Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Lauro Reginaldo
da Rocha - Bangu
Bangu,
Memória de um Militante
Brasília Carlos Ferreira
– Organizadora, 1992
Nosso
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de Produção
Carta
de Amélia Reginaldo – Amélia
Nogueira Feitosa
Observação:
Relato da carta de minha sobrinha Amélia
Nogueira Feitosa(Amélia Reginaldo), combatente
da Revolução de 1935 em Natal(Bangu)
Caro
tio Lauro,
Depois
de tantos anos sem termos oportunidade de qualquer
comunicação, é com muita
alegria que recebo suas notícias. De minha
parte, vou dizendo o que ocorre por aqui e relatando
os acontecimentos do passado, tanto quanto permita
a minha memória enfraquecida pela doença.
Na
tarde do dia 23 de novembro de 1935 rebentou a
Revolução Libertadora na capital
do Rio Grande do Norte. O movimento teve início
com o levante do quartel do 21 BC onde os sargentos,
cabos e soldados dominaram a situação,
num golpe de surpresa.
Enquanto
isto, grupos de civis e militares atacavam outros
redutos da reação. No ataque ao
Esquadrão de Cavalaria houve uma fraca
resistência e as nossas forças conseguiram
se apoderar do quartel, depois de rápido
tiroteio. Na Detenção, onde havia
um destacamento da Polícia Militar, um
grupo dirigido por papai conseguiu dominar a situação
e libertar todos os presos.
O foco
que deu maior trabalho foi o do quartel da Polícia
Militar, que já estava reforçada
com a presença dos oficiais do 21 BC que
para lá se dirigiam, de suas residências.
No ataque a esse quartel se concentravam todas
as nossas forças militares e civis, já
disponíveis por terem dominado os outros
focos de resistência. Este combate foi duro
e difícil. Começou às 19
ou 20 horas do dia 23 e durou toda a noite. Ao
amanhecer do dia 24 parou a resistência.
Na cidade de Natal e noutras cidades vizinhas
o poder passou para as mãos do povo.
Já
na véspera, no dia 23, o governador do
Estado, acompanhado do seu secretariado, havia
se refugiado, primeiro numa residência particular
e depois no Consulado da Itália.
O novo
Governo Revolucionário popular, com o programa
da Aliança Nacional Libertadora, foi instalado
na Vila Cincinato, antiga residência dos
governadores do Estado. Esse novo governo ficou
assim constituído: José Praxedes
de Andrade (Operário) – Abastecimento;
Sargento Quintino Clementino – Defesa; Lauro Cortês Lago – Interior; João Batista
Galvão – Viação; José
Macedo – Finanças.
A primeira
medida da Junta Revolucionária foi o lançamento
do jornal “A Liberdade”, órgão
do governo para comunicação e orientação
do povo, cabendo a papai a direção
da editora. No primeiro e único número
de “A Liberdade” foi publicado um
manifesto ao povo além de outras proclamações.
A participação
de civis, trabalhadores de ambos os sexos, deu
grande força à revolução.
Papai, embora não tinha sido membro da
Junta Revolucionária, foi um dos líderes
do movimento. Epifânio Guilhermino –
operário de grande coragem – sua
esposa Nilinha e muitos outros revolucionários
civis participaram bravamente das ações
militares. Eu entrei na festa e procurei fazer
o que estava nas minhas forças.
Antes,
houve um fato interessante. O governador do Rio
Grande do Norte, o doutor Rafael Fernandes, era
nosso antigo conterrâneo de Mossoró,
e devido a esse velho conhecimento, fez a meu
pai em certa ocasião uma insensata proposta.
Meu deveria abandonar suas idéias comunistas
e como recompensa, seria incluído numa
chapa eleitoral e seria eleito deputado estadual.
Papai embora sentindo-se ofendido com tal proposta,
manteve a sua calma e firmeza de sempre e respondeu-lhe
que não trocaria suas idéias por
todo o ouro do mundo.
Depois
disto, o doutor Rafael ordenou a nomeação
do professor Raimundo Reginaldo, meu pai, para
lecionar na Detenção, julgando assim
castigar aquele gesto de altivez e dignidade.
O resultado foi que no momento em que explodiu
o levante do 21 BC papai libertou todos os presos
da Casa de Detenção seus alunos,
sem esquecer, evidentemente, o dever de doutriná-los.
Muita
gente se admira com a tomada do poder em Natal,
não foi tão difícil quanto
se esperava. Na realidade, o povo apoiou a revolução
e quem não apoiou, também não
ficou contra. Acontece que o descontentamento
do povo, que é permanente, estava no auge,
aumentado pelas secas recentes, pelo desemprego,
pelas dificuldades da vida.
Houve
ainda outro fator que veio agravar a situação.
Uns três dias antes de começar a
revolução, a Guarda Civil foi dissolvida.
O motivo diziam, era que o governo do Estado não
confiava nela, porque ela estava ligada aos partidos
políticos da oposição. Era
a velha politicagem colocada em primeiro plano,
em vez da solução dos problemas
sociais e humanos.
Com
a tomada do poder o povo matou sua fome, andou
de graça nos bondes, pela primeira vez
se sentiu em liberdade, fez a sua festa, comemorou
o grande feito, inédito na sua história.
Infelizmente
durou pouco. A nossa vitória dependia de
outros Estados. Em Recife a luta começou.
Mas o tempo corria e a decisão favorável
não vinha. Havia nuvens negras no ar.
A gente
estava preocupada, havia uma expectativa muito
grande. Eu e papai não sabíamos
exatamente o que estava acontecendo, os planos
gerais não chegavam até nós,
nem competia a nós conhecê-los. Desta
maneira, ficamos na espera dos acontecimentos.
Na
quarta feira veio a notícia da derrota
da insurreição em Recife. Em seguida
as tropas da contra-revolução começaram
a marchar contra Natal, ameaçando com o
cerco funesto.
Nossas
forças de vanguarda que marchavam para
o interior foram derrotadas, nos primeiros choques
que tiveram com as tropas adversárias mais
numerosas e melhor armadas. O Governo Revolucionário
achou que a espera do cerco seria desastrosa,
um sacrifício inútil e resolveu
abandonar as posições. Deu ordem
para a retirada.
Aí
começou o nosso drama, a fuga difícil
e espetacular, para evitar um mal maior, para
não cair nas malhas da polícia que
sabíamos ser cruel e desumana. Saímos
de Natal. Eu, papai e um garoto que morava conosco
em Natal, de nome Eucário. Andamos a noite
toda até chegar em São José
do Mipibu, onde nos arranchamos na casa de um
simpatizante do Partido. Fiquei escondida num
quarto, na casa dessa família, durante
cinco dias. Papai refugiou-se no mato mas, sempre
mantendo a ligação comigo.
Aí
chegou uma ordem para que todas as casas suspeitas
fossem revistadas e eu tive que me refugiar onde
papai se encontrava, na mata. Passamos três
meses neste esconderijo, nos alimentando de frutas
silvestres e dormindo no chão, sob uma
árvore, à beira de uma lagoa onde
não transitava gente e nem era habitada.
Quando a fome apertava, Eucário ia sozinho
à cidade mais próxima comprar alimentos.
Passados
uns três meses, saímos à procura
de outro refúgio onde pudéssemos
viver melhor. Voltamos à casa do simpatizante
e pedimos ao mesmo que nos comprasse roupas e
mantimentos, para seguimos a nossa jornada. Feita
a compra, recomeçamos a marcha à
pé até atingir uma cidade cujo nome
não me recordo. Tomamos um trem com destino
a Recife.
Sentamos
em lugares diferentes, distantes um do outro.
Depois de algumas horas de viagem papai me fez
sinal, fui até onde ele estava. Ele disse:
“Há policiais no trem e fomos reconhecidos.
Temos que saltar na primeira parada, antes de
chegarmos a uma cidade, pois somente aí
eles se decidirão a nos prender”.
Ficamos
prevenidos até que o trem fez uma parada
para abastecer de lenha. Quando o trem deu partida,
pulamos com o trem em movimento. Os policiais
pularam também mas com atraso e isto nos
deu distância. Saímos correndo e
perseguidos pelos indivíduos, até
encontrar um matagal, onde nos escondemos. O Eucário
continuava nos acompanhando e sendo útil
por ser um garoto e não ser procurado.
Ao
amanhecer do dia seguinte resolvemos caminhar.
Só que agora andamos de volta, em direção
a Natal, para despistar a polícia. Chegando
a Natal fomos è residência de um
simpatizante, onde fiquei e escondida com sua
família. Papai juntou-se a is madeireiros
e passou a trabalhar com eles, tirando madeira
no mato. Logo comprou uma casa de palha onde passou
a morar. Um dia, chegaram os homens da higiene
pública, os “mata-mosquito”
de combate à malária. Um deles ao
entrar na casa. Reconheceu papai foi a Natal e
voltou com a polícia. Cercaram a casa mas
papai sempre alerta, conseguiu fugir, escapando
por um triz.
À
noite, quando escureceu, ele foi até casa
onde eu estava escondida e informou todo o ocorrido.
Aí resolvemos partir novamente, desta vez
com destino a Juazeiro, no Ceará. A fuga
em direção ao sul, via Recife, onde
houve o levante fracassado, mostrou ser impraticável,
escapamos de boas. Restava tentarmos o caminho
do oeste. Para chegarmos ao Ceará tínhamos
que atravessar todo o Estado do Rio Grande do
Norte, passando por Mossoró, por nossa
terra natal. Os riscos dessa travessia foram calculados.
Tínhamos uma boa base de apoio: a nossa
família numerosíssima, o conhecimento
do terreno, uma organização partidária
e de massas, cujas bases foram lançadas
por nossa família. Por outro lado, a reação
também estava concentrada lá, os
nossos companheiros e amigos deveriam estar passando
por grandes apertos. E o fato de que éramos
também conhecidos pelos inimigos, era um
fator negativo.
Como se vê, havia prós e contras,
sobretudo contras. Precisávamos ter muita
calma, sangue-frio a astúcia. Muita astúcia.
Procuramos nos convencer de que havia em nós
pelo menos uma pequena dose de cada uma dessas
coisas necessárias. E começamos
a caminhada.
O nosso
corpo estava em chagas, cheio de feridas produzidas
pelos carrapatos, mosquitos e espinhos. Mas continuamos
marchando, evitando os lugares povoados, evitando
transeuntes, andando e se escondendo, andando
e se escondendo, andando e se escondendo.
Um
dia chegamos aos arredores de uma cidade onde
morava um parente nosso. Esperamos o anoitecer.
Quando escureceu papai foi até a residência
desse parente, que tinha também uma casa
de negócio. Aproximou-se cauteloso, e quando
viu que não tinha gente estranha, entrou
rápido e pulou o balcão, causando-lhe
um grande susto sem querer. A partir daí,
passamos a ter o calor de uma assistência
e de um apoio como há muito tempo não
tínhamos. Partimos para Mossoró.
Infelizmente, por um mero acaso, o olho do inimigo
funcionou e a polícia ficou sabendo de
nossa presença na região. Esses
nossos parentes – cujo único crime
era ser nossos parentes – foram presos,
não escapou sequer minha velha, boníssima
e queridíssima avó madrinha Luzia.
A polícia queria que eles indicassem nosso
paradeiro, ameaçou-os de espancamento e
torturas. Mas ninguém disse nada, ninguém
sabia de nada, nós estávamos em
lugar seguro.
Com
grande peso na consciência por ter causado
tanto transtorno aos nossos entes queridos, apressamos
nossa partida. Papai disfarçou-se de cego
e mendigo e eu de guia com a roupa cheia de enchimentos
de pano, fingindo mulher grávida. E assim
atravessamos a cidade do Mossoró de ponta
à ponta, onde somos mais conhecidos do
que bolacha.
Conseguimos
atravessar a zona perigosa do oeste de nosso Estado.
Com o coração apertado, íamos
deixando para trás aquela terra e aquela
gente muito querida, uma grande tristeza nos mantendo
em silêncio, sem coragem de dizer uma só
palavra.
Passamos
a palmilhar as terras do sertão cearense.
Estávamos mais tranqüilos, tínhamos
a impressão de que o perigo havia diminuído.
Mas a nostalgia continuava, inexplicável,
contraditória. Esta nova jornada continuou
sem incidentes, até que chegamos a Juazeiro.
Fixamos residência na rua Padre Cícero.
Tempos depois, papai encontrou casualmente um
seu primo, Zacarias Rocha, que morava no Crato.
Papai
montou uma bodega e eu fui morar, por uns tempos,
na casa desse primo. Papai não suportou
a saudade e resolveu voltar a Mossoró para
se encontrar com mamãe. Conseguiu ir a
voltar sem incidentes, tomando as necessárias
cautelas. Embora tenha tornando conhecimento de
sua passagem por lá. Tempos depois, um
advogado amigo de Zacarias veio avisar que tinha
chegado uma precatória de Mossoró
pedindo a nossa prisão.
Tivemos
que “desarranchar” rapidamente e fugir,
desta vez na direção do Piauí.
Fomos morar numa fazenda do interior desse Estado
e aí ficamos conhecendo uma família,
gente muito boa e amiga. Foi quando conheci Chiquinho,
um rapaz dessa família, com quem me casei
depois.
Papai,
desde algum tempo, não vinha passando bem
de saúde. Sentia uma “agonia no peito,
proveniente do coração. Um dia ele
começou a conversar comigo a respeito dos
filhos que tinha deixado em Natal. No correr dessa
conversa ele disse que achava que não ia
mais ver os filhos. Eu disse que isto era um desânimo
passageiro, logo ele ia pensar diferente.
Depois
ele pediu para eu cantar “A Internacional”,
o hino de sua paixão. O hino relembrava
as suas lutas passadas, os seus ideais de redenção
do povo brasileiro. Notando que ele estava muito
comovido, eu não quis cantar. Ele insistiu
e eu não pude continuar me esquivando.
Comecei a cantar. Aí as lágrimas
começaram a cair dos seus olhos. Eu parei
de cantar e procurei mais uma vez reanimá-lo.
Passado
algum tempo ele começou a passar mal. A
agonia de que vinha se queixando, voltou forte,
violenta. Fui depressa chamar Chiquinho, que nessa
época era meu noivo. Ele veio e achou a
situação grave e partiu imediatamente
à procura do médico. Eu fiquei aflita,
papai não melhorava e eu sem saber o que
fazer para tirá-lo daquela agonia. Quando
o médico chegou ainda tentou salvá-lo,
aplicando uma injeção. Mais foi
tarde. O coração parou para sempre.
A morte
não o desfigurou em nada. O seu rosto ficou
tranqüilo, numa serenidade incrível,
Parecia que estava apenas dormindo. Chiquinho
levou o corpo para a casa de seus pais e tomou
todas as providências para o enterro. Um
mês depois eu e Chiquinho nos casamos.
Aí
está, caro tio, num relato sucinto, o que
foi a Revolução Libertadora de 1935
em nossa terra, o que foi feito nos 4 dias de
governo e o seu desfecho. Tudo ocorreu tão
rápido, não houve tempo nem condições
sequer para iniciar a execução de
outros pontos fundamentais do programa de governo
da Aliança Nacional Libertadora.
As
reformas agrária, urbana e do ensino, as
medidas para libertar nosso país das garras
do imperialismo e para acabar com a pobreza e
o atraso de nosso povo vão continuar como
uma bandeira de luta desfraldada pelo tempo afora,
até que sua vitória seja alcançada.
Essa
vitória dependerá de nós
e de todo o povo. A nossa fé continua.
E aqui termino esta, enviando a todos da família
o meu forte abraço.
Da
sobrinha,
Amélia
Nogueira Feitosa (Amélia Reginaldo)
OBS.:
Relato da carta de minha sobrinha Amélia
Nogueira Feitosa (Amélia Reginaldo) combatente
da Revolução de 1935 em Natal.
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