Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Velhos Militantes
Velhos
Militantes
Depoimentos
Depoimento de João Lopes,
o Santa
Ângela de
Castro Gomes (coordenadora), Dora Rocha Flaksman,
Eduardo Stotz
Jorge Zahar Editor
Nosso
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de Produção
O
Menino de Ouro descobre o anarquismo
- Seu João, quando e onde o senhor
nasceu?
- Eu nasci numa vida agitada. Minha avó
veio de Angola, escrava. Minha mãe nasceu
do ventre livre. Então, desde garoto, eu
fui um pouco rebelde.
- E a data e o local de seu nascimento?
- Nasci em 4 de maio de 1896, na cidade de São
João da Barra, no Estado do Rio. Minha
mãe era América Maria da Conceição,
doméstica, e meu pai, Abrão de Sousa,
marítimo. Fui o filho mais velho da minha
mãe e tive sete irmãos.
- O senhor sabe como sua família
foi parar em São João da Barra?
- Quando minha avó chegou, escrava, foi
vendida para um fazendeiro do Espírito
Santo que tinha terra perto de Itabapoana. Lá
nessa fazenda ela viveu até quando veio
a libertação de 13 de maio. Aí
se juntou com outra mulher chamada Rosara, que
também tinha vindo de Angola, e enquanto
ela mesma foi ser babá de uma dona, essa
Rosara criou a minha mãe. Como você
sabe, o fim da escravidão teve um ponto
bom e um ponto ruim. Porque o dinheiro que elas
ganhavam - três patacas, como se dizia naquela
época não dava para viver. Como
escrava, minha avó tinha direito a um médico,
a um tratamento, porque ela era um capital, desde
que estava em serviço, produzindo. O que
aconteceu com a libertação? Soltaram
as escravas, e com um salário de três
patacas elas não podiam viver.
Essa Rosara então veio para São
João da Barra com a minha mãe, para
fazer companhia a um português que tinha
dinheiro. Minha avó ficou com essa dona
que ela criou e só veio depois, quando
eu já tinha nascido. De vez em quando ela
chorava, porque nunca mais soube notícias
dos parentes, nem os filhos ela sabia onde estavam.
Teve um homem chamado Lídio que juntou
com a minha avó - naquele tempo não
casava, juntava. Vi esse homem uma vez quando
era garoto, na cadeia de São João
da Barra, e a minha avó dizia que ele tinha
matado um camarada. Depois ela casou com outro.
Mas tudo aquilo que a minha avó contava
- ela tinha muito carinho comigo - ficou no meu
sangue. Eu ficava revoltado, indignado com aquelas
histórias. Cheguei até a ser um
moleque meio marginal. Agora, honesto: nunca roubei
ninguém. Só vivia na rua brigando,
rasgando os outros.
- E seu pai, onde trabalhava?
- No começo, ele trabalhava na companhia
de navegação do Coronel Chico Pinto.
Porque os navios saíam do Rio de Janeiro,
iam até São João da Barra,
descarregavam, e de lá as embarcações
de água doce subiam o rio Paraíba
para levar as mercadorias para as cidades, até
São Fidélis. Mas só fui conhecer
mesmo o meu pai mais tarde, em Campos. Minha mãe
se aborreceu porque ele bebia um bocado, e se
separaram quando eu ainda era pequeno. Tive então
um padrasto, um bom padrasto, que depois morreu
afogado.
- O senhor foi criado por seu padrasto?
- Não. Vendo que eu vivia na rua brigando,
minha avó pediu ao seu Carrazedo para tomar
conta de mim. Seu Carrazedo era um francês
que tinha uma loja de fazendas, e a minha avó
era empregada dele. Então fui morar na
casa do Carrazedo. Ele tinha uma filha, tratada
de Lulu, uma irmã, Custódia, e a
mulher, Mãe laiá, Dona Maria Francisca.
Elas não podiam comigo. Mãe Iaiá
tinha um oratório bonito com cordões
de ouro e um Santo Antônio. Quando ela não
me dava o que eu queria, eu pegava aquela bola
e dizia: "Olha que eu quebro este oratório!"
Ela contava para o Carrazedo, ele me chamava,
não batia, mas me dava uma lição:
"Olha, rapaz..."
Também passei por uma questão racial
danada em São João da Barra, e o
Carrazedo tomou o meu partido. A primeira briga
que ele teve lá foi quando mandou matar
um cachorro que tinha me mordido. Por minha causa,
rompeu com uns capitalistas da época. Tinha
um sujeito lá, Francisco de Oliveira, chefe
dos Correios, que brigou com ele e vivia dizendo:
"Não vou na casa do Carrazedo, com
aquele negro comendo na mesa." E o Carrazedo
respondia: "Quem manda na minha casa sou
eu, branco sou eu, que sou francês, o reste
é tudo mestiço."
- O senhor freqüentou alguma escola?
- Duas. Em São João da Barra tinha
três escolas: uma, a Professor Moreira,era
só de filho de rico. Na outra, Amélia
Ramos, estudei um bocado. Estudei também
na Idalina Machado, escola pública. Mas
aí veio a coqueluche, e eu não podia
ir à escola porque era doença contagiosa.
Veio a bexiga - hoje é varíola -
e eu não podia ir de novo para não
passar para os outros. Aí ficou o seguinte:
a Lulu me dava alguma explicação.
Acho que na escola mesmo fiquei uns três
anos, não cheguei a tirar o primário.
Agora, eu era muito afamado. Escrevia bem, isso
tudo. O colégio era masculino e feminino,
tudo junto, e era eu que tomava conta das meninas,
não deixava os garotos baterem nelas. As
mães me entregavam as meninas para eu levar
para a escola, e ninguém mexia com elas
porque eu era brabo mesmo.
- O senhor teve educação
religiosa?
- Minha família era toda religiosa, e o
seu Carrazedo era da Irmandade do Sacramento.
A Lulu engomava as roupinhas dos santos, as toalhas.
Também, ela não tinha o que fazer.
Era considerada a menina mais bonita do local,
era desejada, todo mundo queria namorar com ela,
mas ela não dava confiança. Tinha
uma cachorrinha e três gatos. Lavava os
gatos, botava perfume neles, e aqueles cavalos
sempre traziam coleiras bonitas do Rio, de presente,
mas ela não dava importância. Tratava
todo mundo muito bem, era fina, mas democrata.
Agora, de namoro, ela não dava essa conquista.
Uma vez aconteceu um caso: apareceu uma criança
afogada no Paraíba, e começaram
a dizer que era filho da Lulu. Minha mãe,
minha avó, até eu fui à polícia
- queriam saber se eu tinha visto a moça
doente em casa, alguma coisa assim. Nunca vi nada,
e olha que eu vigiava muito ela, era muito fiel
a ela. Mas foi uma trapalhada danada, e o Carrazedo
passou muito mal. Foi para a Inglaterra tirar
banha do coração e morreu no meio
do caminho. Naquela época, gostei quando
ele morreu. Tinha uns 12 anos, vivia preso com
a Lulu e a cachorra na janela vendo os moleques
na rua, e achei que tinha ficado livre.
Logo a primeira coisa que eu fiz quando soube
da morte dele, todo mundo de luto, foi sair e
ir a um teatro de revista. Caiu a noite e eu nada
de voltar, o povo todo me procurando. Quando voltei,
Mãe Iaiá me disse: "Agora que
o seu Carrazedo morreu, a coisa é outra.
Você fica almoçando e jantando aqui,
mas vai dormir na sua casa. Que emprego você
quer?" Eu disse: "Quero ser alfaiate."
Ela mandou chamar o alfaiate, me botou para trabalhar
com ele, mas cheguei lá, e o camarada queria
que eu passasse o dia varrendo o chão.
Eu pensei: "Ele quer é me fazer de
empregado para eu limpar a casa dele; não
vou mais lá, não." Mãe
Iaiá perguntou: "Então o que
você quer?" Respondi: "Quero ir
para o estaleiro do Coronel Cintra."
- Havia um estaleiro em São João
da Barra?
-
Dois. Um era do Coronel Cintra e o outro do Coronel
Chi¬co Pinto. Dividíamos a cidade em
duas, um pedaço de cada coronel.
Muito bem, fui para o estaleiro. Queria ser torneiro-mecânico,
mas o mestre, embora sendo preto, não admitia
pretos. Era um racismo danado. Fui então
ser ajudante de locomóvel, uma máquina
de apitar. Às seis horas da manhã,
eu já estava entrando para dar o primeiro
apito das seis e meia. Depois me tiraram da máquina
e me botaram como ajudante de ferreiro. Fui tocar
forja no arrebite, e aquilo queimava a gente todo.
Eu também era safado e queimava os outros.
Aí me passaram para a carpintaria. Eu ficava
lá botando fogo para dar volta na madeira.
Aprendi um bocado. Mas um dia um compadre do mestre
apanhou o serrote e escondeu. O mestre me perguntou:
"Cadê a caixa de ferramentas?"
Eu disse: "Sei lá!" Ele me deu
seis bolos, e por causa dessa sova saí
do estaleiro.
- E para onde o senhor foi?
- Um companheiro me disse: "Vamos trabalhar
como cigarreiro, a gente ganha mais." A gente
fazia os maços, botava os rótulos,
e de trezentos réis por dia passei a ganhar
mil e duzentos. Mas um dia cheguei na casa de
Mãe Iaiá, e ela falou: "Você
está com catinga de fumo! Você anda
fumando?" Respondi: "Eu, não."
Mas ela chamou a minha mãe e disse: "Olha,
leva ele para casa, porque ele já está
fumando e daqui a pouco dá para beber."
- Nessa época o senhor morava com
sua mãe?
- Morava. Quando voltei para casa, depois que
o Carrazedo morreu, sofri um bocado, porque estava
cheio de dengo, e a minha mãe me castigava,
me botava para trabalhar. Ela não quis
mais aquele negócio de cigarreiro, então
saí e fui para a padaria. Ela se dava muito
com o dono, o João de Oliveira Cintra,
e falou com ele para eu ir trabalhar lá.
Mas antes disso fui um moleque perverso. Tomava
conta de menino, filho de fulano, filho de sicrano,
pegava os garotos e fazia eles aprenderem a nadar
a pulso. Tomei conta de um, o Pedro Nolasco, que
depois foi até secretário do presidente
do estado em Niterói. A minha avó
era empregada da mãe dele. Mais tarde,
quando fui preso, ele foi lá na prisão
e me ajudou. Mas logo depois me mandaram para
a Ilha Grande.
Antes de eu ir para a padaria, também aconteceu
um caso comigo. Tinha um camarada lá que
era contraventor de bicho, brigado com o tabelião.
Era uma briga política, questão
de partido, e o tal contraventor jogou um tijolo
e quebrou a telha da casa do outro. Eu ia passando
com um companheiro, veio aquela correria, e a
polícia saiu atrás de nós.
Me botaram na prisão e disseram que no
dia seguinte iam me mandar para a Escola de Aprendizes
Marinheiros aqui no Rio.1
Era o tempo da chibata, e se apanhava feito um
endiabrado.
Acontece que tinha chegado lá em São
João da Barra o dr. Chaves Pena, sobrinho
do presidente da República Afonso Pena.
Aliás, ele foi abandonado pela família,
porque chegou a vestir batina, mas gostou de uma
menina e resolveu casar. A família se revoltou
contra o rapaz e deixou ele na miséria.
Ele então foi ser dentista em São
João da Barra. A minha tia lavava roupa
para ele e foi lá: "Doutor, doutor,
o João vai ser deportado para o Rio, vá
lá acudir ele." Ele se vestiu, foi
à delegacia e disse: "Quero saber
qual é o delito pelo qual vocês vão
desterrar este rapaz. Quero uma testemunha que
tenha visto ele jogar o tijolo." Disseram:
"É, e tal, mas a mãe dele não
agüenta com ele..." E o doutor: "Não
interessa, o senhor não pode fazer isso.
A lei não permite." Então fui
solto e não fui deportado. Aí é
que eu fui para a padaria. No dia em que fiz 15
anos comecei a trabalhar lá, e lá
fiquei cinco anos.
- O que o senhor fazia na padaria?
- No começo me disseram: "Você
vai trabalhar no balcão, entregar pão
nas casas." De entregador passei a padeiro,
e de padeiro passei a mestre. Esse João
de Oliveira Cintra botou um camarada para me ensinar
a ser fogueiro, biscoiteiro, tudo isso. Ele foi
um pai para mim, igual ao Carrazedo.
- O senhor gostava dele?
- Não, não gostava. Ele é
que tinha que gostar de mim, por que ele tinha
um passado com uma prima minha. Teve um filho
com ela, e depois o menino desapareceu. Eu sabia
dessa patranha, a mulher dele era muito nervosa
e desconfiava. Ele me protegia por isso, porque
eu guardava esse segredo.
- Nessa época havia alguma organização
de padeiros em São João da Barra?
- Não tinha nada de organização.
Tinha era clube carnavalesco e banda de música.
Eu queria entrar para o Clube Concha, mas não
podia porque era preto. Só entrei porque
uma senhora me ajudou. A minha mãe tinha
dado leite para o filho dela, o Cícero,
que depois foi prefeito de São Fidélis,
de maneira que ela tinha cotação.
Com a banda de música foi a mesma coisa:
não aceitavam pretos.
Mas
eu sempre fui apaixonado por música, então
estudei particular e aprendi a tocar violão.
Mas nessa época tive um desentendimento
com a minha mãe. O meu padrasto morreu
afogado no rio, e um dia me disseram: "Olha,
a tua mãe está encostando naquele
camarada assim, assim." Foi uma coisa! Me
deu vontade até de tirar a vida. Larguei
tudo e fugi para Niterói. O João
Cintra mandou me buscar, porque eu era de menor,
e quando cheguei preso, com dois guardas, a rua
encheu: "Fujão! Fujão!"
Tinha chegado a São João da Barra
uma moça branca, chamada Dalila, que começou
a conversar comigo, me aconselhou a não
fazer mais aquilo. Disse que gostava de mim. Nunca
tive esse negócio de amor, eu era é
farrista. Mas ela tomou aquele capricho. E aí
a minha mãe fez política contra
mim e contra ela, jogou o João Cintra contra
mim. Ele disse: "Boto uma padaria para você,
mas você arranja uma escurinha para casar.
Você não sabe que negro não
pode namorar com branca?" Assim, na minha
cara. Aquilo doía. A velha Rosara então
me deu um dinheiro, comprei tijolo, fiz uma casa
bonita, e aí é que a coisa danou.
Apareceram umas três querendo casar comigo.
Eu só tinha vontade de casar com uma, chamada
Clarinda, que me salvou um dia que eu caí
dentro do rio, enterrei na lama e ia morrendo
afogado. Ela gritou, e os pescadores me tiraram
lá do fundo. Mas ela ficou noiva, e a mãe
dela um dia saiu atrás de mim na rua e
me deu com um sapato na cara. Tive que correr.
Problema sério na minha vida...
- O senhor trabalhou na padaria do João
Cintra dos 15 aos 20 anos de idade.
- É, saí em 1916. Por causa desses
aborrecimentos com a minha mãe, fui-me
embora para Campos. Fui trabalhar na padaria da
Madame, na rua 7 de Setembro.
- Como era o trabalho nessa padaria em
Campos?
- Mais ou menos a mesma coisa. Mas a maioria das
padarias em Campos era de italianos, e eles também
faziam macarrão. Comecei lá como
padeiro, embora já fosse forneiro. Preparava
a massa, e trabalhava com tanta agilidade que
fiquei conhecido como "Menino de Ouro".
Agora, tinha o seguinte: lá em Campos,
tanto os padeiros como os forneiros trabalhavam
a noite toda e saíam de manhã para
entregar pão na rua. O pessoal saía
daquela quentura do forno para apanhar chuva.
Resultado: muitos caíam doentes. Outra
coisa é que as padarias pagavam 30 mil-réis
e davam o almoço, mas tinha que ser às
11 horas em ponto. Se o camarada chegasse atrasado,
perdia a bóia e tinha que ir comer no botequim,
pagando. Então, todo mundo marcava encontro
de manhã no mercado, depois de entregar
o pão, para não dormir e perder
a hora. Lá na minha padaria era eu que
entregava a comida, e ficava com uma pena danada.
As vezes chegavam dois ou três atrasados,
e eu dizia: "O tabuleiro já subiu,
vocês têm que ir comer no botequim."
Às vezes o sujeito não tinha dinheiro,
tinha que pedir emprestado. Isso foi me fazendo
uma revolta.
O
pessoal lá vivia dizendo: "A gente
tem que acabar com esse negócio de padeiro
entregar pão e perder a comida se chegar
atrasado. Vamos fazer uma greve!" Eu digo:
"Vocês todo dia dizem que vão
fazer greve e na hora ninguém faz."
Eles: "É nessa semana." Nada.
AÍ eu me enfezei: fiquei com pena de uns
três que perderam o almoço e não
tinham dinheiro para a comida, e disse: "Ah,
a greve é agora mesmo!" Puxei a toalha,
joguei tudo no chão e saí correndo
pelo corredor. A Madame, que era italiana, gritava:
"Gioani! Ficou maluco, Gioani!" E eu:
"É greve! É greve!" Daí
a outra padaria que era mais na esquina se juntou,
e ferrou a greve. Fui muito aplaudido pelos companheiros,
e foi aí que eu conheci o chefe dos anarquistas,
o Valdomiro da Fonseca Teles. Era um camarada
que passava meses trancado dentro da padaria,
só de tanga. Era gordo e forte, e os patrões
tinham medo dele. Deitava nu em cima do tabuleiro,
dizia palavrão, esculhambava todo mundo:
"Galego filho da puta!" Também,
com um revólver na cinta, quem é
que ia querer negócio com ele?
- Vivendo trancado dentro da padaria,
ele tinha contato com os outros padeiros?
- Tinha, os padeiros iam de noite lá na
padaria dele para conversar. Eu não ia
não, só ouvia falar. Nesse dia da
greve, ele mandou me chamar para conversar com
ele, e eu fui. Aí disseram: "Olha,
vamos formar esse negócio de Liga dos Padeiros."
Assinei e fiquei como sócio.
- O que é que a Liga se propunha
fazer?
- O programa foi este: acabar com essa história
de padeiro entregar pão na rua, que botassem
outro encarregado. E acabar com o almoço.
Em vez de 30, pagar 70 ou 80 mil-réis a
seca. E também fazer revezamento: trabalhamos
à noite e só à noite. Pegamos
das três da tarde às oito da manhã,
e não vamos ficar até uma, duas
horas da tarde para fazer rosca e biscoito.
- Desse jeito os padeiros trabalhavam
24 horas por dia!
- Padeiro só tinha descanso sabe que dia?
Sexta-feira da Paixão. Nesse dia, a gente
pegava às dez da noite.
- Além da Liga dos Padeiros, havia
alguma outra associação de trabalhadores
em Campos nessa época?
- Tinha a Liga dos Carroceiros, que eram os anarquistas
mais brabos de Campos. Brigavam, batiam, quebravam,
faziam o diabo.
- O senhor se lembra de alguma ação,
alguma outra greve que os anarquistas tenham promovido
nesse período?
- Depois da greve dos padeiros, fui morar na casa
do Fonseca. Aí ele fazia o seguinte. Virava
para mim e dizia: "Menino de Ouro, você
vai para Tocos - era no município de Campos
- e acaba com a padaria de lá. O dono manda
os padeiros lavarem cavalo! Acaba com aquilo lá."
Eu ia e acabava.
- Como?
- Sabotando. Por exemplo: na padaria, tinha um
bolo de massa com fermenta pesando um quilo. Na
dia seguinte, a gente juntava mais massa e aumentava
a bolo para três, de três aumentava
para dez, vinte quilos. Mas se a gente lavar a
mão cam sabão virgem antes de desmanchar
aquele bolo de massa, o pão não
cresce, e o sujeito não descobre o defeito.
Sem pão, a padaria vai à falência.
Acabei com duas padarias em Campos.
O Fonseca sabia cem mil segredos de padeiro. Ensinava
também a fazer bomba-relógio, o
diabo. Agora, isso era uma coisa que eu não
topava nos anarquistas: andar com bomba.
- Valdomiro Fonseca foi preso alguma vez?
- Não, pelo seguinte: nessa época
não havia reação policial.
Se um camarada era preso, logo era mandado embora.
O Fonseca não tinha medo da polícia,
não tinha medo de ninguém. Só
mais tarde é que ele acabou assassinado,
perto de Friburgo.
- Ele lia algum livro, mandava os outros
lerem? O que ele dizia que era a anarquismo?
- Ele lia, tinha livros, e ensinava os padeiros
na questão social. Dizia que o anarquismo
ia salvar o mundo. Hoje nós vemos que é
o socialismo. Os anarquistas não queriam
saber de educar o povo, não. Iam na força:
"Esse camarada não vai fazer greve,
não? Mete o pau nele, derruba ele no cacete!"
Eu achava isso um pouco brabo.
- Os padeiros também se reuniam
na casa do Valdomiro Fonseca?
- Tanto nos reuníamos na casa dele como
tínhamos um encontro diário de manhã
num botequim na rua Aquidabã. Lá
é que iam as pessoas do interior procurando
padeiro: "Não tem um padeiro aí
que queira ir para tal lugar?" A gente avisava
os outros: "Vai lá no botequim que
tem uma vaga não sei onde."
Comigo aconteceu até um caso muito grave.
Eu já estava disposto a deixar a vida de
padeiro, não agüentava mais aquilo,
mas fui convidado lá no botequim para tomar
conta de uma padaria em Barcelos, levando mais
dois rapazes. O Fonseca disse: "Vai, vai,
para lá." Ele é que mandava,
que dava opinião. Fui então como
forneiro, e levei o Zé Caolhinho e o Zé
Marcante como padeiros. Mas chegamos lá
e só trabalhamos uma noite. O dono da padaria
estava estirado com a gripe espanhola, e no final
de uma noite nós três arriamos. Saí
de manhã sem ver nada, com uma febre medonha,
voltei para Campos e passei na casa de uma senhora
chamada Carola, para pegar umas roupas que eu
tinha guardado lá. Era uma senhora casada,
que me estimava muito porque eu passeava com o
filhinho dela, jogava bola com ele. Eu ia para
o hospital, mas ela disse: "Não, você
vai ficar aqui em casa. O meu filho já
está caído de febre, eu cuido dos
dois. Quando o meu marido chegar, converso com
ele." Quando o marido chegou, não
gostou do negócio.
- E o senhor se recuperou?
- Me salvei porque tinha um médico à
disposição. Quem ia para o hospital
morria. Fiquei lá um mês e pouco,
e aí decidi mesmo que não ia mais
ficar na vida de padeiro. Combinei com um primo
meu de vir para a Rio de Janeira, fui lá
na botequim e avisei aos companheiros: "Vou
I11e embora, que a ambiente não está
bom lá na casa dessa dana." O marida
não estava satisfeito de eu estar morando
lá, embora eu respeitasse ela como respeitava
a minha mãe. Ela foi um braço que
me auxiliou, me salvou da espanhola. "Vou
me embora para o Rio, sentar praça na Corpo
de Bombeiros." Eles disseram: "Você
não pode ir! Não podemos perder
a Menina de Ouro!" Estava Já no botequim
um engenheiro, que ouviu aquela conversa e perguntou
para o gerente: "Quem é esse rapaz?
Ele é bom assim coma estão dizendo?"
O gerente respondeu que sim, e a outro falou:
"É que recebi uma carta da minha irmã
pedindo para eu procurar um padeiro para ir para
a fazenda dela, em Quiçamã."2
O gerente me chamou, a homem falou comigo, disse
para eu ir ver cama era a negócio, que
se não gostasse eu ia embora, e no fim
me deu 25 mil-réis para a viagem. Mas aí
encontrei com o pessoal da banda de música
- eu tocava clarineta -, e as meninas não
me deixaram ir no dia marcado, parque ia ter uma
festa. Eu me meti no baile mesmo e não
apareci na casa do homem. O pessoal dizia: "O
homem está te procurando!" E eu: "Ai,
que eu estou enrascada..."
- Seus companheiros anarquistas aprovavam
que o senhor tocasse na banda, fosse a bailes?
- Não, criticavam, achavam que eu perdia
muito tempo com as meninas. Também não
gostavam muita que eu jogasse futebol. Mas eles
não mandavam em mim. Eu era um sujeito
autônomo nesse negócio. Não
respeitava ninguém, fazia o que eu queria,
ninguém podia me manobrar. Uns cinco eu
carreguei para o meu grupa de música.
- E onde o senhor jogava futebol?
- Nos clubes. Joguei no Lacerda, no Paladino,
na Selva, na Norte-Guanabarense, na Liga do Avante.
Uma vez teve um joga lá, numa festa de
doutores, e o dr. Coelho das Santos me pediu para
jogar. Fui com mais dois, e no fim eles nos pagaram
e nos mandaram embora, não deixaram a gente
ficar na festa porque a gente era preto. Fiquei
muito aborrecido.
Mas aí, como eu ia dizendo, resolvi ir
mesmo para Quiçamã, para ver como
era aquela história. Isso foi mais ou menos
em dezembro de 1918, depois que a guerra acabou.
Peguei um trem e fui. Ah, vou lhe contar!
- O que aconteceu?
- Quando a trem parou na estação,
tinha uma casa comercial enorme, e eu me apresentei
ao camarada no balcão. Ele falou: "Ah,
é você, seu moleque safado! Trapaceiro!
Que apanhou o dinheiro da minha tia e não
apareceu! Aqui você vai andar na ordem!"
Eu, todo metido, chapéu castor, guarda-chuva,
sapato amarelo de abotoar da lado, todo fino,
receber uma esculhambação dessas
na vista de todo mundo! Já não gostei.
Dali a pouco chegou o trem deles, que ia para
a fazenda, e o homem chamou o chefe do trem: "Leva
esse moleque trapaceiro lá para a fazenda."
Assim ele me tratou. Eu até conhecia o
chefe do trem, e assim que começamos a
andar ele me disse: "Rapaz, como é
que você veio parar aqui? Daqui você
não sai nunca mais! Só fugindo.
Isto aqui é um feudo."
- O senhor se lembra do nome do dono da
fazenda?
- Não. Mas tudo lá era parente,
cada um tinha uma fazenda. Só casava primo
com prima, tudo a mesma família.
Dali a pouco o trem pára na ponta final,
e vem outro parente: "Moleque trapaceiro,
e tal..." Eram cinco da tarde, estava chuviscando,
abri o meu guarda-chuva e dei para chorar que
foi uma coisa horrível. "Onde é
que eu me meti? Estou desgraçado, nunca
mais vau sair daqui." Afinal veio um sujeito
num carro de boi me buscar. Me levou para a casa
do delegado Juanito, e o delegado veio de novo
com esculhambação, perguntando ande
eu nasci, se era casado, se fumava, se bebia.
No final ele perguntou: "Você é
padeiro mesmo ou é conversa fiada? Porque
já esteve aqui um padeiro do Rio que não
sabia fazer pão, dei uma sova nele e mandei
embora." Aí chamou as duas filhas,
que eram adotivas. Desculpe eu usar essa expressão,
mas havia esse direito de pernada: as meninas
eram filhas de lavrador que ele batava dentro
de casa para serem amigas dele. Bem, chegaram
as meninas com uma bandeja, e ele disse: "Sabe
fazer pão coma esse?" Eu respondi:
"Igual a esse, não, que isso não
é pão. Isso é bolo de massa.
Sei fazer melhor. "
Já tarde da noite cheguei na sede da fazenda.
Era um palácio! Chorei a noite toda pensando:
"Nunca mais vou sair daqui!" Que o chefe
do trem tinha dita: "Só fugindo."
- Quanto tempo a senhor ficou na fazenda?
- Dois anos. E saí fugido. Montei a padaria
lá, e todo o dinheiro que eu ganhava guardava
para poder fugir. Porque eu não podia sair
de lá. Como é que eu ia fazer, se
eles não deixavam?
- E como foi que o senhor fugiu?
- Desculpe eu dizer, mas aconteceu que eu gostei
de uma pequena, filha de uma criada da fazenda,
morena bonita, e fiz mal a ela. Ela ficou grávida,
a mãe descobriu, e tive que fugir mesmo.
Combinei com ela: "Olha, vou para Campos
e depois mando te buscar." Vendi o meu cavalo,
peguei o dinheiro, deixei a mala com tudo meu
e fugi com um companheiro que sabia o caminho.
- O senhor foi para Campos.
- É. Quando cheguei, fui procurar aquela
senhora Carola, que me salvou da espanhola. Ela
também era uma morena bonita, desejosa,
e me acoitou outra vez, porque lá em Campos
também tinha parentes do pessoal de Quiçamã.
Fiquei três meses escondido. Um dia chegou
a notícia de que a minha pequena de Quiçamã
tinha morrido, e o garoto também. Essa
senhora Carola foi lá, arranjou de trazer
a minha mala, que estava perfeita, com tudo dentro,
e aí eu disse: "Bom, agora chegou
a hora. Agora vou-me embora para o Rio de Janeiro."
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Notas
1
- A Escola de Aprendizes Marinheiros do Rio de
Janeiro foi criada por decreto imperial em 1885
e é um exemplo de instituição
cujo objetivo era recolher e educar crianças
órfãs, pobres ou abandonadas. O
medo que João Lopes transmite ainda hoje
ao relatar a possibilidade de seu envio a esta
escola é elucidativo do teor da disciplina
que aí imperava e da fama que ela possuía
em inícios do século.
2
- As terras de Quiçamã, povoadas
a partir do século XVII, situam-se na região
dos Campos dos Goitacases, próprios à
exploração da cana-de-açúcar.
O grande proprietário da área no
período imperial foi José Carneiro
da Silva, primeiro visconde de Araruama, antepassado
comum de uma numerosa família mantida unida
por freqüentes casamentos consangüíneos.
Até hoje, Quiçamã - distrito
de Macaé - abriga as ruínas de velhos
casarões, sedes das fazendas de Mato de
Pipa (a mais antiga), Machadinha (1867), Mandiquera
(1874), Boa Esperança (1883) e Quiçamã,
que, data de inícios do século passado
e chegou a possuir 48 quartos.
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