291

          Manuel Guedes Martins havia adquirido fama por sua intervenção a favor da rebelião, que, dirigida pelo deputado Floro Bartolomeu e apadrinhada pelo Padre Cícero Romão, derrubara anos atrás o governador Franco Rabelo. Fora um destacado cabeça desse movimento. Aquela propriedade onde ele morava, localizada no município de Mamanguape, dista precisamente de Fortaleza como Taipu de Natal, ficando de permeio como se fora Ceará-Mirim, a sede do município.

292

          Chegamos cedo e ao entregar a carta de Benedito Saldanha a Manuel Guedes ele nos recebeu cordialmente e nos mandou alojar numa das inúmeras acomodações apropriadas. E ficamos fazendo as refeições, exceto o café pela manhã, em sua própria mesa, juntamente com sua família.
          Não podia haver maior consideração e melhor acolhida.

293

          Manuel Guedes era um rico fazendeiro e agricultor, não desses absenteistas, residindo permanentemente na sua propriedade “Rato”, possuindo ainda duas outras, uma delas de nome “Baixa Funda” com uma engenhoca a tração animal, onde fabricava rapadura que chegava para o consumo próprio e dos que trabalhavam a ele.
          Era homem sem instrução, mas inteligente, educado e profundamente humano. O acolhimento que nos deu não poderia ser melhor e mais dedicado. Registro esse traço do homem e do amigo feito assim na mais pura adversidade. É a recompensa, o pagamento ao favor prestado tão desinteressadamente a essa figura humana que a morte já apagou da vida, mas não da lembrança dos agradecidos e beneficiados de sua generosidade.

294

          “Rato” – se ainda tem essa esquisita denominação – é cercada por três lados por altas serras e por seu único lado plano é ligada à estrada tronco por um desvio que vai até a casa de residência do seu dono, cercada de muitas outras construções e currais, ao lado de grande açude, com uma longa represa indo por alguns quilômetros até o sopé de uma alternativa serra. O divisor de águas naquele cimo era também os limites da propriedade. O açude fora construído através da extinta I.O.C.S.

295

          Do pátio da fazenda se avistavam, como que penduradas nas alturas da serra, inúmeras e dispersas habitações e manchas de roçados. Todos os fins de semana os moradores desses altos vinham se abastecer na fazenda e comentava-se que muitos deles já ali se achavam liberados de delitos cometidos pelo decurso de mais de vinte anos. . .

296

          Uma vez familiarizados com os costumes impostos como norma à vida da fazenda, começamos a acordar pela madrugada e, lembrando os meus tempos, em Assunção, passei a me ocupar em ordenhar muitas das trezentas vacas que se encontravam todas as noites no curral, dando assim, voluntariamente, uma cooperação aos muitos homens que tinham a tarefa do desleitamento de tantas. E, então, tomava minha primeira refeição, bebendo quase cheia, uma cuia de leite, por mim mesmo ordenhado.

297

          Depois dessa primeira refeição, limitava-me a tomar uma xícara de café unicamente, até o almoço para o qual ia, depois do banho no açude, com um grande apetite na mesa farta de suculentos pratos.

298

          Esse regime favoreceu, consideravelmente, minha saúde: aumentei muitos quilos e meu peso estabilizou-se até hoje, com um mínimo de variação. Não nos ocupávamos em nada e deveríamos, assim procurar matar o tempo. Passamos a acompanhar os trabalhos de planta e limpa da fazenda com a turma de camponeses dirigidos por João Alexandre, outro refugiado, também sob a proteção de Manuel Guedes e que, há tantos anos ali, já até se casara com uma sua filha, e como genro, administrava os trabalhos de campo.

299

          João Alexandre era um nome suposto. Nos ns. 84 e 228 há referências ao livro do Padre Pereira da Nóbrega Vingança, Não, sacerdote filho de Francisco Pereira, o preso assassinado pela polícia de Juvenal Lamartine. Nesse livro está contada a história do João Alexandre que fui encontrar nessa fazenda. Irmão de Jarda e sobrinho de Francisco Pereira, vingara o assassínio de seu pai. Familiarmente ele era conhecido como Juca. E a pág. 320 está escrito:

          “Juca soube minuciosamente da morte do inimigo. Para fugir desapareceu na estrada do Ceará, com o nome de João Alexandre.”

300

          A versão do crime de vingança cometida, porém, diverge entre a que vem no livro e o que mais de uma vez me contou João Alexandre sobre o acontecimento. Relatou-me que esperou Manuel Cavalcante, que covardemente matara seu pai, armado de rifle e no caminho para a feira de Coremas, numa porteira que ele fechou e o esperado, ao parar para abri-la, foi atingido por onze tiros, morrendo instantaneamente.

301

          João Alexandre, sem nunca me dizer que era sobrinho de Francisco Pereira, muitas vezes me falou a seu respeito e da sua morte. Andava invariavelmente armado de revólver e de uma vez vi-o atingir a cabeça de um cachorro em carreira, perseguido por ter sido mordido por outro atacado de hidrofobia. Era, portanto, um exímio atirador.
          Somente, quando vim a ler, vinte e muitos anos depois, aquele livro do Padre Pereira da Nóbrega é que liguei os acontecimentos e tive uma idéia verdadeira sobre aquele meu companheiro de refúgio na fazenda “Rato”.

302

          Algumas semanas após nossa presença ali, chegaram também mais dois recomendados ao fazendeiro, sendo um perseguido político de Fortaleza e outro, acusado de delito comum, do interior. Saíram da fazenda sem muita demora. Não lhes gravei os nomes, sendo que o primeiro, era um rapaz inteligente e filiado ao P.C.

303

          José Aguinaldo demorou cerca de três meses e resolveu transladar-se para Fortaleza, enfrentando o perigo de ser preso. Foi trabalhar junto àquele seu sócio. No fim de pouco tempo, se desentenderam totalmente, vindo José Aguinaldo a ser preso. Ele me disse que julgava ter sido delatado. A desinteligência entre os dois se originou do sócio ter pensado que José Aguinaldo havia ficado com dinheiro espalhado entre os revoltosos quando da derrocada do levante.

304

          Antes de José Aguinaldo voltar à Fortaleza, apareceram na fazenda dois pescadores já acostumados a pescarias no açude, pagando uma percentagem ao proprietário. Fizemos uma boa camaradagem com eles, pois as pescarias eram feitas à noite e José Aguinaldo revelou-se um exímio preparador de peixe que comíamos nos intervalos dessas pescarias, assados na brasa e ultimada a refeição com um excelente café, preparado sem pano.
          Tudo aparecia deliciosamente: o paladar do peixe, o sabor do café e as intermináveis conversas com esses dois humildes pescadores durante as horas da noite em que nós os auxiliávamos no seu trabalho.

305

          Na fazenda era completa nossa segurança: Manuel Guedes mantinha relações diversas e nenhuma atividade policial em relação às suas propriedades se realizaria que ele não tivesse aviso antecipado.

306

          A prisão de José Aguinaldo em Fortaleza encheu minha esposa de profunda inquietação, pois somente ela e os deputados Gil Soares e Benedito Saldanha sabiam que eu me encontrava no Ceará. Ela, obviamente pensou que José Aguinaldo estivesse no mesmo lugar em que eu me achava.

307

          Tudo havia sido feito para despistar a Polícia. Assim, alguns dias após saber minha esposa que eu chegara a Fortaleza ela recebeu da Bahia, São Salvador, o seguinte telegrama:
         
                    “Jacira Brandão Furtado:
                    Fiz boa viagem pt Beijos
                    João Maria.”

          Esse telegrama foi ter como era obvio ao conhecimento da Polícia do Estado. E era para isso mesmo que ele fora transmitido por um nosso parente residente em Salvador, depois de receber carta de Jacira. . .
308

          Permanecendo sozinho na fazenda, comecei a entabolar amizades com pessoas das relações de Manuel Guedes e na noite de São João fomos todos dali à outra fazenda “Baixa Funda” distante cerca de três léguas a cavalo. Foi uma noite inteira de danças e pela manhã retornamos todos, inclusive Manuel Guedes e sua esposa.

309

           Aproximadamente três meses depois que José Aguinaldo deixara a fazenda para trabalhar em Fortaleza e como dele não tivesse mais nenhuma notícia, resolvi ir até ali saber de alguma novidade. Tomei pela manhã, muito cedo, o ônibus que, descendo a serra, passava em terras da propriedade “Água Verde” situada entre “Rato” e “Baixa Funda”. Até esse ponto viajava a cavalo.

310

          O ônibus, antes de Fortaleza, fazia uma parada de dez minutos em Maranguape com a descida de todos os passageiros para lanche ou simples café. Nessa parada à porta do ônibus, em Maranguape se postaram três policiais, munidos de retratos, a confrontá-los com a fisionomia dos viajantes.
          Havia deixado crescer um bigode e precavidamente me achava de óculos escuros. Nada, porém, aconteceu apesar do susto passado.

311

          Em Fortaleza, desci a rua das Damas, residência do sócio de José Aguinaldo, onde já estivera anteriormente. A dona da casa, ao me ver, mostrou-se assombrada, contou que José Aguinaldo havia sido preso e remetido para Natal e que a polícia estava em severa vigilância em torno do seu marido. Constrangidamente accedeu em minha casa permanência ali até a hora da chegada do marido para o almoço e logo depois deste, sai e fiquei mais adiante, numa pequena mercearia, de um conhecido de Manuel Guedes, à espera da volta, à tarde, do ônibus para retornar à fazenda com essas notícias desagradáveis, o que foi feito sem nenhum empecilho.

312

          Outra faceta do caráter de Manuel Guedes: era apaixonado por corridas de cavalos e apostas e criador de puros-sangue: mantinha, em cocheira, tratado por um rapazola que acudia por “Mundoca”, uma esplendida égua chamada “Izagra”.
          Logo depois de meu retorno dessa ida à Fortaleza, “Izagra” foi levada, de caminhão, a uma disputa na cidade de Sobral. Um reboliço na fazenda e muitas apostas. Sonhei antes da partida da caravana conduzindo “Izagra” à competição, e no sonho, com absoluta nitidez, sua chegada à frente de todos os outros animais. Então, do pouco dinheiro com que saira de casa – um conto de réis na moeda da época – mandei apostar duzentos mil réis – e no regresso o animal de Manuel Guedes, duplicou meu dinheiro, ganhando a aposta.

 

313

          De volta à fazenda um dos amigos de Manuel Guedes me informou que estando na Delegacia de Polícia de Sobral, viu meu retrato como pessoa a ser capturada como vermelho. Era o longo braço do ódio político partidário vigente no Rio Grande do Norte.

314

          Pelo mês de setembro começaram a chegar notícias ainda imprecisas de que a Polícia estava no encalço de elementos estranhos na fazenda. Em localidades próximas apareceram pombeiros – palavra que até então me era desconhecida, como espião policial. Certo dia Manuel Guedes recebe uma carta de um amigo de Maranguape assegurando que, em breve, sua propriedade seria cercada à procura de foragidos.

315

          Como medida de precaução, no mesmo dia me removi de onde me encontrava desde minha chegada ali, alojado na sede da fazenda, indo me abrigar numa exígua construção desocupada, localizada num dos muitos roçados que se divizavam bem longe, três a quatro quilômetros, como que pendurados nos declives da serra à montante do açude. Segui para esse novo refúgio, abrindo o caminho à margem das águas represadas. Passei ao número dos muitos que, réus de delitos comuns, chegando à proteção de Manuel Guedes, subiam a serra e se dedicavam permanentemente à agricultura, isolados do resto do mundo, ali se fixavam ou para sempre ou até o tempo da redenção liberatória da prescrição do delito.

316

          Levei pouco com que passar alguns dias apenas como fora combinado, sendo o principal, uma rede, uma quartinha e um copo. Bem perto do meu novo abrigo existia, naquelas alturas, uma fonte de águas cristalinas, como que brotando da rocha e nessa fonte passei a saciar minha necessidade de beber. Ali passei cerca de oito dias e era ainda “Mundoca”, o rapaz tratador de “Izagra” que, uma vez por dia, me levava alimentação preparada na fazenda. Meu isolamento então era completo.

317

          Na sesta de um dia, minha segregação, estava deitado com o pensamento cheio da lembrança dos entes queridos e dos quais a separação tanto me afligia e torturava, quando ouvi o ruído de passos nos arredores do meu abrigo. Logo compreendi e verifiquei que eram duas camponesas que, distraidamente, se ocupavam na apanha de algodão e não deram por minha presença. Voltando ao aconchego de minha rede, logo depois me chegava aos ouvidos a entonação de uma voz, nítida no silêncio daquela solidão apenas cortado por vagos sussurros da ventania, a repetir naquele ermo estrofes de uma velha canção popular ouvida por mim há muito já no longínquo tempo perdido e passado, mas ressurgida no milagre instantâneo da emoção e da saudade:

          “Quando fores ao passeio no jardim,
          E ouvires uma voz por entre as flores,
          Não te esqueças que sou eu que ando
          Recordando os meus amores.

          Quando vires a leve borboleta,
          Pousando, gentil, de flor em flor,
          Que tiveres a lembrança do passado
          Recorda-te de mim, oh meu amor!”

          Pela vida afora nunca mais esqueci em minhas lembranças o sentimento indizível de solidão, melancolia, saudade e angústia com que me encheu o coração o eco daquela solitária voz de acalanto a minorar a rude tarefa daquela humilde trabalhadora.

318

          Oito dias depois transferi-me, a cavalo, à noite, para a outra propriedade de Manuel Guedes, “Baixa Funda”, cerca de três léguas distante, mas que, dada sua situação dentro da serra, era inaccessível a qualquer espécie de veículo auto-motor: nem havia estrada, mesmo carroçável para ela e a topografia do terreno a tornava praticamente só atingível a pé ou a cavalo. Ali estaria mais resguardado de qualquer surpresa.
         
319

          Era época de colheita. Comecei a matar o tempo ajudando na medição e enchimento de silos e sacos, principalmente, de arroz muito cultivado naquelas paragens, independente de terras de alagadiço.
          Fazia refeições em casa do genro de Manuel Guedes e dormia noutra casa, de um quilômetro distante.

320

          Certa noite, pelas 20 horas me encaminhava, acompanhado por um sobrinho de Manuel Guedes, à casa onde dormia e ao defrontar uma baixa saliente que marcava esse caminho, ocorreu-me um súbito prenúncio, predominação clara de que alguma coisa extraordinária contra mim iria ocorrer. Comuniquei meu pressentimento ao meu companheiro, procurando este tranqüilizar-me. Na madrugada dessa mesma noite chegou um portador de Manuel Guedes comunicando que sua propriedade fora varejada pela madrugada por cerca de 40 homens do Exército, acompanhados de policiais, que, entretanto, voltaram sem nenhuma pista e certos de serem infundadas as denúncias de que ali estivessem refugiados políticos.

321

          Face àquele acontecimento, lógico era acautelar-me mais ainda e passei a dormir sozinho, num local isolado, antigo rancho desocupado no centro de uma capoeira a que se chegava por uma trilha quase imperceptível a partir da estrada que até então eu palmilhava todos as noites. Ermo absoluto e total. O rancho em parte já não tinha cobertura, mas não havia possibilidade de chuvas. Adormecia à luz distante das estrelas, brilhando silenciosas como a minha e a solidão em torno, no alto misterioso dos céus. Nessas noites povoadas de intranqüilidade, antes que a fadiga me fechasse os olhos, meus pensamentos transpunham, nas asas da saudade e da recordação, o tempo e o espaço, para rever quase que materialmente, os filhos pequeninos, a esposa, os pais, todos os meus.
          É preciso viver esses instantes, essas horas por mim vividas assim, para se ter uma concepção perfeita do estado de espírito em que me encontrava então.

322

          Nessa situação ainda passei em “Baixa Funda” uns quinze dias quando deliberei com pleno assentimento de Manuel Guedes procurar alcançar a Paraíba, sabendo que os Maias, de Catolé do Rocha, haviam abrigado numerosos perseguidos do Rio Grande do Norte. Para isso, transladei-me a Fortaleza, indo alojar-me por cerca de trinta dias em casa de um contraparente de Manuel Guedes, Antônio Gadelha.

323

          Preparou-se a viagem num caminhão de frete de Domingos Barreto, um norte-riograndense da zona oeste que fora partidário do ex-interventor Mário Câmara. Era, portanto, pessoa de confiança, conhecendo minha situação. A viagem fora acertada para levar apenas a bagagem para um casamento e o respectivo noivo, o motorista e o proprietário do carro.

324

          A saída do carro, à porta de Antônio Gadelha, tomei-lhe a benção e à sua senhora com a reverência de um verdadeiro filho. Era manobra de despistamento em relação ao noivo, passageiro do caminhão e nosso companheiro de viagem e esta se fez de modo que, passando em Russas, só fomos alcançar Pau dos Ferros, por onde tínhamos forçosamente de transitar, altas horas da noite. Ali, realmente, a cidade toda fechada, demoramos somente alguns minutos e rumamos com destino à fronteira da Paraíba que atravessamos, indo repousar todos, por algumas horas, num povoado adiante. Tudo correu como foi projetado e sem nenhum contratempo.

 

 

 

 

 

NA PARAÍBA

325

          Domingos Barreto deixou-me, em seu caminhão, na cidade de Catolé do Rocha, onde, imediatamente, procurei avistar-me com o Prefeito, Dr. Américo Maia (falecido muitos anos depois em desastre de automóvel). Identifiquei-me e lhe contei minha situação e minhas relações com o Dr. João Sérgio Maia. Tive a mais cordial acolhida e a cidade por ménage. Dias depois fui para a fazenda “Olho d’água”, situada à margem da estrada que vindo do Oeste do Rio Grande do Norte, atravessara os municípios de Catolé do Rocha e Brejo da Cruz e penetrava novamente em nosso Estado, pelo município de Jardim de Piranhas. Pertencia esta fazenda a um típico patriarca sertanejo, o velho Sérgio Maia.

326

          A casa residencial de “Olho d’água”, ampla e cercada por um parque de laranjeiras e outras fruteiras, fora construída no tempo em que era necessário prevenir um assalto de inimigos: as paredes externas guarnecidas por dentro de aberturas transversais, invisíveis por fora pelo reboco, eram denominadas de “paredes bloqueadas”. Na eventualidade de um ataque de fora, tais aberturas enviesadas serviriam para repelir o atacante a resguardo perfeito do atirador. E no quarto por mim ocupado estavam pendurados à parede uma mochila com bala e um fuzil.

327

          Minha estada em “Olho d’água” não foi demorada e durante ela por ali passou o Dr. Aldo Fernandes, o todo onipotente Secretário Geral do governo Fafael Fernandes, vindo da zona Oeste pelo Seridó. o dono da casa comunicou-lhe minha presença ali. O Dr. Aldo que é casado na família Maia apenas fez boas referências a meu respeito, achando que meu caso se prendia à situação de Baixa-Verde em relação ao seu chefe político João Câmara.

328

          Fiz, por esse tempo, em companhia de João Sérgio Maia e João Agripino (o primeiro magistrado aposentado e o segundo, promotor, deputado federal, senador, governador da Paraíba, Ministro do Tribunal de Contas da União) diversas excursões a cavalo por fazendas dos Maia nos municípios de Catolé do Rocha e Brejo do Cruz. Certa vez viajávamos à noite e resolvemos, amarrados os cavalos, descansar repousando em ligeiro sono, à luz da lua, sobre uns rochedos desnudos à beira da estrada. A paisagem era a mesma em todas as fazendas visitadas: casa de morada, curral, cercado e açude. Paisagem monótona e agreste de um sertão de vegetação rala, quase que constituída totalmente de jurema espinhosa.

329

          Governava a Paraíba o Dr. Argemiro de Figueiredo, espírito realmente liberal e de formação democrática. Todos os norte-riograndenses que nessa conjuntura saíram do Estado para a Paraíba não foram molestados pela polícia e, sim, acolhidos e protegidos como perseguidos políticos. Assim, com absoluta liberdade de movimentos fiquei na Paraíba, tanto que, embora conservando o nome trocado de Antônio Gadelha – não queria fazer nenhuma provocação – assentei-me à mesa de um banquete político em Catolé do Rocha, do qual foi orador o Dr. João Agripino.

330

          Estando em Campina Grande meu cunhado Manuel do Amaral Varela (7-12-1903 – 21-2-1965), empregado no Serviço Federal de Classificação de Algodão, para lá me trasladei e eu sua casa veio ao meu encontro minha esposa, após tão longa separação. Pelas aflições passadas ela perdera 30 quilos de seu peso normal anterior de setenta. Uma irmã, Maria de Conceição Furtado, pelos mesmos motivos, teve que ser internada muitos meses para tratamento, só se recuperando após meu retorno.

331

          Minha presença em Campina Grande era conhecida de todas as autoridades paraibanas, inclusive do próprio Governador. Todas tinham convicção de ser o meu caso uma simples perseguição política. Ali estava em perfeita segurança em minha liberdade.

332

          Era então Secretário da Prefeitura de Campina Grande o ex-sacerdote potiguar, Manuel de Almeida Barreto. Para ocupar-me comecei a ler os volumes de sua rica biblioteca e entre os livros folheados interessou-me Minhas Memórias dos Outros (Nova Série – 1935 José Olimpio Editora, págs. 198-205), do ministro Rodrigo Otávio (1866-1944). Na parte em que o memorialista fala do Barão do Rio Branco, às ordens do qual trabalhou, conta a versão supersticiosa do Barão à cor marrom. E narra que assistiu certa vez, quando, recebendo de Londres onde suas roupas eram confeccionadas em colete marrom, imediatamente o rasgou, recriminando o alfaiate que disse saber não usava ele tão cor.
          E o livro cita inúmeros casos da coincidência de desgraças e desastres com pessoas vestidas de marrom. É uma narração impressionante.

333

          Lembrei-me, então que, em meados de 1935, comprar dois cortes de casemira marrom, dando um de presente a um amigo, paraibano, guarda livro e comerciante estabelecido em Natal, Adauto Rodrigues que o mandou confeccionar juntamente com o meu e passou a usá-lo. Associei a narração do livro ao fato de aquele amigo haver adoecido logo depois, falido em seu comércio e obrigado, afinal, a volta à Paraíba. Para seu regresso com a família, eu é que tive que fornecer cem mim réis, dada a situação de penúria a que ele chegara. Teria sido a misteriosa influência da cor marrom tão temida pelo Barão do Rio Branco?

334

          Sobre mim mesmo já então, desde 1935, se vinham acumulando contratempos, dificuldades, infelicidades e até desgraças. Meus amigos políticos perderam as eleições, subindo ao poder, no Estado adversários pejados do ódio mais feroz. Rebentando a revolução vermelha em novembro, nela fui envolvido como se viu, embora jamais houvesse dela participado. Tive, assim, para não ser deportado para o Rio, que fugir da maneira que o fiz, sobrepujando toda sorte de dificuldades e tudo refletiu sobre a situação de minha família, de modo prejudicialíssimo.

335

          Coincidentemente, na pequena bagagem que me acompanhava, desde minha saída de Maxaranguape com destino ao Ceará, se encontrava aquela roupa marrom que mandara confeccionar juntamente com a de Adauto Rodrigues. Ela me acompanhava todo esse tempo. E pela sugestão da leitura daquele volume, cujo autor tantos altos postos ocupou no Brasil, resolvi, pelo sim pelo não, como geralmente se diz, desfazer-me dessa indumentaria, aliás ainda nova e simultaneamente quase com o abandono dela, precisamente oito dias depois e sem que eu esperasse, me chegou telegrama do deputado João Café Filho, comunicando que eu fora, por decisão unânime do Tribunal de Segurança Nacional, excluídos da denúncia. . .

336

          Daí para cá, mantenho viva a idiosincrasia àquela cor: não a uso em nada que me pertença. E por observação atenta, depois dessa minha experiência pessoal, tenho anotado, ao longo dos anos, incontáveis casos em que pessoas usando indumentária marrom, veículos dessa cor, etc. têm sido vítimas de toda sorte de desgraças e infortúnios. Quando lia como costumava aquela revista de novelas policiais, historiando apenas casos reais, casos acontecidos, que era “Detetive”, já não publicada, também notei a particularidade de vítimas ou criminosos com alguma coisa, roupas, sapatos, carros com a cor sinistra, sistematicamente, em todos os casos. Não cito como poderia fazer os casos diretamente por mim observados. Foram sem conta, desde pessoas da mais humilde àquelas de maior relevo social.

337

          Estava, então, às vésperas do regresso ao Estado e ao convívio dos meus. Sobranceiro e todas às acusações e injúrias, inclusive às levianamente, por obnubilação partidária do senador Joaquim Inácio de Carvalho Filho e deputado José Augusto B. de Medeiros. A estes já respondera, altivamente, reptando-os a reafirmá-las depois do pronunciamento da justiça, mesmo a de exceção, conforme se constata dos anexos ns. 7º, 8º e 9º. Agora voltava, de João Pessoa, a renovar aqueles anteriores reptos, até hoje não atendidos.

 

 

 

 

DE REGRESSO

338

          Voltando ao Estado e embora minha exclusão da denúncia houvesse sido, oficialmente, comunicada ao governador, pelo Tribunal de Segurança Nacional, como ocorreria, necessariamente, com todos os demais julgamentos, para reassumir minhas funções judiciais tive que, como já foi narrado anteriormente, ajuizar um mandado de segurança, vez que petição administrava minha pedindo a revogação do ato que, em novembro de 1935, me afastara do exercício do cargo, não tinha tido o competente despacho, há cerca de trinta dias. A omissão do despacho era do monsenhor João da Mata Paiva, presidente da Assembléia no exercício do Executivo, em substituição.

339

          Reassumi logo minhas funções em Baixa-Verde. Havia ido até minha comarca para essa reassunção numa barata FORD, guiada e de propriedade de Mauro Varela. Sexta-feira, 4 de maio de 1937. Tudo mudado: o escrivão era Miguel Cabral de Macedo, parente próximo do prefeito Odilon Cabral de Macedo e que viera removido de Santana do Matos. Esse serventuário de justiça logo se adaptaria ao meu modo de trabalhar e terminou por ser um ótimo amigo.

340

          Era meu substituto na comarca o Dr. Manoel Augusto Abath, Juiz Municipal de Touros, homem humilde e pacifico tanto quanto aqueles que Jesus afirmou que possuirão a terra, no sermão da montanha. Obrigou-me a ser seu hóspede e assim fiquei sendo em todas as sextas-feiras seguintes em que ia à comarca voltando no sábado. E era o suficiente para manter absolutamente em dia todo o serviço a meu cargo.

341

          Três semanas decorridas, numa dessas noites das sextas-feiras, no fim de maio, quando dormia, altas horas, na residência do Dr. Abath, foi a casa atacada por capangas a mandado de Alexandre Câmara (Xandu), irmão de João Câmara e, obviamente, não à revelia deste, os quais arrombaram a faxina do quintal e depois de numerosos tiros e pedradas no telhado, se retiraram ao perceber que seus moradores haviam despertado. No outro dia, o delegado de polícia, Cap. Machado, constatou os vestígios do assalto.

342

          Pretendia-se com esse atentado, pelo menos, atemorizar-me e me levar à transferência da comarca. Mas somente em abril de 1946 eu deixaria Baixa-Verde, seguindo a via natural da minha carreira, promovido para a 5ª vara da capital, embora, permanecendo ali corresse minha vida risco permanente.

343

          Denunciado o vergonhoso fato, telegrafei ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, ao Ministro da Justiça e ao deputado João Café Filho, pedindo levá-lo ao conhecimento da Câmara e consequentemente à opinião pública brasileira e ao mesmo tempo, responsabilizava João Câmara, pessoalmente, por qualquer atentado à minha vida.
          Era um meio de defesa, expondo, antecipadamente, o responsável à condenação.

344

          Ao governador do Estado comunicou o Dr. Manoel Augusto Abath os acontecimentos. Essa autoridade – a quem não me dirigi, certo do seu desinteresse em apurar responsabilidades – sem publicar as comunicações pertinentes, recebidas, inclusive a retransmitida pelo Tribunal de Justiça, respondeu, laconicamente, àquele juiz (anexos ns. 10, 11 e 12). Demonstrou, assim, interesse em minimizar os acontecimentos, quando toda a cidade de Baixa-Verde sabia os nomes dos responsáveis, mandantes e executores.

345

          O Tribunal de Justiça já me havia concedido dois períodos de férias de dois meses cada um. A esses dois meses sucederam-se mais dois, pela sucessão dos correspondentes exercícios. Terminadas essas férias, voltei ao exercício das minhas funções, exercendo-as “sem medo e sem deshonra” naquela comarca durante ainda cerca de nove anos consecutivos.

346

          O Dr. Manuel Augusto Abath que me forçara, praticamente aceitar sua hospedagem, naquelas três semanas posteriores à reassunção de minhas funções em Baixa-Verde e que se mostrou solidário comigo no atentado que também se fizera contra sua residência, denunciando-o ao governo estadual, foi colocado no índex deste: contava, ao terminar o prazo de quatro anos daquela sua investidura no cargo de juiz municipal, mais de dez anos de serviço público. Pela legislação vigente sua recondução era obrigatória.

347

          Essa recondução, porém, não foi decretada pelo governo. Homem fraco e ingênuo não procurou efetivar seus direitos e desgostoso, se retirou do Estado, falecendo pouco depois. E quando sua viúva me procurou para consultar sua situação visto que ficara inteiramente em desamparo, já a prescrição atingira qualquer direito. Consegui, porém, para ela, uma pequena pensão “especial”, hoje fixada no salário mínimo, com que está vivendo, humildemente, na cidade de São Gonçalo do Amarante. Essa pensão chega apenas para o pobre viúva não morrer de fome. . .

348

          Voltando às minhas funções na comarca, continuei mantendo a família em Ceará-Mirim, onde meus três filhos já haviam iniciado os estudos de primeiras letras. Religiosamente, todas as semanas me fazia presente à comarca e os respectivos serviços se mantinham absolutamente em dia, os processos despachados nos prazos, inclusive sentenças.

349

          Em dada ocasião, certo advogado, sobrinho de um desembargador então na Presidência do Conselho Disciplinar da Magistratura, teve sentença contrária na comarca. Recebi, dias depois um ofício (Anexo n. 13) daquela presidência para que informasse sobre reclamação feita por aquele advogado, em relação a não ter eu residência fixa ali. Minha resposta está no anexo n. 14, de que desconhecia o texto de lei que atribuísse a advogado essa reclamação a não ser que ele indicasse o feito de seu interesse, retardando por culpa do reclamado (Anexos ns. 13 e 14).
          A resposta satisfez o “zelo” disciplinar. . .

350

          Apesar da rotina do exercício profissional, muita coisa ia modificando, apesar de tudo, no Estado e na sua estrutura política que na ascenção, em 1935, do Partido Popular, ao poder, com toda a carga de ódios quase insopitáveis, parecia formada como um bloco monolítico. A ala mais radical desse partido, liderada por Bruno Pereira que empolgara a Procuradoria Geral, em breve, começou a ser desprestigiada pelo governador, certamente enfarado de acobertar perseguições que se iam desmascarando em prejuízo do próprio governo. Bruno Pereira foi exonerado da Procuradoria e para ela nomeado o Dr. Raimundo Macedo, ex-deputado da corrente política adversária e contra quem Bruno instaurara inquérito administrativo cujo desfecho se constituiu num libelo contra seu instaurador.

351

          Getúlio Vargas fechara Senado e Câmara federais, com o Estado Novo. O senhor Joaquim Inácio de Carvalho teve que ser aproveitando como Prefeito de Natal e José Augusto passou a ser um sem trabalho. Café Filho exilou-se na Argentina. Rafael Fernandes ficara livre das pressões partidárias locais.

352

          Odilon Cabral de Macedo que fora nomeado prefeito de Baixa-Verde na primeira hora do governo Rafael Fernandes, por indicação da João Câmara, em breve começou a evoluir fora da órbita traçada e projetada. Tendo como Secretário na Prefeitura o comerciante José Inácio Sobrinho, organizou com este uma sociedade comercial para compra de algodão e venda à firma da qual Rafael Fernandes era o principal sócio, entrando em violento choque de interesse com aquele seu protetor João Câmara que estava vinculado em suas vendas de algodão a outras firmas exportadoras.
          Em breve João Câmara não podia conseguir do governo estadual a transferência de um soldado da polícia. . .

 

 

 

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