Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Garrancho,
Ópera Sertaneja
Aécio Cândido e Crispiniano Neto
Nosso
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Documentais | Equipe
de Produção
Insurreição 1935 RN | Sindicato do Garrancho | Caldeirão | Cartografia
PCB/RN | Sindicalismo RN | João Café Filho | Djalma Maranhão
Dedicatória
O Sindicato do Garrancho
Prefácio de Brasília
Carlos Ferreira
Garrancho Ópera Sertaneja
Personagens
Créditos
Dedicatória
a Vivaldo Dantas,
Chico Guilherme
e Lourival de Góis,
pela dignidade com que vestiram a vida e a
militância política;
a
Rodrigo e Marcondes Filho,
por razões do coração.
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Personagens
01 - Chico Guilherme
Foi presidente do Sindicato dos Salineiros de
Mossoró, de 46 a 50. Preso duas vezes:
de 36 a 37, cumprindo pena na Ilha Grande, no
Rio de Janeiro, e de 38 a 39. É motorista
de taxi em Mossoró, onde mora com dona
Francisca Clara, sua mulher. Está com 74
anos.
02
- Cândido Benedito
Mossoroense, foi o segundo presidente do Sindicato,
iniciando o mandato em 1932. Mora em Fortaleza.
03
- Joel Paulista (Joel Martins do Nascimento)
77 anos, vividos em Mossoró, onde nasceu.
Foi duas vezes presidente do Sindicato: em 34/35
e em 55 (interinamente). Preso duas vezes: em
dezembro de 35, condenado a dois anos de prisão,
cumpridos na Ilha Grande, ao tempo de Graciliano
Ramos; e em 64, cumprindo um ano.
04
– Policárpia
Presidente da Associação de Mulheres
Trabalhadoras de Mossoró. Foi presa em
36, acusada de insuflação. Organizava
paneladas e grandes festas, a fim de levantar
dinheiro para o Partido. Morreu fora de Mossoró.
05
– Alemão (José de Alencar)
Carioca, chegou em Mossoró em 35, com mais
ou menos 24 anos. Era engenheiro, especialista
em explosivos. Foi fuzilado no sítio Cigano,
ao pé da Serra Mossoró, pelo sargento
Francisco Felício (Chico Zaza), em 36,
depois de dissolvido o grupo guerrilheiro.
06
- Miguel Moreira
Natural de Angicos/RN. Era rábula. Último
resistente do Grupo. Foi preso em 36, cumprindo
5 anos de prisão em Natal.
07
- Feliciano Pereira de Souza
Entregou-se à polícia após
matar Manuel Torquato, tendo antes passado na
casa da família Fernandes. Cumpriu 5 anos
de prisão, em Natal. Foi morto em Ceará-Mirim
(RN) por um soldado.
08
- José Mariano (Luiz Manuel da Silva)
Sua militância no Partido foi quase toda
na clandestinidade. Usou os nomes de Zé
Mariano, Antônio Martins, além do
nome de guerra assumido dentro do Partido: Pirajaba.
Foi soldado do exército, tendo participado
de uma rebelião. Em João Pessoa
(PB), matou um policial integralista, durante
um comício. Vendia pão-de-milho
em Mossoró. Esteve envolvido na morte de
Chico Bianor (14/10/34), feitor de uma salina
em Areia Branca. Chico Bianor tinha ameaçado
arrancar-lhe os dentes. Foi morto pela polícia
em 36, em Limoeiro do Norte (CE).
09
- Jonas Reginaldo
Morreu em 74. Junto com os irmãos Raimundo,
Lauro e Glicério compunha um núcleo
de intelectuais ativos no meio operário
mossoroense e ligados ao PCB. Era marchante.
10
- Sebastião Caldeira
Guerrilheiro grossense. Morreu em 36, quando detonou
um cinturão de explosivos que conduzia
à cintura.
11
- Manuel Torquato de Araújo
Chefe do grupo guerrilheiro. Antes de ser salineiro
foi pequeno comerciante, ambulante. Foi preso
pelo bando de Lampião. Fugiu e perdeu toda
a mercadoria para o bando. Organizou um sindicato
de trabalhadores rurais em Alagoinha e outro em
Açu, quando despertou a raiva de fazendeiros
locais. Morreu com 35 anos. Deixou 7 filhos, alguns
ainda hoje morando em Mossoró.
12
- Raimundo Sacristão
Por mais de 50 anos foi sacristão da catedral
de Santa Luzia. Morreu em 78, com 66 anos.
13
- Rafael Fernandes Gurjão
Médico e político, foi prefeito,
deputado e governador. Diretor do jornal O MOSSOROENSE.
Morreu no Rio de Janeiro em 1952, com 71 anos.
14
- Lauro de Escóssia
Jornalista e historiador, foi diretor de O MOSSOROENSE,
onde escreveu uma série de artigos sobre
o período da guerrilha. Vive em Mossoró.
15
- Edgard Barbosa
Professor, jornalista e escritor de Ceará-Mirim
(RN). Morreu em Natal, em 1976, com 67 anos.
16
- Raimundo Juvino
Comerciante e industrial, foi prefeito de Mossoró
de novembro de 32 a setembro de 33. Chegou a ser
preso por ser cafeísta. Morreu em Natal,
em 1980, com 93 anos.
17
- Saboinha (Vicente Carlos de Sabóia Filho)
Nasceu em 1889, no Ceará. Foi por muitos
anos superintendente da estrada de ferro de Mossoró,
adquirindo fama de terrível pelas arbitrariedades
praticadas contra ferroviários e outras
categorias. Morreu em 1965.
18
- Celina Viana
Natalense, nasceu em 1890. Esposa do Prof. Eliseu
Viana. Entrou para a história de Mossoró
por ter sido a primeira mulher no Brasil a votar
(1928). Morreu em 1972, em Belo Horizonte.
19
- José Martins de Vasconcelos
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Créditos
Garrancho, Ópera
Sertaneja
Aécio Cândido e Crispiniano
Neto
Editora
Universitária da UFRN
Natal - RN - 1985
Associação
dos Professores de Mossoró – APM
Coleção
Quadro Negro Vol. I
Mossoró - 1985
Apoio:
Secretaria de Educação e Cultura
do Rio Grande do Norte
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O
Sindicato do Garrancho
Prefácio de Brasília
Carlos Ferreira
O
Sindicato do Garrancho
Aécio
me telefona e pede um prefácio para o trabalho
que está publicando, uma teatralização
do Sindicato do Garrancho. Joel Paulista, um dos
personagens, me falara certa vez sobre a peça
e eu até já esquecera. Não
por descaso, mas pela quantidade de papel em branco
em minha frente, recebendo registro dessa mesma
história.
Coincidência? Não no fato em si.
Acho que se inscreve na mesma trilha de tentar
escrever/reescrever, contar/recontar nossa história.
Talvez ajude aos que queiram refazê-la.
Ou talvez sirva apenas para fixar com detalhes
o tempo de um povo. O que já não
seria pouco. "Houve um tempo aqui em Mossoró,
que era proibido falar o nome operário.
Quando o camarada citava o nome de operário
se não fosse preso, pelo menos ficava em
vista" (¹).
É desse tempo que o livro fala. E se a
gente tiver o cuidado de ler vai que esse tempo
é também o nosso tempo. Portanto,
é do nosso tempo que ele fala. De um tempo
de violência e opressão, de perseguição
e de morte aos que tentam fazer do seu tempo,
a sua história.
Pretende resgatar a luta dos trabalhadores das
salinas de Mossoró para fundar o seu Sindicato.
Uma história que se desenrola entre 1931
quando foi criada a Associação dos
Trabalhadores nas Indústrias do Sal, até
1946, quando enfim, recebem a Carta Sindical.
Ao começarem essa luta, já estava
em vigor o Decreto n° 19.770, da Sindicalização.
Mas, "só tinha valor por lá,
porque ainda hoje as leis só vigoram lá
no pé do Palácio, quando chegam
aqui, perdem o valor, perdem ação,
não valem mais nada, porque ninguém
cumpre" (²). Essa legislação
transformava os Sindicatos, de entidades independentes
organizadas livremente pelos trabalhadores, em
entidades burocráticas, atreladas ao Estado
via Ministério do Trabalho. Os setores
mais conseqüentes da classe operária
resistiram vigorosamente à intromissão
do Estado em suas formas de organização.
Os ecos dessa luta chegaram a Mossoró e
as discussões iniciais apontavam para a
criação do Sindicato fora da tutela
do Ministério do Trabalho. Mas a reação
dos proprietários de salinas à iniciativa
da Organização dos Trabalhadores
foi tão violenta, que eles procuravam se
colocar ao abrigo da lei, agindo conforme os requisitos
exigidos pelo Ministério, para obter a
legalização. Registraram-se como
Associação, tal como determinava
a lei. Criou-se então uma situação
insólita: os patrões se negavam
a aceitar que a Associação representasse
os trabalhadores sob a alegação
de que ela não era ainda Sindicato, ao
mesmo tempo lutavam por todos os meios para que
a Associação não fosse reconhecida.
Nessa época, a oligarquia dos Fernandes,
grandes proprietários incluse de salinas,
detinha grande poder e influência em Mossoró.
Os Prefeitos eram os Fernandes ou alguém
de sua confiança. Nas eleições
de 1934, Rafael Fernandes foi eleito Governador
do Estado. A luta para impedir a legalização
do Sindicato dos Trabalhadores nas Salinas, até
então reservada, emerge em toda a sua intolerância
na declaração de Rafael Fernandes
de que enquanto fosse Governador, o Sindicato
não seria reconhecido. O que de fato aconteceu.
"Nós botávamos requerimentos,
constituíamos advogados e não tinha
jeito. Eles botavam pedras no caminho, os requisitos
não eram atendidos e o Ministério
do Trabalho não reconhecia o Sindicato"
(³).
Colocando as coisas dessa maneira, dou a impressão
que a saga dos salineiros se limitou a esse espaço
de tempo e se restringiu a lutar pelo reconhecimento
no Ministério do Trabalho. Seria um grande
erro pensar assim e estaríamos empobrecendo
muito a história desses homens. Quase diria
que esses marcos funcionam para nós como
pretexto para contar outras histórias.
Na verdade, no decorrer dessa luta pelo reconhecimento
do Sindicato, abraçaram outras lutas (ou
terá sido outros aspectos da mesma?), pegaram
em armas e embrenharam-se na clandestinidade destinada
aos que estão do outro lado da lei e da
ordem (ou que estão empenhado na construção
de outra ordem?). E tudo isso por quê? O
que faz com que uma luta levada amplamente pela
classe trabalhadora aqui se revestisse de tanta
violência? O que faz com que tantos homens
ganhem as matas, arranhando-se nos seus garranchos,
enfrentando as armas e os homens mantenedores
da ordem, num desafio que coloca na mesma trilha
homens de calo nos ombros rostos queimados de
sol, olhos cansados da explosão branca
do sal, mãos duras de manejar as enxadas,
com homens letrados e falantes? Manoel Torquato,
Joel Paulista, Zé Mariano, Chico Guilherme,
Miguel Moreira, Jonas Reginaldo, José Alencar,
Horácio Valadares, Cândido Benedito...
Por quê?
Procura-se aqui resgatar um pouco dessa história
a partir da ótica de seus agentes: a classe
trabalhadora. Essa preocupação se
junta à de tantos outro que pretendem dar
vez e voz aos agentes históricos de uma
sociedade profundamente excludente, elitista e
refratária à idéia de admitir
sua existência, na tentativa de - ignorando
suas vozes, suas ações e seus anseios
- eliminá-los enquanto forças vivas
e poderosas alavancadas de transformação.
A história da classe trabalhadora em Mossoró,
está ligada à história da
família Reginaldo. Impossível reconstituir
sua trajetória sem referência à
participação dessa família
numerosa, cuja quase totalidade dos membros dedicou
parte de suas vidas à causa da transformação
social. Em conseqüência, uns mais como
Raimundo, Jonas e Lauro Reginaldo, outros menos
como Glicério, Antônio, João
da Mata, Luiz e Amélia Reginaldo, tiveram
de enfrentar a violência da repressão,
as prisões, a clandestinidade. Conheceram
de perto o tratamento que a sociedade reserva
aos que ousam pensá-la diferente e através
da ação buscam concretizar esse
sonho. Principalmente quando essa modificação
implica em alterar os próprios fundamentos
da sociedade.
Suas primeiras incursões no movimento operário
deram-se através da Liga Operária,
fundada pelo Professor Raimundo Reginaldo, em
1921. Era uma sociedade de socorro e auxílio
mútuo, que tal como tantas outras existentes
no país desde o final do século
passado, tinha como objetivo proteger o trabalhador
e sua família de modo a assegurar ajuda
e assistência em caso de doença ou
morte. Mas, sob sua orientação a
Liga passou a se constituir como um instrumento
de resistência e luta em defesa dos interesses
da classe trabalhadora. Isso irrita as elites
dominantes locais que acabam por conseguir sua
expulsão da Liga em 1927. Raimundo deixa
a Liga, mas está formado o núcleo
que daria origem aos Sindicatos em Mossoró.
Mossoró na época já concentrava
um expressivo contingente operário, necessário
ao trabalho nas salinas, na construção
da Estrada de Ferro, no tratamento da oiticica,
no beneficiamento da cera de carnaúba e
na construção das Estradas de Rodagem.
Mas, as salinas eram a atividade produtiva de
maior importância para a economia da região.
Por volta de 1930, cerca de 4.000 operários
se distribuíam entre as 32 salinas existentes
entre Mossoró e Areia Branca, enquanto
pouco mais de 1.000 se distribuíram pelas
outras atividades.
Em 1931, um grupo de operários entre os
quais Manoel Torquato, Cândido Benedito
e João Crisóstomo da Silva, orientados
pelos Reginaldo, fundam o Sindicato dos Trabalhadores
na Salina. De início, como Associação,
tal como determinava a legislação
vigente. Enquanto aguardam a resposta do Ministério
ao pedido de reconhecimento vão propagando
nas Salinas a importância de se associarem
ao Sindicato, como forma de se organizarem para
enfrentar juntos a opressão dos patrões.
E os operários vão chegando. "Todo
mundo queria ir à reunião. No dia
da reunião era homem, era mulher, era menino,
tal qual um comício" (4). A sede ficou
pequena para o número de trabalhadores
que se acotovelava do lado de fora, pela calçada.
"Era quase como uma festa, porque para os
trabalhadores não havia diversão,
lazer. A própria reunião do Sindicato
se transformava numa festa para eles. Pessoas
de outras categorias também participavam
dos debates. Havia também elementos da
rua, do povo, que compareciam até mesmo
por curiosidade" (5).
Pode-se imaginar o mal-estar da classe dominante
com essa situação. A repercussão
dessas reuniões abertas, logo extrapolou
as paredes da sede, todos debatendo os seus problemas
particulares e descobrindo na discussão
que o que lhes parecera até então
uma situação individual, era na
verdade, uma condição coletiva com
suas especialidades. O problema do operário
da salina diferente e igual ao problema do operário
da construção civil, diferente e
igual ao problema dos ferroviários... A
dimensão pedagógica de tais reuniões
era inquestionável, o povo tendo como assunto
de suas conversas na calçada, na boca-da-noite,
suas condições de vida, a causa
de toda a exploração e miséria
a que estavam submetidos e, sobretudo, o Sindicato
como o instrumento de organização
capaz de superar aquela situação.
Apesar da Aliança Liberal e do Decreto
de Sindicalização em vigor, as elites
dominantes não reconhecem limites ao seu
poder, principalmente quando se sentem ameaçadas
em seus privilégios. À falta de
respaldo legal para proibir a existência
do Sindicato, usam um recurso mais rápido
e contundente: a repressão.
A polícia passa a perseguir violentamente
o Sindicato. Chegar na sede, participar de reunião,
se assumir enquanto sindicalizado é prisão
certa. A polícia está na espreita:
"Aí nós tratamos de nos reunir
no mato. Tinha árvores aqui perto, na época,
daqui a uma légua mais ou menos, tinha
árvores grandes e era lugar ermo. A gente
dizia: "tal dia é debaixo de árvore
tal", por exemplo, uma quixabeira, que é
uma árvore que a gente tem aqui e que é
muito frondosa, nunca falta sombra nela. A gente
ia para lá e traçava os planos.
Não era uma assembléia, mas ali
estava a fina-flor do operariado mais consciente"
(6). Criou-se o Sindicato do Garrancho. As reuniões
eram sempre durante o final de semana, aproveitando
a folga da salina. Iam ao encontro uns dos outros
protegidos pela escuridão da noite e nas
poucas vezes que fizeram reuniões durante
o dia, iam disfarçados, a espingarda, o
bisaco e o cachorro, como se tivessem saído
para caçar.
Apesar de tantas dificuldades o trabalho foi se
consolidando. A intransigência dos proprietários
locais em não reconhecer direitos já
plenamente assegurados como conquistas da classe
trabalhadora brasileira, levou-os a realizar muitas
greves.
Em 1934, os patrões baixaram o preço
do alqueire de sal, estabelecendo um valor inferior
ao que fora pago durante a colheita do ano anterior.
Os trabalhadores entraram em greve e receberam
a solidariedade das outras categorias. Mossoró
parou. Não houve pão, transporte,
luz, carne, nada!
Na época, muitas outras categorias, seguindo
o exemplo e a orientação dos salineiros,
já haviam se organizado em Sindicatos.
Foram surgindo a construção civil,
ferroviários, padeiros... Iniciado o trabalho
em Mossoró, partem em comissões
para tentar organizar os trabalhadores das cidades
próximas. Assim são criados os Sindicatos
dos Salineiros de Areia Branca e dos Trabalhadores
Rurais de Açu e Alagoinhas. Esta iniciativa
coloca-os em confronto direto com as poderosas
elites locais que se sentem ameaçadas em
seus privilégios. Desencadeiam em resposta,
uma onda de violência chegando à
formação de caravanas de proprietários
para perseguirem os trabalhadores, que se armam
e passam a andar se protegendo por dentro do mato.
Continuam sendo caçados e ocorrem diversos
combates. Há mortes. A violência
é redobrada. Os contingentes policiais
locais são reforçados. Os trabalhadores
encurralados entram de vez na clandestinidade.
No início de 1935, ao assumir o Governo
do Estado, Rafael Fernandes lança uma ofensiva
contra os trabalhadores. Dirigentes Sindicais
são presos, reunião são interrompidas
pela polícia. O objetivo é liquidar
O Sindicato. Numa das investidas a polícia
prende 200 trabalhadores. Ao final do dia estão
todos soltos, numa tentativa clara de implantar
o terror.
Os trabalhadores mais visados vão tendo
que se esconder para não serem presos.
Entram para o mato, vão fazer companhia
aos que já se encontram na clandestinidade,
em conseqüência dos conflitos de Açu
e Areia Branca.
Há a notícia de uma revolução
iminente. Decidem permanecer clandestinos. Vitoriosa
a revolução sairão para a
liberdade. O levante de novembro malogra e com
ele as esperanças daqueles homens acossados.
O Governador, de uma leva só, expede 964
prisões. Os Sindicatos são esvaziados.
Os trabalhadores mais conscientes e atuantes vão
povoar porões dos navios que se dirigem
à Ilha Grande e outras prisões do
sul do país.
A "guerrilha" resiste ainda 6 meses.
Aos poucos vai se isolando, os elementos de contato
e apoio sendo presos, a polícia massacrando
quem encontrasse pelas estradas, acusando de auxiliar
o grupo, que permanece escondido entre Mossoró
e Açu.
Decidem sair 2 a 2. Alguns conseguem, são
poucos. Manoel Torquato é morto por Feliciano,
um companheiro de luta. Miguel Moreira é
preso. Alemão é encontrado quase
morto de fome e varado de balas pela polícia.
Terminou a "guerrilha".
Estabelecida a paz dos cemitérios, os patrões
puderam respirar em paz. Durante os 3 anos seguintes
não houve aumento de salários. O
trabalhador era contratado sem saber quanto ia
ganhar pelo serviço. Caso arriscasse a
perguntar, a chicotada vinha certeira: "Está
procurando trabalho ou quer saber o preço?"
Ao receber o salário no final da semana,
o trabalhador tinha a resposta: o salário
diminuíra. "O alqueire tinha baixado,
baixou a diária, baixou o embarque, baixou
tudo. E o trabalhador ficou amedrontado"(7).
Bem, é essa, em traços rápidos,
a história do Garrancho. Este resgate nos
coloca em contato com um sindicalismo, praticado
em outros tempos. Embora possa nos parecer - se
analisado a partir de um distanciamento crítico
- idealista e ingênuo, mesmo em seus aspectos
aparentemente revolucionários inclui atores
de uma grandeza política e humana muito
grandes, de um idealismo beirando patético.
Mas que nos fazem lembrar a reflexão de
Lênin sobre o sonho e a necessidade de concretizá-lo.
E que coisa inspirou mais o homem para o sonho,
que o impeliu à luta, mais que o ideal
de liberdade?
Natal,
22 de julho de 1985
Brasília Carlos Ferreira
(1) José Moreira, Depoimento
à 1ª. Semana de Filosofia do Rio Grande
do Norte, promoção SEAF - Mossoró,
maior de 1981.
(2) Francisco Guilherme, Entrevista concedida
a Luiz Alves, em 1982.
(3) Idem (2), Entrevista citada.
(4) Idem (2), Entrevista citada.
(5) Idem (2), Entrevista citada.
(6) Francisco Guilherme, Entrevista concedida
à autora em 15/06/85.
(7) Idem, Entrevista citada.
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Garrancho
Ópera Sertaneja
Personagens
Apresentador
A
Elite
Trabalhadores
Fotógrafo
Soldados
Manuel Torquato
Cantadores
Empregada
Saboinha
Rafael Fernandes
Celina Viana
Menino
Foliões
Barão do Dinheiro
Sargento
Chico Guilherme
Getúlio Vargas
Latifundiário
Industrial
Cândido Benedito
Jornaleiro
Joel Paulista
Alfredo Rebouças
Jonas Reginaldo
Policárpia
Alemão
Amante
Diretor
Edgard Barbosa
Técnicos
Feliciano
Miguel Moreira
Um Velho
Mulheres
Zé Mariano
Um Cego
Lauro da Escóssia
Clara
Tenente
GARRANCHO
- ÓPERA SERTANEJA
Aécio
Cândido
e Crispiniano Neto
PRÓLOGO
DO PRÓLOGO
Apresentador
e muitos figurantes. Recitado sob música
feérica, tentando encaixar a fala no ritmo
da música. Os figurantes dançam.
APRESENTADOR
Senhora
e senhores,
distinto público,
meu cordial boa noite
O Grupo Terra apresenta
para a distinta platéia
a ópera sertaneja
soberbamente chamada
GARRANCHO.
Personagens saídos do escuro da história
para a luz
do palco
e conhecimento dos presentes.
(Corte
na música. Entra uma valsa. Apresentador
canta).
A
peça se passa
no começo dos anos 30
e se divide em três partes,
cada uma assim intitulada:
(Anunciado).
1ª.
parte: a Elite
(Música
circense. Entra uma figura muito gorda, de legue,
etc.: a Elite)
2ª.
parte: o Sindicato
(Trabalhadores,
com luvas de boxe, esmurram a Elite, que se defende,
ri, ironiza - às vezes é atingida.
A caracterização dos trabalhadores
pode ser feita com adereços: capacetes,
botas, etc.)
3ª.
parte: a Guerrilha,
(Os
trabalhadores trocam as luvas de boxe por rifles.
Atiram na Elite.)
que
no caso presente, infelizmente, quase nenhum arranhão
causou à bem guarnecida Elite
(A
Elite tira confeitos do cano dos rifles e chupa-os.
Despindo-se dos personagens, os atores cantam
a música Sindicato do Garrancho.)
TODOS:
Uma olhadela e rasgam-se
as cortinas da história.
Um sacolejo e abrem-se
as comportas da memória
para a passagem de nossos heróis.
Um
borbotão de heróis silenciados
tipos calados habitantes do passado
mas presentes em nós.
Silenciados por quem pode gritar forte
e dizer que é sul o que todos chamam norte
e por sul ficar.
Manuel
Torquato, Policárpia
Joel Paulista, os Reginaldo
Chico Guilherme, Benedito
Miguel Moreira, Herculano
e muitos mais.
A
saga amarga da paixão
de corações dilacerados
sangue de justos derramado
pela paixão de querer bem
de querer bem
àqueles que sem voz se calam
que só têm as lágrimas
pra chorar
e choram impotentes choram
todo o mar
Pátria
amada mãe gentil recebe agora
braços abertos, em teu seio um manso abraço
expõe o coração e o teu regaço
deixa transpor pra tua veia o sangue irmão,
deixa sangrar
Sangra,
sangra, meu anjo
comova-te a história
a pouca glória
do Sindicato do Garrancho
Não
te comove não?
Eu sei por que:
a história contada é mais alegre
do que o fato em primeira mão.
Sai
à rua o Sindicato do Garrancho, ó
povo meu!
PRÓLOGO
Cena
I
Num
tablado, de bruços, o corpo de Manuel Torquato,
sujo de sangue e terra. Luz sobre o corpo. Um
tempo. Uma máquina fotográfica lambe-lambe
em frente, um pouco à esquerda do corpo.
Fotógrafo encoberto pelo pano da máquina.
Luz sobre a máquina. Tempo. Fotógrafo
encoberto pelo pano da máquina. Luz sobre
a máquina. Tempo. Entram dois soldados,
suspendem Manuel Torquato pelos sovacos, ajeitam-se
para serem fotografados. Fotógrafo compõe
o quadro. Dispara. Um grito de mulher, fora de
cena, alarmado: _ Mataram Manuel Torquato! ! !
Black-out.
Cena
II
Cantadores. Luz sobre eles
CANTADOR
1:
No
abrir dos anos 30
Tem na Europa os nazistas,
Nova Iorque vive a craque,
No Brasil, crescem golpistas;
Em Mossoró se debatem
Liberais e perrepistas.
CANTADOR
2:
Na
Rússia os socialistas
prometendo um mundo novo,
os artistas em S. Paulo
cantam vida em vez de louvo.
Em Mossoró, a elite
tem pesadelos com o povo.
CANTADOR
1:
É
o burguês contra o povo,
ocidente e oriente,
Ipiranga e Humaitá.¹
"Coroné" compra patente
e o peão das salinas
se torna mais consciente.
CANTADOR
2:
Uma
classe prepotente
só de latifundiários,
de senhores de salinas
e altos funcionários
comprava poder às custas
dos calos dos operários.
CANTADOR
1:
Nesta
peça os empresários
são como eles são na vida:
cruéis, antidemocráticos.
Pros pobres, cadê guarida?
É a divisão de classes:
opressora e oprimida.
CANTADOR
2:
Entre
roçado e salinas,
entre peão e burguês
no ano de trinta e cinco,
descambando em trinta e seis,
deu-se a primeira guerrilha
de operário e camponês.
CANTADOR
1:
Na
elite, Antônio Lúcio,
Saboinha, repressor,
os Rebouças e os Fernandes
e um Chico Bianor
que gostava de mandar
dar surra em trabalhador.
CANTADOR
2:
Lutando
contra o opressor
estavam Manuel Torquato,
a família Reginaldo,
Chico Guilherme era exato,
Joel e Zé Mariano
lutavam no sindicato.
1
- Clubes esportivos de Mossoró, fundados
nos anos 20.
1.° QUADRO - A ELITE
Cena
1
Casa
de Saboinha.
Saboinha, Rafael Fernandes, Empregada e Celina
Viana.
EMPREGADA
(servindo licor): Licor, dr. Rafael Fernandes?
SABOINHA:
Não
é verdade que o homem vive de lembranças
do passado e das esperanças do futuro.
A verdade é que o nosso presente é
muito desestimulador. Antes de você chegar,
Rafael, eu estava pensando no passado desta cidade.
Outra época, Rafael, outra época.
Mossoró já foi Mossoró. Hoje,
a anarquia anda solta. Dissolução
dos costumes, credos alienígenas. Empregado
não respeita mais patrão, mulher
discute as ordens do marido... avalie. Soube até
que já existem na cidade mocinhas que freqüentam
o Ipiranga sem a companhia das mães, sem
meias e de cigarro no bico. Um exagero. Uma pouca
vergonha. Até Igreja de Protestantes já
temos, Rafael Fernandes. É o fim do mundo,
o apocalipse. O mundo anda tão sem rumo
que até um poeta de estatura de Olavo Bilac,
o arauto do sentimento cívico-nativista,
se acha ameaçado por esses tais modernistas,
um grupinho de maricas paulistas, ainda nos cueiros,
querendo destronar a verve parnasiana.
RAFAEL:
Ah,
Saboinha, você precisa ver as danças.
Estão querendo introduzir nos salões
os remelexos do povaréu. Coisas dessa juventude
modernista, futurista. Nesses dias, senhoras da
sociedade vão dar de cara com meretrizes.
É só o que falta: tirar o cabaré
da Machado de Assis e botar no centro da cidade.
SABOINHA:
E
agora, pra acabar de completar, a praga comunista.
(Para Rafael) Quer mais licor?
RAFAEL:
Mais
um pouquinho. E por acaso não são
eles os responsáveis por esse desmantelo
todo!? Isso é uma pintura deles. Idéias
bolchevistas! Bastou a Rússia fazer uma
revoluçãozinha de merda pra plebe
nativa querer botar as unhas de fora. Comunista!
E agora que se conluiaram com esses inocentes
úteis da Aliança Liberal. Café
Filho é o grande protetor dessas marmotas.
Eles vão ver no que vai dar esse namoro.
É pra Aliança Liberal que se escoa
todo o oportunismo desses traidores da república.
SABOINHA:
O
Partido Comunista anda solto. Aqui estão
começando a botar o focinho de fora.
RAFAEL:
Estou
sabendo, e não durmo no ponto. "Nem
peleje", como diz a mocidade. Pras orelhas
deles eu já tenho brincos.
SABOINHA
(impetuoso):
A Liga Operária é um disfarce.
RAFAEL
(Impetuoso):
O Partido, camuflado pelas mãos de Raimundo
Reginaldo.
SABOINHA:
(idem)
Um antro de agitadores.
RAFAEL:
(calmo, marcando cada palavra): Mas você,
Saboinha, tem como acabar com isso.
SABOINHA:
(arreia na cadeira, abatido): Mais do que tenho
tentado? Raimundo Reginaldo é imbatível
ali dentro.
RAFAEL:
Besteira.
Nada é imbatível. É uma questão
de método, somente. Pegue duzentos homens
da estrada de ferro e associe na Liga, pra votarem
no candidato que você indicar. (Tempo).
Eles são fiéis a você, não
são?
EMPREGADA
(entra): Com licença, coronel. Dona Celina
Viana. Mando entrar?
SABOINHA:
Dona
Celina? Claro, claro! (Levanta-se para esperá-la.
Celina entra).
SABOINHA:
Como
vai, professora? Como se sente, agora que é
parte da História do Brasil? (Beija-lhe
a mão)
RAFAEL:
Da
América do Sul. Primeira mulher a votar
na América do Sul. (Idem)
CELINA:
Muito
obrigada pela bondade. Os senhores são
muito gentis. Pra ser sincera, eu não me
sinto envaidecida. Honrada, apenas. É,
eu me sinto honrada. Cumpri minha obrigação:
votei. E votei num homem.
RAFAEL:
E
que homem. O senador José Augusto bem merece
o primeiro voto da primeira mulher a votar.
CELINA:
Com
certeza. (Senta-se num baú)
SABOINHA
(rápido, grito nervoso)
Não sente aí, professora, por favor.
CELINA:
Não
faça cerimônia, coronel. Eu sou de
casa.
SABOINHA
(um pouco constrangido):
Claro!
Isto me honra.
CELINA:
O
que me trouxe aqui, coronel, foi uma necessidade
muito grande de ouvir os chefes políticos
da cidade que adotei como minha. Alguma coisa
conversei com meu marido, mas mesmo assim não
tenho me acalmado. Dói-me falar... (Tempo)
Nos últimos dias a cidade tem-se mostrado
muito agitada, não acham?
RAFAEL:
Certamente, professora. É carnaval, e quem
não gosta de trabalhar se vale dessa desculpa.
CELINA:
Não, dr. Rafael, eu não me refiro
ao carnaval, somente. Há outras agitações.
A Liga Operária, por exemplo...
SABOINHA:
É
certo. (Demagógico). Estão se servindo
da tribuna da Liga Operária para fazer
a propaganda comunista. Arquitetura dos Reginaldo.
CELINA:
Coronel,
o senhor acaba de tocar na ferida: os Reginaldo.
É sobre eles que eu vim falar. São
eles os cabeças de toda essa situação,
coronel. E a culpa de tudo isso me cabe. Meu Deus!
Tenho vivido dias de martírio! (Levanta-se
trágica.) Se os senhores não sabem,
fui eu que desencaminhei esses meninos.
(Tempo.
Constrangimento na sala.)
SABOINHA:
(Levanta-se pega-a pelo braço e caminha
pela sala):
Não diga isso, dona Celina. Sua bondade
jamais desencaminharia ninguém, muito pelo
contrário: ela é força de
resgate para o caminho da boa conduta e do bom
proceder. (O gesto largo com que sublinha a frase
faz derramar o licor no braço de dona Celina.)
Por favor, dona Celina, desculpe. (Limpa com um
lenço.) Eu sou muito enfático; em
algumas ocasiões, é um defeito.
(Tempo.) Mas, voltando à nossa conversa:
esqueça esse pensamento. A senhora está
se martirizando à toa.
RAFAEL:
Eu conheci a viúva Reginaldo desde que
ela entrou em Mossoró, porque veio bater
à minha porta - em 11, mais ou menos. A
capetice daqueles meninos vem do berço.
É sina, professora.
CELINA:
Eu agradeço o conforto de suas palavras,
mas só eu conheço a dimensão
da minha culpa. (Canta.)
So eu sei da minha culpa/ só eu conheço
meus ais
nenhuma pena desculpa/ o gesto que fiz atrás.
Madalena arrependida/ pelo destino traída
por ter mole o coração/ espero sofrer
calada
esta culpa tão pesada/ que me enlouquece
a razão.
Senhor
dos Passos, Jesus/ oh! tem de mim piedade
dissolve a pesada cruz/ dos ombros, por caridade.
Tão bondosas companhias/ não apaga
meus dias
peço a ti de coração./ Me
adotaram com ternura
deles descobre a brandura/ que me dará
o perdão.
Cena
II
Casa
de dona Celina, há muito tempo.
D. Celina, Empregada, um dos Reginaldo (criança).
EMPREGADA
(de fora):
Dona Celina, um dos meninos da viúva está
aqui. (Tempo. Entra em casa, vinda da esquerda.
Vai à direita da cena, como se falasse
para o interior da casa.) Dona Celina, um dos
meninos de dona Luzia Reginaldo está aqui.
Quer falar com a senhora. Eu deixo entrar?
CELINA:
(de dentro):
Deixe. (Um tempo. O menino entra pela esquerda.
D. Celina, logo depois, pela direita.) Bom dia,
como vai sua mãe?
(O
menino responde baixo, encabulado.)
CELINA:
Que vergonha é essa, meu filho? Você
já está um rapazinho, responda alto.
Menino educado cumprimenta os mais velhos.
MENINO:
Dona Celina, mamãe mandou perguntar se
ainda tem vaga no 30 de Setembro. É pra
matricular Laurinho.
CELINA:
Só com Eliseu, meu filho. Deixe ele chegar,
que eu falo com ele e me entendo com a sua mãe,
depois.
MENINO
(saindo):
Tá certo, eu digo a ela.
CELINA:
Espere aí. Eu estava mesmo querendo ver
um de vocês. Meu marido comprou uns livros
de um escritor alemão, um barbudo chamado
Marx...
Você já sabe onde fica a Alemanha?!
MENINO:
Sei, é na Europa, né?
CELINA:
É, sim. Mas a gente nunca deve dizer "né",
está bem? É errado. O certo é
"não é"? "É
na Europa, não é?" Bem, esse
alemão escreveu uma porção
de livros - eu não li não, mas meu
marido leu alguns e não gostou, não
sei por quê, mas como toda literatura serve
para alguma coisa, eu pensei que você e
seus irmãos pudessem gostar. Você
quer?
MENINO:
Ora, dona Celina, se a gente é doido pra
ler e não tem o quê!
CELINA:
Ótimo. É assim que deve ser. Os
livros são a luz do espírito. Os
bons livros, naturalmente. (Recita.) "Oh!
Bendito o que semeia/ livros... livros à
mão-cheia.../ E manda o povo pensar!/ O
livro caindo n`alma/ é germe - que faz
a palma./ É chuva - que faz o mar."²
(Pega livros na estante.) Olhe aqui: A Luta de
Classes na França, A Sagrada Família,
A Ideologia Alemã, O Capital, O Manifesto
Comunista... Tem também estes aqui, de
Lênin, um russo careca e de barbicha: O
Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia,
A Teoria do Estado e da Função dos
Sovietes, Cartas aos Camaradas... (O menino fica
esperando mais.) Pronto! Você já
tem com o que se ocupar por muito tempo. (O menino
sai correndo, com os livros debaixo dos braços.)
2. Versos de Castro Alves.
CELINA
(grita, rindo):
Não vai nem dizer obrigado?
MENINO
(de fora):
Obrigado, dona Celina!
Cena
III
Casa
de Saboinha.
Os mesmos da cena I
SABOINHA:
Dona Celina, não se martirize em vão.
São coisas do destino, embora a senhora,
como educadora e positivista, acredite na força
da ciência como modeladora do caráter.
De qualquer modo, e por via das dúvidas,
nós temos as nossas defesas. (Tempo) A
senhora está sentada sobre um baú
de armas.
EMPREGADA
e CELINA (com espanto):
Armas?
SABOINHA
(para empregada, ríspido):
Armas, sim, que é que você tem a
ver com isso? (Para dona Celina, educadamente.)
Sim, dona Celina, armas. E não somente
armas. Há munição em vários
cantos da casa. E não só desta casa.
Para dar cabo dos revoltosos. (Tempo.) E comunistas.
CELINA:
Mas... onde o senhor conseguiu... tantas?
RAFAEL
(didaticamente):
Os proprietários de salina são uma
irmandade, professora, e o governo também
faz parte dessa irmandade. As salinas estão
ameaçadas pelos agitadores comunistas e
sua política de greves. Se nós proprietários
já somos ligados, diante de tais ameaçadas
nos ligamos ainda mais.
(Batuque
de carnaval. Vai subindo, aproximando-se)
CELINA:
Compreendo. (Dirigindo-se, espontânea, à
janela.) Esse povo não sossega, coronel.
Nem a carestia esbarra essa torrente. (Um tempo.)
Que bloco mais esquisito, coronel, venha ver:
Bloco... dos... Cassacos... Venha ver também,
dr. Rafael.
Cena IV
O
Bloco dos Cassacos entra, cantando a sua marcha.
Em destaque, a figura do Barão do Dinheiro,
que, em tudo, imita Saboinha. Visual do Bloco:
pás, picaretas, uma composição
de andrajos e brilho; homens travestidos de mulheres
grávidas, com crianças de peito.
FOLIÃO:
Enquanto os foliões da Capital Federal
ocupam suas ruas ao som de A Malandragem, samba
de Bide e Francisco Alves³, a mocidade laboriosa
e independente da Capital do Sal traz para o carnaval
de 1928 a bonita marchinha pomposamente intitulada
de O Barão do Dinheiro, em homenagem a
um vulto inesquecível da aristocracia local.
BLOCO
(canta):
Lá vai Barão, lá vai Barão,
lá vai Barão
O Barão do Dinheiro
maltrata meu coração, meu irmão
esse maldito carniceiro.
Eu
peço dinheiro/ ele não me dá
trabalho dobrado/ não quer me pagar.
Cai fora, Barão/ do nosso terreiro/ maldito
Barão do Dinheiro.
Lá
vai Barão, lá vai Barão,
lá vai Barão...
Trabalho
a semana/ mas fico na mão
o Barão me toma/ até o calção
dinheiro pra feira/ não quer me arranjar/
no barracão eu tenho que comprar.
3.
A Malandragem - Bide e Francisco Alves. O carnaval
de 28, no Rio de Janeiro, produziu cerca de 120
músicas, inclusive adaptação
de charleston americano.
Lá
vai Barão, lá vai Barão,
lá vai Barão...
O
leite não tem/ _ como me arranjar?
só tem a farinha/ e couro de jabá.
Menino pequeno/ com fome mete o berro,/ Barão
da Estrada de Ferro.
Lá
vai Barão, lá vai Barão...
(O
bloco evolui. O Barão tira dinheiro de
papel de cigarros da cartola e sacode para o povo.)
Cena
V
Luz
sobre Saboinha, que aparece isolado, telefonando
para a polícia apoplético, espumando
de raiva - literalmente.
Luz sobre o Sargento, atendendo o telefonema de
Saboinha.
Cena
VI
A polícia intercepta o Bloco.
SARGENTO:
Parem a batucada!
FOLIÃO:
Nem peleje, sargento, caia na gandaia. Tá
com vergonha? Tem disso não. O sr. já
tá até fantasiado!... Fantasiado
de macaco.
SARGENTO
(pra cima do Folião, que foge):
Você é besta, sêo cabra! Parem
a batucada!
(A
batucada e o Bloco param de vez.)
SARGENTO:
Isso é um desrespeito, tão sabendo?
Isso não é bloco de carnaval não.
Isso é subversão. Vocês estão
ridicularizando o coronel Saboinha. Tejam presos!
FOLIÃO:
Calma, sargento, é carnaval. Ou o sr. não
tá sabendo?
SARGENTO
(grita):
Tejam presos!
(O bloco cai em cima da polícia. Arranca
as divisas do sargento. A polícia corre.)
Cena
VII
Luz
sobre Saboinha
SABOINHA:
Era só o que faltava! Está vendo,
dona Celina? Sempre os Reginaldo. Viu como o tal
do Jonas ia na frente, açulando a massa?
Mas eles me pagam! Podem se esconder nas profundas
do inferno, no cu do diabo - desculpe, dona Celina
- mas essa eles me pagam!
Fim
do 1°. Quadro
2°.
QUADRO: O SINDICATO
Cena
I
Palco
completamente no escuro. No meio do mato, reúne-se
o Sindicato do Garrancho. Chico Guilherme e Manuel
Torquato.
CHICO:
Saiu a lei sindical de Getúlio. Decreto
9.770, assinado por ele. Lei estreita, mas, de
qualquer modo, ser pra dizer que sindicato é
legal.
Cena
II
Foco
sobre Apresentador
Apresentador, Getúlio Vargas, Trabalhadores,
Industrial e Latifundiário.
APRESENTADOR:
Com licença, meus senhores, eu gostaria
de esclarecer alguns pontos nesta peça,
fornecendo-lhes um mínimo de organização
cronológica, a fim de que todos entendam
o que aqui está sendo representado. Assim
sendo, com vocês... a Revolução
de 30.
(Entram
dois trabalhadores miseravelmente vestidos, lutando
de espada. Por trás de um deles, um latifundiário
empurrando-o para a briga; por trás do
outro, um industrial.)
APRESENTADOR:
Não, não, de espada não.
(Para o público.) Perdão, senhores,
os atores se confundiram. (Os atores saem.) De
espada foi na Guerra do Paraguai. Nós estamos
em 30.
(Os
trabalhadores voltam com mosquetões. Levantam
as armas um para o outro. O Industrial e o Latifundiário,
por trás de cada um, ajudam-nos a fazer
pontaria. Detonam as armas. Ambos os trabalhadores
morrem, sob o olhar ausente do Latifundiário
e Industrial.)
GETÚLIO
(discursa):
Operários do Brasil... (Segue em mímica.)
APRESENTADOR:
Para todo operário do Brasil/ ele disse
uma frase que conforta
Quando a fome bater em vossa porta/ meu nome é
capaz de vos unir
os amigos por certo vão sentir/ que na
hora precisa estou presente
sou o guia eterno dessa gente/ e ao ódio
eu respondo com o perdão.
Ele disse muito bem/ o povo de quem fui escravo
não será mais escravo de ninguém.(4)
(Enquanto
dura a música, Industrial e Latifundiário
ajudam Getúlio a se vestir de mágico
de circo.)
4
- Ele disse, de Edgar Ferreira.
APRESENTADOR:
Agradecido a todos. (Saem.) O autor deste espetáculo
é daqueles que admitem o teatro como uma
tribuna e faz questão deste esclarecimento
a fim de que ninguém guarde ilusões
a respeito de Getúlio e sua revolução.
Cena
III
Volta
à escuridão da cena I, não
completa: Chico segura um lampião. Chico
e Manuel Torquato.
CHICO:
Saiu a lei sindical de Getúlio. Decreto
9.770, assinado por ele.
MANUEL:
Decreto funciona no sul, embaixo das escadarias
do Catete. Mossoró fica a 500 léguas
do Rio de Janeiro. Legalidade aqui é briga,
trabuco e mosquetão. No oeste potiguar
lei é bala, direito é polícia
e justiça é cadeia.
CHICO:
Mesmo assim, Manuel Torquato, a gente tem que
empurrar o sindicato pra frente. Sair do mato,
ganhar as ruas, a luz do dia, deixar de ser Sindicato
do Garrancho. A lei é acanhada, mas a gente
não é besta: corre dentro e fora
dela.
MANUEL:
Só que os patrões estão aí,
vivos, morando em sobrado, comendo do alheio e
se fazendo na política, fortes que nem
barbatão, prontos pra passarem um meta-borrão
em qualquer ajuntamento de trabalhador. Ou você
acha que eles dormem no ponto, Chico Guilherme?
CHICO:
Não dormem e estão no papel deles.
Rafael Fernandes já andou dizendo que enquanto
tiver força na política do Estado,
salineiro não forma sindicato. Com lei
ou sem lei a briga é grande pro nosso lado.
Mas a existência desse decreto, de qualquer
forma, é uma arma que ajuda.
Cena
IV
Foco
sobre Cantadores, que cantam um Brasil do Pai
Tomás.
CANT.
1:
Getúlio Vargas
entre operário e burguês
aprovou algumas leis
um pouco menos amargas,
porém as cargas
ficaram mesmo com a gente
o que ele dava de frente
mandava tomar por trás
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.
CANT.
2:
Em Mossoró
quem mandava eram os Fernandes
que ao lado de outros grandes
eram ruins de fazer dó.
Jucá, cipó,
pau, cassetete e corrente
para o peão consciente
polícia era capataz
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.
CANT.
1:
O salineiro
vivia um mundo de assombros,
calos nas mãos e nos ombros
no bolso pouco dinheiro;
o sal grosseiro
tornava a pele doente
só bebia água quente
no tonel dos animais
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.
CANT.
2:
Porém no mato
entre cactus e garranchos
semearam um sindicato,
Manuel Torquato
com a turma consciente
tava plantando a semente
das conquistas sociais
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.
Cena
V
Sindicato.
Mesa tosca, tamboretes, uma lâmpada elétrica
- fraquinha, - pendente do teto, bem em cima da
mesa. Chico, Manuel Torquato, Cândido Benedito.
CÂNDIDO
(entra muito alegre):
É agora ou nunca, rapaziada, é tudo
ou nada. Os patrões vão provar da
quentura do nosso fogo. Vamos em cima: péssimas
condições de trabalho, insatisfação
da classe, diretoria resoluta e sindicato legalizado,
que é que vocês querem mais? É
negociação no duro. Temos cinco
reinvindicações. Todas importantes:
aumento de salário - de 500 para 1.000
réis(5); água n a sombra e livre
da bebida dos animais; ranchos fechados e iluminados;
transporte pras salinas e seguro contra acidentes.
Vamos negociar no atacado, pei-bufo, todas de
uma vez. Queremos todas atendidas. (Procura numa
pasta.) Todas. Taí nosso manifesto, dando
conta da situação - quentinho, redigido
agora por Zé Martins.
MANUEL
(pega o manifesto; lê só para si.)
CHICO:
E se os patrões não aceitarem?
CÂNDIDO:
O manifesto?
CHICO:
Que manifesto, Cândido, as reivindicações.
CÂNDIDO:
Vamos à greve, não tem outro jeito.
Greve não é sopa, mas se não
tem outro remédio o jeito é esse
purgante mesmo. (Sério) É a única
brecha que temos, e é dentro dela que vamos
correr. O sindicato é legal, encabeça
as negociações. Se cassarem o registro,
a gente arranja outro modo de negociar. O que
não pode é continuar como está.
5
- 1 alqueire - 36 cuias de sal
1 cuia - 7 litros
MANUEL:
Assembléia neste domingo, então.
CÂNDIDO:
Neste domingo. Hoje é quarta, dá
muito bem pra fazer o trabalho de convocação.
MANUEL:
Quem vai às salinas, fazer a convocação?
CÂNDIDO:
Chico Guilherme e Você.
CHICO:
Eu, por que eu? Eu não tenho muita experiência,
estou...
CÂNDIDO:
Tem coragem, Chico, e os trabalhadores confiam
em você. Manuel Torquato, porque conhece
tudo quanto é balde de salina, de Macau
a Grossos, sabe quem presta e quem não
presta, quem merece confiança e quem é
dedo-duro. Convençam os barcaceiros e os
estivadores a apoiarem os salineiros.
MANUEL:
Você não acha, Cândido Benedito,
que se a greve for decretada a direção
do sindicato se estrepa? Quase ninguém
tem reserva de nada em casa; uma semana parado
é uma semana sem ganho. Muita gente vai
ser presa, pode escrever aí. Como é
que é? Ainda tem muito salineiro sem consciência
e depois que a coisa apertar, muitos deles vão
botar a culpa na diretoria.
CÂNDIDO:
São os ricos de toda luta, Manuel. Mas
a gente precisa pensar nisto: organizar um fundo
de greve. Entre nós mesmos e entre outras
categorias. Quem te vai poder ajudar. Jonas Reginaldo
pensa recolher alimentos no comércio de
Mossoró; Policápia vai orientar
um batalhão de mulheres para chorar por
seus maridos nos ouvidos do prefeito e do delegado.
Os ouvidos de Raimundo Juvino serão poucos
pra tanto clamor e petição. O resto
é com a coragem e decisão da classe.
Cena VI
Salina.
Chico Guilherme, Manuel Torquato e operários.
CHICO:
Companheiros, não é preciso tomar
muito o tempo de vocês para falar do que
vocês já sabem. Cada passarinho conhece
bem o tamanho de sua gaiola. Basta de exploração
ao nosso trabalho! Basta de fabricarmos riquezas
com nossas mãos para nutrir as mãos
que não se racham com a brutalidade do
sal. (Gritos, aplausos. Canta - galope à
beira-mar.)
Eu muito conheço o mar do Brasil:
só vejo peixinhos morando no mangue
e os peixes gigantes chupando seu sangue,
do mar para o sertão fazendo um funil,
mantendo o poder com bomba e fuzil
forçando o pequeno a se acomodar;
por isto estas águas temos que agitar
porque se estes mares ficarem serenos
os peixes maiores engolem os pequenos
seja no sertão ou na beira-mar. (Aplausos)
Somos
passarinhos de vôo tão bonito
querendo alcançar toda a amplidão:
progresso, saúde e educação
e a liberdade, que é vôo infinito,
mas tem a gaiola, limite esquisito
cortando as estradas abertas no ar.
Mas se entendêssemos a força invulgar
das varas unidas quando formam feixes
a gente se unia e junto com os peixes
quebrava as gaiolas e redes do mar. (Aplausos)
Com
quinhentos réis não dá pra
viver.
Queremos mil réis para comer mais,
não beber mais água com os animais,
ter galpão fechado, a luz acender
e ter segurança para não morrer,
transporte gratuito pra ir trabalhar.
Vamos exigir, reinvindicar
e se o patrão não der o que deve
não tem outro jeito, nós vamos à
greve
parando as salinas da beira do mar.
OPERÁRIOS:
Greve! Greve! Greve!
CHICO:
Vamos exigir, reivindicar
e se o patrão não der o que deve
não tem outro jeito, nós vamos à
greve
parando as salinas da beira do mar.
OPERÁRIOS:
Greve! Greve! Greve!
CHICO:
Atenção, companheiros! Atenção
(Faz-se silêncio.)
Assembléia no próximo domingo, no
sindicato, em Mossoró. (Gritos de greve,
agitação.)
Cena VII
Da platéia.
JORNALEIRO:
Salineiros decretaram greve ontem e hoje negociam
com os patrões. Salineiros decretaram greve
ontem e hoje negociam com os patrões.
(Sai gritando)
Cena VIII
Sala.
Mesa grande. Negociação. Patrões:
Rafael Fernandes e Alfredo Rebouças. Operários:
Chico Guilherme e Joel Paulista. Cantam - martelo
malcriado. Os patrões, ao cantar, apertam
laços de corda no pescoço dos trabalhadores.
RAFAEL:
Nesta mesa nós somos 4 irmãos
conversando ombro a ombro, face a face,
sem haver distinção qualquer de
classe
bons patrícios, amados cidadãos.
Com as propostas de paz nas 8 mãos
construindo um acordo salutar
em que cada um dos lados possa estar
confiante, tranqüilo e respaldado
e, depois, o patrão com o empregado
possa rir, beber junto e se abraçar.
JOEL:
Está fácil demais pacificar
neste pacto empregados e patrões:
basta que nossas reivindicações
vocês queiram deveras respeitar.
Pois a paz é a forma exemplar
de chegar-se ao amor e à beleza
ao afeto, ao carinho e à certeza
da justiça, do riso, da igualdade
do abraço feliz da liberdade
que é o bem mais real da natureza.
ALFREDO
Nossa classe, chamada de burguesa,
é amante fiel da liberdade
da justiça e da fraternidade
e da democracia - luz acesa -,
mas precisa mostrar sua grandeza
e não pode jamais perder terreno.
Se o acordo não for sincero e pleno
vamos ter outra conta e outro acerto:
a abraço transforma-se em aperto
e o risco em refresco de veneno.
CHICO:
Se o burguês fosse um pouco mais ameno
não quisesse pra si glórias eternas,
abraçar o universo com as pernas
seu diálogo não fosse só
aceno,
não deixasse um espaço tão
pequeno
respeitando deveras a igualdade
nas salinas, na roça e na cidade
não fizesse de nós gato e sapato,
não havia guerrilha, sindicato
luta e greve em favor da liberdade.
Cena IX
JORNALEIRO:
Jornal O MOSSOROENSE! Olha o jornal. PATRÕES
SE NEGAM A NEGOCIAR COM SALINEIROS. É a
notícia do dia. Olha o jornal. PATRÕES
SE NEGAM A NEGOCIAR COM SALINEIROS. (Sai gritando
a manchete.)
Cena
X
Uma
difusora de parque de diversões. A boca
do alto-falante e o som da locução.
VOZ:
Difusora Parque São José, armado
no largo dos Paredões, transmitindo mensagens
musicais. (Tempo) Aviso: O destacamento policial
da cidade, na pessoa do sr. delegado, sargento
Antenor, avisa a todos os salineiros que por motivo
das desordens perpetradas na região de
Mossoró pela citada categoria de trabalhadores,
que ora se encontra em greve, acha-se em vigência
o toque de recolher a partir das 21 horas. Afirma
o sr. delegado, baseado nas leis do País,
que qualquer salineiros encontrado na rua depois
das 21 horas será preso como subversivo.
Este aviso é válido apenas para
os salineiros, que passarão a ser identificados
de hoje por diante através do calo no ombro,
próprio da categoria. a) Sargento Antenor.
(Tempo) E atenção um além
das iniciais A. M., ouça esta gravação,
na melodiosa voz do cantor Chico Alves, oferecida
por um outro alguém que se assina com o
singelo pseudônimo de Ferroviário
Viajante. (Música de Chico Alves.)
Cena XI
Sindicato.
Chico, Manuel e Jonas.
CHICO
(Entra, eufórico, com um pacote de panfletos):
Estamos escrevendo as páginas da história
com nossa próprias mãos. O outro
lado da moeda, o lado azinhavado; a outra banda
da lua, a parte que não se conta. É
a maior greve da década. Mossoró
hoje amanheceu parada, completamente. E se Raimundo
Sacristão não tivesse tocado o sino
pra missa das seis, acho que a cidade nem teria
amanhecido(6). Os padeiros pararam; os marchantes,
Jonas, por apelo seu não mataram boi; a
construção civil parou, a estrada
de ferro, a força e luz, tudo, tudo, em
solidariedade aos salineiros. O prefeito não
tem mais quem lhe sirva um copo d`água;
já telegrafou pro governador, o diabo.
JONAS:
Essa alegria também é minha, Chico.
Mas acontece que à medida que a gente avança
fica mais difícil dar o passo seguinte,
porque eles são mais fortes e podem a todo
momento mudar a tática de luta. Descobriram
que nossos boletins são impressos na gráfica
de Zé Martins. A polícia identificou
os tipos. Nosso material, a partir de agora, terá
que ser impresso em Natal ou Fortaleza. Outra:
os Fernandes, Antônio Lúcio e Lages
estão oferecendo recompensa a quem furar
a greve: 500 mil réis a cada um, coisa
que não se ganha num mês. Os judas
que aceitaram estão desfilando com o dinheiro
amarrado nos ferros pra todo mundo ver e seguir
o exemplo. O mau exemplo.
CHICO:
Mas, pelo que eu soube, apenas uns três
ou quatro. Não afetam o movimento.
JONAS:
Realmente, apenas uns três ou quatro, até
agora. (Tempo) Mas o cerco cresce. A polícia
e os patrões agem conluiados.
CHICO:
A classe está firme, Jonas, e vai resistir.
JONAS:
Sim, mas até quando?
CHICO:
Ora até quando! Não demora muito.
Os patrões estão perdendo rios de
dinheiro e sujeitos a perderem mais. Os navios
estão no porto de Areia Branca, atracados
esperando que nós voltemos ao trabalho.
E o tempo conta muito pra eles. A Cia do Comércio
e Navegação ameaça fazer
voltar seus navios, mesmo escoteiros. Nas salinas,
os baldes estão cheios, esperando a colheita.
E logo logo o inverno. Nós estamos com
todos os trunfos na mão.
6 - MAX: Terezinha, Big Ben é o meu homem
- relógio. (...) No dia em que ele, parar,
Terezinha, é capaz de nem amanhecer. (ÓPERA
DO MALANDRO, Chico Buarque)
JONAS:
Eu sei, Chico, eu sei. Mas esse povo precisa comer.
Todo mundo tem família, cada uma maior
do que a outra. E o sindicato não pode
deixar ninguém desamparado. O comando de
greve está ficando pequeno, com tanta gente
presa. O que temos de feijão, farinha e
jabá não vai além de uma
semana.
CHICO:
É o bastante. Os patrões também
não agüentam mais de uma semana.
JONAS:
Não é o que diz O MOSSOROENSE. (Mostrando
o jornal.) Está aqui: "Os honrados
proprietários da cidade não se renderão
jamais às descabidas exigências dessa
horda de vândalos e agitadores pagos por
Moscou..."
CHICO
(muito ironicamente):
... pelo comunismo internacional,
JONAS
(entrando na brincadeira):
... pelo ouro vermelho,
CHICO
(rindo muito):
... pelo materialismo leninista,
JONAS:
... pela agitação anti-cristã
e atéia.
CHICO
(ainda rindo, cai numa cadeira):
Mas também, Jonas, tu querias o quê?
Que o jornal dos Fernandes oferecesse uma noitada
do novenário da padroeira aos operários,
com a Matriz de Santa Luzia rescendendo a bogari
e flor de mufumbo? Tenha paciência. Os lobos
e os cordeiros ainda custarão muito para
pastarem juntos.
JONAS:
Não se pode dizer que eles não evoluíram:
antes, me chamavam de líder operário,
hoje não passo de um agitador comunista.
Eles estão começando a compreender
a luta de classes.
CHICO:
Mais do que o necessário. Eles bem podiam
ser, pelo menos, cafeístas. Mas não:
são parrepistas da pior espécie.
JONAS:
Tudo uma merda só, Chico. Café no
governo repete os mesmos trejeitos dos perré.
Qual a diferença? Os liberais exploram
com mais ternura, vão ao lombo dos trabalhadores
com macacas democratas, prendem e arrebentam civilizadamente.
Isso é diferença? O lanho no corpo
é o mesmo, não importa se causado
pelo rebenque de um coronel perré ou pelas
luvas de um empresário liberal. (Noutro
tom) Lauro esteve essa semana em Natal. Foi decretado
só falar com João Café. Disse-lhe
o diabo. Ele esqueceu muito ligeiro que foi eleito
com votos de operários e que fomos nós,
os Reginaldo, os únicos a garantir-lhe
apoio em Mossoró, num momento em que a
reação o via como um perigoso candidato
de esquerda. É a paga que nos dá.
E é o que merecemos por querer entrar na
política cheirando os fundos da burguesia.
MANUEL
(entra correndo, agitado):
Jonas, prenderam Joel Paulista!
CHICO
e JONAS:
Prenderam Joel?
(Black-out)
Cena
XII
Cândido
Benedito e dois soldados.
Cândido Benedito amarrado, botando sangue
pela boca, nu, de costas.
Soldado 2, um pouco à distância,
come pipocas e lê.
SOLDADO
1 (arrancando-lhe a língua):
Como é, Cândido Benedito, perdeu
a vontade de falar? Hein? Você não
fala, Cândido Benedito, você não
fala, sabe por que? (Mostrando a língua
arrancada.) Porque não tem mais língua.
Taqui a sua arma, sem serventia nenhuma. (Olhando
para a língua.) Bichinha malcriada: disse
tanto desaforo a patrão!... (Cândido,
num supremo esforço, sopra sangue no rosto
do soldado.) A vingança do condenado (Limpa-se,
dá-lhe um tapa): cuspir a justiça.
Não se pode dizer, no entanto, que você
não tem fibra. Tem. (Com um gesto indica
ao outro que está precisando de ajuda.)
Tem muita. (Friamente.) Só que ninguém
mais vai herdar esta fibra! (Arranca-lhe os testículos
e o pênis, e os joga fora. Cândido
grita e desmaia.)
7.
Lauro Reginaldo, irmão de Jonas.
SOLDADO
2:
Está doido?! Jogar este troféu fora!?
Isto aqui é a prova do serviço.
(Coloca o pênis e os testículos num
saco. Amarra-o e dependura-o no cinturão.
Black-out.)
Cena
XIII
Sindicato.
Desce uma tabuleta com a inscrição:
COMITÊ MUNICIPAL DO PCB - 1935
Chico, Joel, Policárpia e Jonas
JONAS:
Camaradas, o Comitê Municipal do Partido
se reúne hoje para iniciar uma avaliação
da situação política nacional,
da organização comunista local e
do movimento de massas da região. A nível
nacional, a situação se apresenta
com o malabarista Getúlio Vargas tentando
se equilibrar em cima de uma corda podre segura
por duas varas de bambu. Se não cuida,
vai ao barro, até porque não existe
rede de segurança. Essa rede poderia ser
a classe operária, mas decididamente essa
não é a política de Getúlio.
Subiu ao poder na esteira de uma revolução
burguesa, que até agora não conseguiu
homogeneizar as forças dominantes, principalmente
no Nordeste. Aqui, com muita força, ainda
vigora o coronelismo, marca maldita do feudalismo
verde-amarelo. O que compete a nós revolucionários,
diante desse saco de gatos? Saber capitalizar
em proveito da classe operária os choques
de interesses evidentes no seio das classes dominantes.
(Pausa. Toma água.) Nas salinas, o movimento
aumentou, em força e abrangência.
O sindicato dos salineiros é hoje um sindicato
respeitado em todo o Estado. É claro que
o nosso avanço significou sacrifícios
muito grandes e perdas irreparáveis. Não
foram poucos os companheiros inutilizados para
o resto da vida pelas torturas de proprietários
e policiais. Algumas derrotas foram varridas por
amplas vitórias. Não somos uma força
política considerável, mas somos
uma força social ameaçadora. Quando
ao Partido, encontra-se bastante atingido nos
seus quadros. Gente do melhor quilate acha-se
na clandestinidade: Manuel Torquato, Zé
Mariano... O julgamento de Chico Bianor deixou-nos
um saldo terrível: muita gente presa sem
ter nada a ver com o peixe, incriminados unicamente
pelo falso testemunho daquela mulher dele.
JOEL:
Mas o pessoal envolvido com a morte do Chico Bianor,
Jonas, fugiu quase todo da cadeia.
JONAS:
Sei, Joel, só que estão sendo caçados
pela polícia. Do mato não podem
sair. E que ajuda os clandestinos podem dar, neste
momento, ao Partido?
JOEL:
É encaminhar logo a guerrilha.
POLICÁRPIA:
Inda mais que os grandes do lugar parece que escutam
o cochicho do diabo. Eles estão se armando.
Vocês sabem que a função das
empregadas domésticas na Associação
das Mulheres é darem conta do que se passa
na casa dos patrões. Pois bem. Têm
chegado baús e mais baús de armas
na casa dos Fernandes e de outros graúdos.
E esses papos-amarelos não são pra
enfeitar parede feito reclame do Almanaque Biotônico.
São pra ter uso. E contra nós.
JONAS:
Certamente. Mas esse é um assunto que exige
calma para ser pensado. Miguel Moreira e o Alemão
estarão chegando em breve, a mando do Partido
para reforçar o núcleo guerrilheiro.
O Alemão é engenheiro, especialista
em sabotagem.
Cena XIV
Alemão e a Amante. Foco sobre eles.
AMANTE
(fatal, passando-lhe a mão no peito, pela
camisa entreaberta):
Você não vai me deixar, Alemão,
isso eu sei. (Meio desesperada.) As cartas me
dizem e os sonhos me confirmam. Você é
o homem que eu jamais tive, mas que todas as experiências
de Santo Antônio me predisseram; pousou
na minha vida e eu não vou permitir que
levante vôo tão cedo.
ALEMÃO
(calmo):
Você está falando pra se consolar,
porque sabe que eu vou.
AMANTE
(trágica):
Cadê suas entranhas? Você não
tem coração. Não me ama nem
nunca me amou.
ALEMÃO:
Não diga isso. Não me acuse do que
você não compreende. Amar não
é prender nos braços, tecer laços
que aprisionem; é, ao contrário,
ajudar o outro a cortar as amarras que o prendem
longe de seu destino. Que estranho amor é
esse que para manter perto de si o ser amado carece
de gaiola?
AMANTE:
Cale a boca, Alemão. Suas palavras podem
ter muito sentido para quem usa a cabeça
como guia do amor; para quem usa o coração
elas não dizem nada. (Pausa) Eu me guardei
toda para você, Alemão, pro homem
que eu sabia que viria, porque o vento me anunciara.
Não sabia quem era nem sabia do seu rosto,
mas adivinhava seu fogo e sua gulodice na cama.
Veio você, um querubim louro que incendiou
minha vida e desarrumou para sempre a rota dos
meus dias. Meus seios nunca se endureceram tanto
pra homem nenhum, Alemão. Quer prova maior
de amor?
ALEMÃO:
A prova maior é você me deixar seguir
livre.
AMANTE:
Livre pra quê? Pra você se enroscar
no seu destino de redemunho, que só conhece
curvas e nenhuma linha reta? Que revolução
é essa que você prepara, Alemão?
A revolução você já
faz dentro de mim.
ALEMÃO:
Você não iria entender. Nunca. Ninguém
entenderia. Pensa que eu também não
sonho com a calma, o mar sereno a espelhar barcos
luzentes, uma casinha doce sacudida por pássaros,
filhos, filhos transparentes voando no ar da manhã,
e você, você no leito guardada pra
minha fome? (Outro tom.) Mas meu destino é
mar revolto, onda seca sobre pedras de ponta.
É preciso aplainar montanhas, destruir
as cercas que aprisionam o homem.
AMANTE:
Você cavalga uma ilusão de cinzas,
Alemão. Sempre haverá alguém
a levantar cercas, turvas águas claras,
ondular a correnteza mansa e nublar a alvorada.
ALEMÃO:
Que haja. Mas também haverá sempre
alguém a tentar impedi-lo. Eu já
vou.
AMANTE:
Isso não vai dar certo, Alemão:
ALEMÃO:
Você não é a história.
AMANTE:
Seu lugar é ao meu lado.
ALEMÃO:
Meu lugar é ao lado do povo.
AMANTE:
Eu vou com você, então.
ALEMÃO:
Seria o pior dos males. Você estaria entregue
a um homem e não a uma causa. Duas coisas
que não se podem confundir.
AMANTE:
Você abraça uma ilusão. Abrace-me.
Eu, pelo menos, sou real.
ALEMÃO:
Talvez menos do que a certeza da revolução.
Você é o fim de muitos sonhos enlinhados
e desfeitos.
AMANTE:
Você me ama?
ALEMÃO:
Como nunca amei mulher nenhuma. Adeus! (Vai saindo.)
AMANTE
(grita):
Alemão!
(Alemão pára. Cantam - Gemido de
Dois)
ELA:
Você não vai me deixar
não seja louco, Alemão.
ELE:
Quem fala é seu coração
mas só pra se consolar
ELA:
Você não pode voar
tem que viver preso a mim
ELE:
Mas isso seria o fim
de quem quer revolução
ELA:
Homem, deixe de ilusão
ELE
e ELA:
Ai, ai - ui, ui
gemer de dois é assim
ELE:
Vou me embrenhar no sertão
lutar pela igualdade
ELA:
Amor, paz e liberdade
tem tudo no meu colchão
ELE:
Você é satisfação
o povo é princípio e fim
ELA:
Não seja louco nem ruim
desprezando quem o ama
ELE:
A história é quem me chama
ELE
e ELA
ai, ai - ui, ui
gemer de dois é assim.
(corte. Os dois, distantes, olhando uma lembrança
qualquer do outro.)
ELA:
É muito triste o meu drama
o meu amor foi embora
ELE:
Guerrilheiro briga e chora
com saudade de quem ama
ELA:
Fugiu, deixou minha cama
com meus lençóis de cetim
ELE:
Espinho, pedra e cupim
hoje beijam minha face
ELA:
Ah, se meu amor voltasse
ELE
e ELA
Ai, ai - ui, ui
Gemer de dois é assim.
ELE:
Meu amor é minha classe
porém o meu peito dói
ELA:
Não pensei que meu herói
meu grande amor me deixasse
ELE:
Aonde a revolta nasce
o bredo cobre o jardim
ELA:
Meu amor, meu querubim
como uma louca te chamo
ELE:
Estou aqui, mas te amo
ELE
e ELA
Ai, ai - ui, ui
GEMER DE DOIS É ASSIM.
Cena XV
A
reunião da cena XIII
JONAS:
Sei, de antemão, que a proposta de Miguel
Moreira é que, diante do número
de clandestinos existentes, a guerrilha deve começar
já.
CHICO:
Mas isso é um contra-senso. A revolução
comunista está sendo preparada para estourar
em novembro, em todo o Brasil. (Didático)
Temos que fazer coincidir a explosão da
guerrilha com o levante nacional. A guerrilha
será o braço armado do governo proletário
que se instalará no Estado.
JONAS:
Um fato, Chico, é incontestável:
o cerco se adensa.
CHICO:
Mas não de forma aberta e declarada. Não
devemos antecipar a história. Principalmente
quando não temos forças para fazê-lo.
JONAS:
Uma coisa me tranqüiliza, porém: é
que temos muitos militares envolvidos no movimento,
inclusive do Tiro de Guerra de Mossoró.
CHICO:
A mim não. Me tranqüilizaria saber
que não ficaríamos isolados. Deflagrar
a guerrilha agora é nos colocarmos como
presa fácil. Claro que conseguiremos sem
muito esforço 60 homens para os quadros
guerrilheiros. Mas, e depois? Munição,
alimentação... Certo, muitos fazendeiros
ajudarão, uns por simpatia, outros por
covardia e medo. Só que a repressão
virá com tal força que será
fácil confundir mesmo aqueles que nos têm
simpatia.
JONAS:
Naturalmente, não será o Comitê
Municipal quem irá decidir aqui e agora
se a guerrilha deve começar logo ou não.
Essa decisão deve ser a decisão
de todos os comunistas de Mossoró.
CHICO:
Exatamente. Quando será a Assembléia?
JONAS:
Hoje mesmo.
CHICO:
Aonde?
JONAS:
Na sua casa, de madrugada.
Fim
do 2°. Quadro
3°. QUADRO: A GUERRILHA
Cena
I
Gravação
num estúdio de tv. Agitação
de estúdio: técnicos cruzam a cena
testam instrumentos, etc.
Diretor, Edgard, Técnicos.
DIRETOR
(entra com uma prancheta numa mão e na
outra, um copinho de café):
Um momentinho, gente, por favor. Vamos gravar
agora o depoimento do escritor Edgard Barbosa.
(Para o escritor.) Não se preocupe com
a câmara, professor, olhe sempre nesta direção,
que o câmara se encarrega de pegar o melhor
ângulo. Não ligue pros microfones.
(Pros técnicos.) Mais luz! (Mais luz. Tempo.
Examina o escritor) Um momentinho. (Chama.) Maquiagem!
Tudo entendido, né? Um, dois, três,
gravando!
EDGARD
(sentado por trás de uma mesinha):
O ano era o de 1935. O mês, o de Santana.
Sob o governo do sr. José Lagreca, irrompeu
na Várzea do Açu, com irradiação
por outros lugares vizinhos, um movimento de caráter...
(Reluta em dizer o nome)... comunista. (Cospe.)
A insurgência de tal bando armado, liderado
pelo bandido Manuel Torquato e pelo facínora
Miguel Moreira, deveu-se muito mais ao ambiente
político e à confusão reinantes
naquele ano de 1935 do que ao entusiasmo do povo
pelas doutrinas vermelhas. O bando armado se compunha
de homens rudes, analfabetos e dispostos a todas
as modalidades de crime. Era o cangaceirismo acoitado
à sombra de uma bandeira que encarnava
um credo exótico. Em nome das idéias
de tal credo, os malfeitores puseram em xeque
as forças policiais de Açu, Angicos,
Santana de Matos e Macau. Inúmeras depredações
e saques cometeu essa gente por toda parte onde
pôde exercer o seu terrorismo. Tendo se
levantado nos dias 5 e 6 de julho de 1935, lançando
proclamações e desafios contra o
governo, os... comunistas da Várzea do
Açú e de Mossoró fizeram
uma verdadeira rebelião, que aliás
constou do relatório de um representante
brasileiro em uma das sessões da III Internacional,
reunida em Moscou. (8)
DIRETOR:
O quei! Corta. (A cena se imobiliza. Som de fita
voltando. Quando soltam a fita gravada, o som
sai completamente distorcido: chiados, rotação
alterada, etc. Black-out.)
8 - Trecho - pouquissimamente alterado - do livro
História de Uma Campanha, de Edgar Barbosa,
pág. 189.
Cena
II
Luz
sobre Manuel Torquato, Feliciano e Miguel Moreira,
que estão estáticos e arrumados
como numa fotografia. Todos armados. Manuel veste
uma farda de tenente-coronel. Miguel Moreira tem
um olho cego, resultado dum acidente com arma.
MANUEL
(agitado):
Bandidos! O nome flutua fácil nas bocas,
ácido pegajoso. É assim que nos
chamam: bandoleiros. (Segurando O MOSSOROENSE)
E não é só o jornal dos Fernandes
não. Também o povo. Um dia desses
uma velha quase me come com os olhos de caninana.
E não teve medo de chamar nós todos
de bandidos: "Olha o magote de bandido!"
Eu disse: "Dona, dobre a língua, a
gente não é bandido não.
Procure de Macau a Mossoró um trabalhador
a quem a gente, fez mal e me mostre. Agora, a
fazendeiros exploradores já fizemos. Repare
que quem é bandido não escolhe vítima".
MIGUEL:
O povo, Manuel, pobre e humilhado, para pensar
se vale da cabeça do rico. É por
isso que dá essas.
FELICIANO
(ajeitando um rifle):
Bandido nem tanto, comandante, o povo chama mais
a gente é de cangaceiro.
MIGUEL:
E qual a diferença, Feliciano, entre uma
coisa e outra?
FELICIANO:
Tem e não tem. Cangaceiro é bandido.
MIGUEL:
E bandido é bandido. Ponto final. A bandido
a única caridade permitida é a presença
de um padre na hora da morte, pra lhe tomar a
confissão e recolher o arrependimento por
ter sujado sociedade tão santa. É
assim que os grandes pensam, é assim que
os pequenos falam.
FELICIANO:
O povo acha Manuel Torquato um cangaceiro diferente.
MANUEL:
Diferente como? Que toma dos ricos e dá
aos pobres, como Robin Hood? Nem isso. O povo
não nos entende, esta é que é
a verdade. Lutamos por ele e ele nos dá
as costas.
MIGUEL:
Não seja injusto, Manuel! Este bando é
o primeiro grupo guerrilheiro da América
do Sul formado unicamente por camponeses e operários.
E já contou com mais de 60 homens. Isto
é muita coisa no meio de tanta miséria,
medo e sujeição aos coronéis.
E mais guerrilheiros não tivemos porque
não há como armar a todos.
MANUEL
(Tempo. Pausadamente):
Sessenta homens. No meio dos 60, muitos oportunistas,
alguns covardes, um ou outro frustrado, que abraçou
a luta porque não tinha outra coisa para
abraçar, nem corpo de mulher - e não
deixa de haver também algum traidor.
FELICIANO
(cortando, ríspido):
E muitos idealistas.
MIGUEL:
E muitos idealistas. Uma revolução
se faz com justos, certamente, mas não
com santos. O mundo é imperfeito demais
pra que queiramos homens perfeitos brotados dessa
podridão.
MANUEL:
Com tudo isso, ainda me dá raiva. Eu pensei
que matando um fazendeiro ruim e mais outro e
mais outro, e nenhum trabalhador, o povo tiraria
daí as suas conclusões. E diria
se somos bandidos ou revolucionários. Mas
nosso povo é tão besta que chora
com um desespero de fim de mundo a dor de qualquer
um desses fazendeiros da região, como se
fosse a sua própria dor. Nem percebe que
suas dores não se confundem. É a
vítima morrendo torturada e chorando pela
saúde fraca do carrasco.
(Tempo.)
MIGUEL:
Um outro talvez temesse você, Manuel, no
estado de espírito em que se encontra.
Eu não. Prefiro-o assim, humano, arrastado
pela maré da dúvida e sem a pose
divina dos heróis, se bem que a luta, a
certos momentos, requer pulso forte e ausência
de vacilações. Você duvida.
E isso o põe fora do lado do fanatismo.
O fanatismo é a ausência de dúvidas.
Quero meus heróis assim, com a broca da
dúvida no centro de suas certezas. Todos,
até Jesus Cristo, (Tempo, ri.) Como você
vê, assim nasce o marxismo na caatinga,
com o nome de "novo evangelho" e com
um marxista que coloca Jesus Cristo na galeria
de seus heróis, lado a lado com Marx e
Lênin, talvez no mesmo altar.
MANUEL:
Acostume-se a isso, Miguel Moreira. Este país
é diferente. E também nós
não escapamos à diferença.
Os comunistas aqui têm oratório em
casa, rezam o terço e guardam O Capital
na mesma estante em que guardam a Bíblia.
MIGUEL
(Tempo):
Vamos dormir. Amanhã é outro dia.
Um novo dia. O novo é sempre uma esperança.
MANUEL:
Vão vocês. Eu fico mais um pedaço.
MIGUEL
(preocupado):
Por que?
MANUEL:
Não estou querendo dormir sem sono, apenas
isto. Ontem acordei sobressaldo. Um pesadelo.
E um mau presságio.
MIGUEL:
Você acredita nisso?
MANUEL:
Somente quando há motivos para acreditar.
E hoje eu os tenho. Sonhei com um copo de sangue
quente. Eu bebia. Dentro pulsava um coração.
É morte de gente muito chegada. Talvez
a minha mesmo que se aproxima.
MIGUEL:
Não seja trágico. Um sonho é
um sonho.
MANUEL:
O cerco se fecha. Nessas condições
não é difícil predizer o
futuro.
Cena
III
Um
Velho. Luz sobre ele.
VELHO:
Em três Vinténs foi o primeiro combate
da guerrilha. Três Vinténs fica pras
bandas do Canto do Junco, em Mossoró. Lá
moravam Feliciano e Marcolino. Prenderam a família
deles: mulher e filhos. A polícia. Eles
vinha fazer uma visita à família.
O bando ficou assim mais embaixo, no meio dum
mato alto, o choro dos meninos e o clamor das
mulheres, na volta da polícia. Aí
juntaram na carreira, pra trás, em procura
do restante da turma. Quarenta e três homens.
A polícia, quando viu a carreira deles,
juntou atrás. Mas aí encontrou foi
muito cabra macho, mosquetão e fuzil. O
couro comeu e a polícia escafedeu-se. (Tempo)
Três Vinténs. O primeiro combate.
Teve outro no Alto do Louvor. Contra uma ronda
de dez praças, famosa em açoitar
salineiro que fosse visto nos paredões
depois do toque de recolher.
Cena
IV
Duas
mulheres batendo roupa no riacho. Soldados.
MULHER:
Aí eu ouvi foi o converseiro na estrada
e marquei que só podia ser eles. Foi quando
Manoel Torquato bateu na porta chamando o pai.
Eu me levantei e fui olhar. Eles não entraram
não. Pelo claro da lua vi o Alemão.
Tão bonito. Assim mesmo como o povo diz.
Parece um anjo, desses querubins. (Tempo.) Eles
só queiram farinha e rapadura. Pai deu,
eles foram embora, pras bandas de Açu.
(Tempo.) E deixaram meu coração,
em sobrosso, se mexendo numa poça de saudades
e lembranças atiçadas. (Levanta-se,
caminha sonhadora.) Não vou dizer que vi
muito - a lua não ajudou. Mas o que vi
bastou pra botar em desordem meu coração,
varrer de meus olhos o sono e me desassossegar
pelo resto da noite e, quem sabe, pelo resto dos
meus dias. Quando cuidei, os galos cantavam pra
desatar o claro do dia, e eu ainda estava com
os olhos tesos, o corpo mole, sem atinar pro tempo,
afogada naquela lembrança de cometa: os
olhos do Alemão e sua cabeleira encaracolada
como a de um anjo do mês de maio. (muda
a vista, bate o pé com raiva.) Ai, meu
Severino do Ramo, ninguém pode mais nem
conversar descansada que esse oco do mundo agora
foi descoberto. É um reboliço dos
inferno; não sossega um instante. Lá
vem a polícia.
SOLDADO
(entrando):
Estamos aqui em busca do rastro do bando de Manuel
Torquato. A mocinha sabe dizer se eles passaram
por aqui?
MULHER:
Se passaram não é do meu conhecimento
não, seu praça.
SOLDADO:
E esses rastros de animais, na estrada?
MULHER:
Foi um bando de cigano, ontem de tardezinha.
SOLDADO
(com uma faca, em cima da moça):
A mocinha não está mentindo não,
não é?
MULHER:
Eu mentindo? Pela hóstia consagrada. (Beija
os dedos, indicadores, em cruz.) Eu quero cegar,
se não for verdade.
SOLDADO:
A mocinha sabe o que é que acontece com
quem mente pra polícia, não sabe?
MULHER:
Sei não, que nunca escapou ninguém
prá contar!...
(Black-out)
Cena
V
Em
roda, um a um, girando, colocam-se sob foco para
recitar os textos que se seguem.
Miguel, Manuel, Mariano e Feliciano.
MIGUEL:
A infância. Um rio corria entre os dedos,
penetrava na alma e eu me enchia de claridades
matinais. Havia campos intermináveis bordados
de perfumes. Eu era criança e isso explicava
tudo: o mundo era grande e a vida, uma montanha
de açúcar que se derretia em minha
boca. Até que me revelaram esse segredo
avassalador: "Você é um homem".
O que quer dizer muita coisa. (Canta - Brasil
Caboclo.)
Na
minha bonita infância
um rio enchia meu peito
a minha alma era um leito
o estuário era a ânsia;
nunca a água da ganância
formou remanso ou porão
cresci e o ribeirão
acabou com toda a água
e passou pra mim a mágoa
DE MÃE PRETA E PAI JOÃO.
MANUEL:
Este chão seco e batido, encharcado de
salitre, que expulsou de suas entranhas até
o pirrixiu, só dá mesmo duas coisas:
raiva e desengano. Quem esfola esses tabuleiros
em busca de produção só encontra
tragédia no caminho de sua fome: o fuzil
latifundiário, a mão paga do jagunço
e a bala roçadeira que colhe a vida pelo
tronco, ainda da vez. Aqui as escolas são
poucas e fracas, e quem aprende a escrever é
somente para fazer chegar mais longe a notícia
de sua desgraça. Fora polir enxada no gume
das pedras, resta o serviço nas salinas.
Aí o sal racha os pés, seca a pele,
acaba com a vista. E o ombro cresce com o calo
destampado pelo balaio nas costas. Pele de salineiro
se conhece de longe - é couro curtido no
fogo lento da maresia.
MARIANO
(canta):
Pouca é a terra plantada
pouca a força de quem planta
a terra do rico é tanta
pro pobre não sobra nada.
E da safrinha minguada
meia ou terça é do patrão;
quem cuida da criação
tem a sorte pra pagar.
Estamos no mesmo azar
DE MÃE PRETA E PAI JOÃO.
Às
vezes eu mesmo me pergunto por que estou aqui.
Por que defendo com a rapidez quente da bala o
direito estraçalhado dos fudidos.
FELICIANO
(canta):
Hoje o medo é quem me guia.
Não o medo de morrer
mas o medo de viver
escravo da burguesia;
é medo da tirania
medo da escravidão
da miséria, da prisão,
da tortura, do degredo.
É aquele mesmo medo
DE MÃE PRETA E PAI JOÃO.
Por
medo. Estou aqui por medo. Foi sempre o que me
guiou. De morrer não. De viver, talvez.
O pavor do medo cravado na alma com dentes de
cachorro doido na força da lua. Medo do
medo. Medo só. (Alto, com raiva.) E não
perguntem mais que eu não sei dizer.
Cena VI
Estúdio
de tv - o mesmo da cena I, sem a movimentação
do início.
Apenas o escritor.
EDGARD:
No dia 2 de janeiro de 1936, um encontro do bando
de Manuel Torquato com o fazendeiro Artur Felipe
e forças policiais, no sítio Canto
Comprido, em Açu. A luta foi relampejante
e furiosa. Cessado o fogo, o campo apresentava
um aspecto taciturno e comovente. (Exageradamente
dramático.) As juremeiras decepadas a meio,
um corpo lavando a terra com o sangue totejante,
e mais adiante... mais adiante um cadáver
estrangulado, com o peito aberto a golpes de sabre.
(Pausa) Artur Felipe Montenegro era a vítima.
DIRETOR
(de dentro):
Corta!
Cena
VII
Cego
pedindo esmola.
CEGO
(balançando uma moeda na lata):
Uma esmolinha, cristãozinho de Deus. Mais
tem Deus pra nos dar. (Canta, tentando improvisar.)
"Que mais tem Deus pra nos dar"... (Balança
a lata, solfeja arranhando uma outra música,
como se procurando um tom melhor para cantar.
Pára.) Estão falando de Manuel Torquato
cristãozinho? Falam da morte de Artur Felipe,
não é?
Conheço essa história, do pé
à ponta. Contam o que não houve.
Não contam o massacre da família
de Manuel. Incendiaram a casa, uma casinha de
taipa, não queriam deixar semente dos Torquato
sobre a face da terra. Sebastião Silvestre,
pai de Manuel, um velho de 80 anos, e dona Bembem,
a mãe, com 78 anos, foram assassinados
dentro de casa. Da raiva dos Montenegros, escondida
embaixo dum fogão de lenha, escapou somente
uma mocinha que era companhia dos velhos. Mataram
até as galinhas e as criações
que estavam pelo terreiro.
Cena
VIII
Na
caatinga.
Manuel e Miguel.
MANUEL:
São dois mortos dentro de mim. Gravidez
de ódio. Sangue que não descansa,
agitado por marés de revolta. E descansará,
quando for vingado, gota por gota.
MIGUEL:
Você não pode se confundir com um
Lampião qualquer, Manuel. Você é
um guerrilheiro, um revolucionário comunista.
Não pode se deixar guiar pelo ódio
e pela vingança...
MANUEL:
... mas pelo amor e pela justiça. Sei disso,
Miguel. E você é testemunha de como
transformei isto na verdade da minha vida. Se
matei e se ainda me encontro disposto a matar
é para provar amor pelos que morreram e
morrem roubados de qualquer gesto de defesa. O
amor, pra ser provado, carece às vezes
de violência. A tudo isso agora eu junto
o grito de dois mortos muito próximos:
meu pai e minha mãe. Trucidados, mortos
a coronhadas de rifle e lapadas de facão.
A casa incendiada. A vingança terrível
dos Montenegros pela morte de Artur Felipe. A
luta de classes até agora estava no meu
terreiro. Com essas duas mortes pulou pra dentro
de casa.
MIGUEL:
Entendo sua dor. Mas insisto em que ela não
deve nublar sua vista.
Cena IX
O
Cego da cena VII
CEGO
(Canta.):
Artur
Felipe morreu
acusam Manuel Torquato
mas eu vou contar o fato
do jeito que aconteceu:
um açude por detrás
na frente dos policiais,
Artur feito um coronel;
deu bala, não teve jeito,
matara de peito a peito
o fazendeiro cruel.
Artur
atrás de imbuança
gritava até pelo mato
que invadia o sindicato
degolava a liderança.
Ele pensou que era fácil,
não viu que a luta de classe
é fuzil contra fuzil;
com seu instinto de bicho
desapareceu no lixo
da história do Brasil.
Cena X
Volta a cena VIII.
Mais Feliciano.
MIGUEL:
Espalharam que Artur Felipe foi torturado antes
de morrer.
MANUEL:
E o povo acreditou.
MIGUEL:
O povo acredita em muita coisa. Acredita que você
se invulta.
MANUEL:
É, o povo acredita em muita coisa.
FELICIANO
(entra):
Comandante, vem vindo uma volante lá embaixo.
Coisa pra mais de trinta soldados.
MANUEL:
Eu não quero enfrentamentos com a polícia.
Por enquanto. É a recomendação
do Partido. Não podemos espantar a caça.
(Grita.) Vamos arribar, minha gente, tem raposa
rondando o galinheiro. (Para Feliciano.) Me chame
o Alemão, Feliciano, quero ele perto de
mim.
Cena XI
Redação de O MOSSOROENSE.
LAURO:
Redação de O Mossoroense, jornalista
Lauro da Escóssia. 28 de novembro de 1935.
Durante 4 dias os comunistas dominaram a cidade
de Natal. O movimento somente hoje foi contido,
graças ao apoio das forças restauradoras
enviadas pelos governos da Paraíba e Pernambuco.
Instalados na capital, os revoltosos ensaiaram
um governo popular, uma república vermelha,
com hino, bandeira e jornal oficiais. Sapateiros,
alfaiates, barbeiros e soldados estiveram à
frente do novo governo, ocupando ministérios
e outros poderes. O governador do Estado, Dr.
Rafael Fernandes, nos primeiros momentos do levante,
encontrava-se no Teatro Carlos Gomes presidindo
a colação de grau de mais uma turma
da Escola Doméstica. Saiu da solenidade
às pressas, em busca de refúgio.
O movimento armado, em Natal, contou com o apoio
do 12°. Batalhão de Caçadores.
O plano dos revoltosos era promover a insurreição
em todas as capitais do país, contando
para isso com o apoio de alguns comandos militares.
O intento não foi conseguido por causa
de uma pequena confusão ocorrida na transmissão
da senha.
Cena XII
Na
caatinga.
Manuel, Chico, Miguel e Feliciano.
MANUEL:
É isso mesmo, Chico Guilherme? O poder
em nossas mãos durou apenas 4 dias?
CHICO:
É verdade. Triste resultado, mas é
a verdade. Perdemos uma batalha.
FELICIANO:
Uma batalha não. Perdemos a guerra, pode
dizer.
MANUE
(ignorando Feliciano):
E depois?
CHICO:
Você pode imaginar, né, Manuel? Em
Natal não ficou nenhum dos nossos, uma
debandada geral, cada qual procurando meios de
escapar. A repressão, violenta. E não
havia razões para sacrifícios inúteis
e martírios sem conseqüência.
O nosso plano, tanto tempo tecido, falhou. Um
pequeníssimo erro de interpretação.
Uma data entendida erradamente. Companheiros estão
pagando com a vida o preço do terrível
engano.
MANUEL:
A repressão deve estar de boca cheia. Nessas
horas, cada homem é um suspeito. Eles agora
encontram desculpas pra sua sede de sangue.
CHICO:
Vasculham cada rua, penetram em cada casa, chafurdam
todos os quartos. Foi difícil sair de Mossoró
e chegar até aqui.
MANUEL:
Você se arriscou muito.
CHICO:
Não mais do que se estivesse em casa. Arrisquei
também a vocês. Não há
mais segurança em lugar nenhum. Aos membros
do Partido restam dois caminhos: a prisão
ou a clandestinidade.
MIGUEL:
Você já é um clandestino,
então?
CHICO:
Ainda não. Não há nenhuma
prova contra mim. Apesar das torturas, os companheiros
presos não denunciaram ninguém.
Não há acusação formal
contra mim. Até agora. E a polícia
não tem nenhum documento nas mãos
para provar nossa militância no Partido.
O fichário, a mulher de Joel Paulista enterrou
no quintal, quando soube do desastre que foi o
levante. A polícia revirou a casa de Joel,
palmo por palmo, e não encontrou documentação
nenhuma.
MANUEL:
E em sua casa?
CHICO:
Nada, também. Foram, mas não encontraram
nada.
MIGUEL:
Você também enterrou?
CHICO:
Salvei-me sem enterrar.
Cena XIII
Casa
de Chico Guilherme.
Chico, Clara, Tenente, Filho, Soldados.
TENENTE
(gritando de fora):
Chico Guilherme, é a polícia. Tenente
Alcebíades. A casa está cercada.
Abra a porta que eu vou revistar.
CHICO
(pula da cama. Baixo):
Meu Deus! A polícia (Para a mulher, deitada
na cama.) E agora, Clara?
(Alto) Tenente, eu não abro não.
É uma hora da madrugada. A constituição
garante a inviolabilidade do lar. Espere o dia
amanhecer que eu abro.
TENENTE:
A estas alturas, com a anarquia querendo se apossar
do país, não há mais constituição
nem lei nenhuma. Quantos homens tem em casa?
CHICO:
Só um, tenente: eu. (Olhando para o filho.)
Tem outro, mas não está nem com
um mês. É meu filho. E tem também
minha mulher, que está de resguardo. (Baixo)
Levanta, Clara. Eu vou botar as bombas debaixo
da cama. As granadas, rifles, tudo. (Vai pondo
todo esse material embaixo da cama, que fica com
a grade um pouco mais alta.) É preciso
ganhar tempo, Clara. Fale aí com ele, enquanto
eu termino.
CLARA
(em pé com a criança nos braços):
Tenente, aqui só tem uma mulher de resguardo,
uma criança de peito e um homem sem defesa
nenhuma. Respeite a lei. O senhor outras vezes
já deu mostras de ser um homem. Não
manche seu nome.
TENENTE
(um pouco embaraçado):
O momento agora é outro, dona Clara. O
governo está sob ameaça. (Tempo)
Se não abrirem, eu vou arrombar a porta.
Vou contar até 3. Um... (Conta espaçadamente,
coincidindo "3" com o final da fala
seguinte, de Chico.)
CHICO
(ainda escondendo as armas):
É um risco, Clara, mas se eles encontram
este arsenal aqui, a prisão e a morte são
uma certeza. Vale trocar a certeza pelo risco.
(Alto) Arrombe, tenente, quem está atrás
de um fuzil pode aprovar e desaprovar qualquer
lei com muita facilidade.
(A
polícia arromba a porta. Vasculha o quarto,
a casa. Não olha embaixo da cama, onde
está deitada dona Clara amamentando a criança.)
TENENTE:
Nada, Chico, pra sua felicidade, porque disseram
que a casa estava cheia de armas. (Sai com os
soldados. Black-out.)
Cena XIV
Caatinga.
Volta à cena XII.
MIGUEL:
Você poderia ter explodido a casa inteira.
Com seu filho e você próprio, inclusive.
CHICO:
Deus é comunista, tenho certeza. Valeu
o risco.
MANUEL:
Muito risco. O mesmo que deu conta de Sebastião
Cadeira. Inventou de carregar a cintura cheia
de bombas grandes. A merda de um tiro achou de
acertar mesmo no pino de uma. Tem coisa que não
dá pra entender. Logo ele!?... (Tempo)
Minha gente, e agora?
MIGUEL:
É a pergunta de todos nós, Manuel.
Você a faz porque cabe a você, como
chefe, fazê-la. Mas desde o momento que
Chico Guilherme chegou aqui com essa notícia
escura, essa pergunta nos mói por dentro.
MANUEL:
O grupo não tem mais munição,
quase.
CHICO:
E a polícia tomando conta das estradas
é impossível passar qualquer coisa
pro grupo. Houve denúncia contra simpatizantes
que contribuíram com armas, inclusive contra
o deputado de Alto Santo. Presos ou não,
é difícil que eles continuem a manter
a ajuda.
MIGUEL:
Isto é um fato. Mais um. E é necessário.
Chico, que você diga tudo. Sem receios.
Precisamos tomar uma decisão, que precisa
ser a melhor decisão. Não adianta,
neste momento, desespero infantil. O pavor é
inútil, não contamina o inimigo.
FELICIANO:
É terminar tudo, acabar com tudo, cada
um ir pro seu canto e passar uma esponja nas lembranças
que resistirem.
MANUEL:
Não é assim não, Feliciano.
Você não ouviu o que Miguel disse?
Nenhum de nós aqui é inocente. Há
uma lei e nós a subvertemos. Há
um preço pela transgressão. Aos
vencidos os vencedores mandam a conta, e é
terrível o preço cobrado. Se algum
de nós é inocente e desconhece estas
evidências, não conte com o perdão
da História - se ela der conosco um dia.
A História não tolera inocentes.
(Tempo) A guerrilha se isola. Do Partido, inclusive,
que, conforme o depoimento de Chico Guilherme,
se esfacela. Compreendo que é impossível
sobrevivermos isolados. Insistir é oferecer
a cabeça para que um bando insano de policiais
carniceiros passem de cabo a sargento, e de tenente
a capitão. (Silêncio. Baixo, calmo.)
Minha opinião é dividir o grupo
de uma em uma parelha, espalhar-se, tentar furar
o cerco da polícia, ganhar o Ceará,
Piauí, onde a repressão se abranda,
e cair na clandestinidade. Para sempre ou enquanto
durar esse governo. (Espera que alguém
se pronuncie. Tempo.) Eu vou com Feliciano. Quero
passar em casa e ver a família antes de
mergulhar no mundo. É possível chegar
lá, Chico?
CHICO:
É possível. Com um bom disfarce.
(Luz cai em resistência. Despendem-se, saem.
Ficam Manuel e Feliciano. Manuel ajeita o fuzil.
Pega algumas coisas, levanta-se e sai. Some do
palco. Feliciano faz a mira na direção
em que Manuel saiu e atira três vezes. Grito
de Manuel e baque. Feliciano fica rígido
no meio do palco. Grito, histérico, de
fora: "Feliciano matou matou Manuel Torquato!"
Entram os soldados arrastando o corpo e o põem
na posição de tirar foto. Idem cena
do Prólogo.)
EPÍLOGO
Os
atores cantam - coqueiro da Bahia.
Não
houve final feliz
o drama virou tragédia
não deu pra tomar a rédea
do poder, de quem explora.
Hoje a pátria ainda chora
mas há de sorrir um dia
COQUEIRO DA BAHIA
QUERO VER MEU BEM AGORA
QUER IR MAIS EU, VAMO
QUER IR MAIS EU, VAMBORA
Sindicato
do Garrancho
foi retalhado de bala
mas sua voz inda fala
na casa que a Luta mora
pois quem briga hoje se escora
na mesma filosofia
COQUEIRO DA BAHIA
QUERO VER MEU BEM AGORA
QUER IR MAIS EU, VAMO
QUER IR MAIS EU, VAMBORA
Manuel
tá na Nicarágua
El Salvador, Cuba e China
em Angola e Palestina
porque aonde o pau tora
é prova de noves fora
da mesma "ideologia"
COQUEIRO DA BAHIA
QUERO VER MEU BEM AGORA
QUER IR MAIS EU, VAMO
QUER IR MAIS EU, VAMBORA
Vila
Amazonas, 21 de março de 1985.
01
- CHICO GUILHERMO
Foi presidente do Sindicato dos Salineiros de
Mossoró, de 46 a 50. Preso duas vezes:
de 36 a 37, cumprindo pena na Ilha Grande, no
Rio de Janeiro, e de 38 a 39. É motorista
de taxi em Mossoró, onde mora com dona
Francisca Clara, sua mulher. Está com 74
anos.
02
- CÂNDIDO BENEDITO
Mossoroense, foi o segundo presidente do Sindicato,
iniciando o mandato em 1932. Mora em Fortaleza.
03
- JOEL PAULISTA (Joel Martins do Nascimento)
Tem 77 anos, vividos em Mossoró, onde nasceu.
Foi duas vezes presidente do Sindicato: em 34/35
e em 55 (interinamente). Preso duas vezes: em
dezembro de 35, condenado a dois anos de prisão,
cumpridos na Ilha Grande, ao tempo de Graciliano
Ramos; e em 64, cumprindo um ano.
04
- POLICÁRPIA
Presidente da Associação de Mulheres
Trabalhadoras de Mossoró. Foi presa em
36, acusada de insuflação. Organizava
paneladas e grandes festas, a fim de levantar
dinheiro para o Partido. Morreu fora de Mossoró.
05
- ALEMÃO (José de Alencar)
Carioca, chegou em Mossoró em 35, com mais
ou menos 24 anos. Era engenheiro, especialista
em explosivos. Foi fuzilado no sítio Cigano,
ao pé da Serra Mossoró, pelo sargento
Francisco Felício (Chico Zaza), em 36,
depois de dissolvido o grupo guerrilheiro.
06
- MIGUEL MOREIRA
Natural de Angicos/RN. Era rábula. Último
resistente do Grupo. Foi preso em 36, cumprindo
5 anos de prisão em Natal.
07
- FELICIANO PEREIRA DE SOUZA
Entregou-se à polícia após
matar Manuel Torquato, tendo antes passado na
casa da família Fernandes. Cumpriu 5 anos
de prisão, em Natal. Foi morto em Ceará-Mirim
(RN) por um soldado.
08
- JOSÉ MARIANO (Luiz Manuel da Silva)
Sua militância no Partido foi quase toda
na clandestinidade. Usou os nomes de Zé
Mariano, Antônio Martins, além do
nome de guerra assumido dentro do Partido: Pirajaba.
Foi soldado do exército, tendo participado
de uma rebelião. Em João Pessoa
(PB), matou um policial integralista, durante
um comício. Vendia pão-de-milho
em Mossoró. Esteve envolvido na morte de
Chico Bianor (14/10/34), feitor de uma salina
em Areia Branca. Chico Bianor tinha ameaçado
arrancar-lhe os dentes. Foi morto pela polícia
em 36, em Limoeiro do Norte (CE).
09
- JONAS REGINALDO
Morreu em 74. Junto com os irmãos Raimundo,
Lauro e Glicério compunha um núcleo
de intelectuais ativos no meio operário
mossoroense e ligados ao PCB. Era marchante.
10
- SEBASTIÃO CADEIRA
Guerrilheiro grossense. Morreu em 36, quando detonou
um cinturão de explosivos que conduzia
à cintura.
11
- MANUEL TORQUATO DE ARAÚJO
Chefe do grupo guerrilheiro. Antes de ser salineiro
foi pequeno comerciante, ambulante. Foi preso
pelo bando de Lampião. Fugiu e perdeu toda
a mercadoria para o bando. Organizou um sindicato
de trabalhadores rurais em Alagoinha e outro em
Açu, quando despertou a raiva de fazendeiros
locais. Morreu com 35 anos. Deixou 7 filhos, alguns
ainda hoje morando em Mossoró.
12
- RAIMUNDO SACRISTÃO
Por mais de 50 anos foi sacristão da catedral
de Santa Luzia. Morreu em 78, com 66 anos.
13
- RAFAEL FERNANDES GURJÃO
Médico e político, foi prefeito,
deputado e governador. Diretor do jornal O MOSSOROENSE.
Morreu no Rio de Janeiro em 1952, com 71 anos.
14
- LAURO DA ESCÓSSIA
Jornalista e historiador, foi diretor de O MOSSOROENSE,
onde escreveu uma série de artigos sobre
o período da guerrilha. Vive em Mossoró.
15
- EDGARD BARBOSA
Professor, jornalista e escritor de Ceará-Mirim
(RN). Morreu em Natal, em 1976, com 67 anos.
16
- RAIMUNDO JUVINO
Comerciante e industrial, foi prefeito de Mossoró
de novembro de 32 a setembro de 33. Chegou a ser
preso por ser cafeísta. Morreu em Natal,
em 1980, com 93 anos.
17
- SABOINHA (Vicente Carlos de Sabóia Filho)
Nasceu em 1889, no Ceará. Foi por muitos
anos superintendente da estrada de ferro de Mossoró,
adquirindo fama de terrível pelas arbitrariedades
praticadas contra ferroviários e outras
categorias. Morreu em 1965.
18
- CELINA VIANA
Natalense, nasceu em 1890. Esposa do Prof. Eliseu
Viana. Entrou para a história de Mossoró
por ter sido a primeira mulher no Brasil a votar
(1928). Morreu em 1972, em Belo Horizonte.
19
- JOSÉ MARTINS DE VASCONCELOS
^
Subir

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