Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Lauro Reginaldo
da Rocha - Bangu
Bangu,
Memória de um Militante
Brasília Carlos Ferreira
– Organizadora, 1992
Nosso
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de Produção
I
– Início de uma vida
Nasci
a 17 de agosto de 1908, na cidade de Mossoró,
Estado do Rio Grande do Norte, região do
chamado polígono das secas.
Nesse
recanto do Nordeste Brasileiro a ausência
de grandes montanhas, florestas ou acidentes geográficos
de importância, torna a paisagem triste
e monótona. Somente ao longe para o sul
ou sudoeste, essa monotonia é quebrada
pelos primeiros relevos da chapada do Apodi ou,
ao norte, já próximo a costa, pelo
contraste que as pirâmides alvas das salinas
oferecem aos olhos; ou, ainda, pelos carnaubais
que acompanham os rios com suas palmas, sempre
verdes e tremulantes, em qualquer época
do ano, mesmo quando o sol causticante das longas
estiadas queima toda a vegetação,
resseca rios e fontes, devastando o solo de uma
imensa superfície antes rica e produtiva.
Nesse modo, em que a natureza se apresenta ora
acolhedora, ora agressiva, viva uma família
da qual eu era o último rebento: meu pai,
mãe e doze filhos.
Eu
ainda completara um ano de idade quando um acontecimento
veio transtornar a felicidade que reinava em nosso
lar: meu pai foi atacado de uma afecção
pulmonar e pouco tempo depois veio a falecer.
A doença
de meu pai, logo constatada a gravidade, desnorteou
a minha mãe que passou a se dedicar inteiramente
ao se bem-amado. Fiquei largado e esquecido pelos
cantos e, só depois da morte de meu pai,
quando as coisas começaram a serenar, é
que vieram cuidar de mim. Verificaram então,
que meu estado de saúde era lastimável:
debilitamento geral, gânglios linfáticos
do pescoço estourados, atestando que uma
batalha séria se travara no meu organismo.
O ser que mal começava a viver já
lutava instintivamente contra a morte e vencia.
O carinho e desvelo de minha mãe e minha
irmã Melhinha ajudaram-me a sarar. Mas,
os vestígios dessa batalha iriam ficar
gravados pelo resto da vida no físico e
na saúde. O certo, porém, é
que o primeiro combate estava ganho.
Aquele
menino raquítico se mostrava obstinado
em viver e viveria, com efeito, “intensamente”,
como veremos nessas memórias.
Os
antepassados de nossa família – os
Rocha, os Nogueira, os Leite e os Bertoldo do
Amaral – foram dos primeiros povoadores
que se estabeleceram nas ribeiras dos rios Jaguaribe
(CE), Mossoró, Apodi e Upanema (RN), nas
últimas décadas do século
XVII. Tomando posse das terras conquistadas aos
índios e a partir das sesmarias, esses
pioneiros passaram a viver da criação
de gado e da lavoura.
Essas
famílias se uniram entre si pelo casamento
– e nessa união entrou também
o elemento indígena, os remanescentes dos
bravos cariris, que haviam sido vencidos e escorraçados
de suas terras pelas tropas coloniais, depois
de heróica resistência, numa guerra
desigual e impiedosa. Em toda a região
do nordeste brasileiro idêntico fenômeno
ocorria: núcleos colonizadores se formavam,
dando partida para a difícil, tenaz e quase
sempre dramática ocupação
da terra. Dos inúmeros obstáculos
que esses pioneiros encontravam para continuar
na posse e cultivo do solo conquistado, um se
agigantou sobre todos, constituindo o mais sério
desafio: o fenômeno das secas, problema
este que nenhum governo foi capaz ou não
se interessou por resolver, até hoje.
Em 1827, diz a história, houve uma das
mais terríveis secas do nordeste. Levas
e levas de flagelados enchiam as estradas em direção
à costa, fugindo da calamidade. Na cidade
de Aracati, um antepassado de nossa família
– João Pedro Nogueira – teve
que abandonar seus pertences e, com mulher e filhos,
se incorporar aos grupos de imigrantes, rumo ao
Pará, onde passou a viver.
Nessa
região amazônica explodiu, na época,
a grande revolução popular que ficou
na história com o nome de A Cabanagem.
Era a guerra dos índios, dos caboclos nordestinos
e do povo humilde “das cabanas” contra
a exploração impiedosa a que viviam
submetidos; era a luta dos brasileiros contra
o domínio de Portugal, pois a independência
proclamada em 1822 continuou “ignorada”
durante muitos anos pelos dominadores estrangeiros
da Amazônia.
Nessa
revolução tomaram parte e foram
líderes destacados do movimento os filhos
de João Pedro Nogueira: Manoel, Geraldo
e Eduardo. A revolução cabana conseguiu
derrotar várias expedições
militares que tentaram dominá-la. Numa
guerra prolongada, os insurretos foram o cerco
em torno da capital do Pará, até
que conseguiram tomar o poder e constituir um
governo popular-revolucionário. Três
governadores foram seguidamente aclamados pelo
povo em armas: o primeiro foi Clemente Malcher;
o segundo, Francisco Vinagre; e o terceiro Eduardo
Francisco Nogueira, popularmente chamado de Angelim.
O terceiro
governo cubano acabou sendo derrotado por uma
poderosa esquadra da Marinha de Guerra Imperial,
enviado do Rio de Janeiro. Angelim foi preso e
deportado para a ilha Fernando de Noronha, onde
permaneceu cumprindo pena ate que foi anistiado,
decorridos dez anos. Ocorreu fato na vida de Angelim
que viria se repetir, cem anos depois, com nossa
família: sua esposa acompanhou-o no exílio
e lá, no presídio de Fernando de
Noronha, nasceu Filomena-Clara, filha do casal.
A repetição dessa ocorrência
será narrada no prosseguimento destas memórias.
A Cabanagem,
no dizer de Caio Prado Júnior “foi
um dos mais, se não o mais notável
movimento popular do Brasil”.
Durante
alguns anos a nossa família viveu dos poucos
bens deixados por meu pai: duas casas e uma fazendola
de gado em formação. Esse episódio,
entretanto, não podia durar muito tempo,
dado a falta de um homem experiente que tomasse
a direção da casa. Minha mãe
enviuvou muito jovem e viu-se à braços
com uma filharada miúda para criar e educar,
numa época difícil e num meio de
precários recursos. Foi quando sobreveio
a famosa seca de 1915.
Eu
tinha, então, apenas 7 anos de idade mas,
muitos fatos desenrolados durante essa calamidade,
ficaram gravados para sempre na minha memória.
A miséria atingiu proporções
assustadoras, as levas de flagelados enchiam a
cidade. As últimas cabeças de gado
que tínhamos já haviam sido consumidas
e a alimentação tornava-se de que
minha pobre mãe lançava para alimentar
aquela enorme família. Um dos alimentos
mais freqüentes era uma paçoca feita
de côco, farinha de mandioca e rapadura,
“pisados ao pilão”, por serem
estes produtos de mais baixo preço e mais
fáceis de serem adquiridos. Um outro, era
por nós conhecido como o “mingau
da caridade”. Era uma derivação,
por deficiência de ingredientes, do famoso
“cabeça de galo”. O primeiro,
era feito com água, sal, farinha de mandioca
e um pouco de banha (quando havia...), fervidos
numa panela de barro. Quando a “matéria
prima” era mais farta se dispunha de um
ou dois ovos, alho e pimenta para misturar ao
ralo pirão, tínhamos a segunda versão,
melhorada, do quebra-jejum ou seja, o “aristocrático”
cabeça-de-galo... Convém frisar
que tais alimentos geralmente, para desespero
nosso, chegavam com bastante atraso...
Muitas
lágrimas custou à minha mãe
esse quadro sombrio de nossa existência.
Um dia vi entrar em nossa casa um carregador,
com uma maquina de costura à cabeça.
Houve um reboliço. Minha mãe aflita,
não queria receber aquele objeto tão
caro para a época e para os nossos parcos
recursos. Jonas – um dos meus irmãos
mais velhos – fora o autor da idéia
da compra da máquina e dizia que o negócio
já estava ajustado e que nada mais restava
a fazer senão começar a usá-la.
Prometeu trabalhar para ajudar no pagamento das
prestações.
A máquina
ficou. E foi aí que se revelou a força
de vontade de minha mãe.
Ela tornou-se repentinamente uma costureira, trabalhando
dia e noite com Melhinha – outro exemplo
de abnegação e desvelo – tomava
conta da casa e dos irmãos menores, cozinhando,
lavando, passando roupa, preparando as lições
e mandando-nos à escola. A entrada daquela
máquina em nossa casa marcou um fim de
uma fase de indecisões e desorientação
e fez surgir o início de uma luta séria
e encarniçada peça sobrevivência.
Ela ajudou a criar duas gerações,
pois também elaborou o sustento para os
netos.
Quando
minha mãe falava de meu pai (Manoel Joaquim
da Rocha, também chamado de Manoel Reginaldo
da Rocha Nogueira) era como se falasse de um semi-deus.
Através de suas palavras, de suas estórias,
é que fiquei conhecendo a bondade desse
exemplar chefe-de-família, desse pai que
nunca ergueu o braço para bater num filho,
num tempo em que os castigos corporais eram, via-de-regra,
a única maneira de educar, até mesmo
nas escolas. Ainda hoje lastimo que de meu pai
nada tenha ficado em minha memória, nem
sequer um retrato nos restou.
Para
compensar essa falta, tive uma segunda mãe,
na pessoa de minha irmã Melhinha (Amélia
da Rocha Nogueira). Ela cuidava de mim com verdadeiro
carinho e dedicação.
O povo
nordestino se acostumou a mencionar fatos de outrora
ligando-os à época de calamitosos
acontecimentos passados: “- isto ocorreu
durante a seca dos dois setes (1877), ou dos três
setes (1777)”.
O fenômeno
das secas vem se repetindo sistematicamente através
dos séculos, com tendência a se eternizar.
Aparentemente é como se a natureza, com
a cumplicidade de desalmados exploradores nacionais
e estrangeiros, conspirasse contra o povo laborioso,
visando quebrar-lhe a resistência e tirar-lhe
a vontade de viver. E é incrível
como esse povo resiste.
Estas
considerações provêm de fatos
ocorridos na minha infância e que hoje vão
repassando na minha memória como o desenrolar
de um filme impressionante, com cenas ora nítidas,
ora meio apagadas pelo tempo.
No
ano de 1917 a natureza “pregou mais uma
peça” a esse povo sofredor: em vez
de secas, tivemos enchentes. O reverso da medalha
não foi menos cruel do que a face principal.
As chuvas torrenciais fizeram transbordar os rios,
transformando várzeas em imensos lagos,
dizimando lavouras, matando o gado, destruindo
lares. A desgraça bateu novamente à
porta da gente trabalhadora.
Durante
essa enchente ocorreu um acidente que veio a atingir
em cheio uma família vizinha, a de Miguel
Soares, a nós ligada por laços de
parentesco. As pesadas chuvas parecia não
ter mais fim, o rio Mossoró invadiu áreas
nunca atingidas, água por todos os lados,
crianças pegando piabas nas ruas e dizendo
que tinham caído das nuvens. Nós
estávamos empenhados em esvaziar a água
de dentro da casa com vassouras e latas, quando
veio tia Alta, muito aflita, perguntando se tínhamos
visto seu filho Luizinho de uns 4 ou 6 anos, que
estava desaparecido. Sabíamos que ele estivera
tomando banho na chuva, como fizeram todas as
crianças. Iniciou-se, então, a busca
geral pela cidade, sem resultado. Foi quando alguém
teve uma lembrança. Próximo da nossa
rua havia um buraco ou depressão, não
me recordo bem. As águas tinham coberto
totalmente o terreno, formando um grande lago.
Quem sabe se o menino não teria caído
lá? A busca constatou a triste realidade
e o cadáver do nosso amiguinho foi retirado
do poço.
A natureza
não se conformava em reduzir um povo à
miséria, roubava-lhe, também, os
estes mais queridos.
O meu
ingresso no Grupo Escolar 30 de Setembro foi motivo,
para mim, de grande contentamento. Minha irmã
incutiu-me desde cedo o gosto pelo estudo. Ela
preparava-me a roupa, ensinava-me as lições
e arranjava-me as merendas que suas mãos
milagrosas faziam surgir num passe de mágica.
Levando as lições “na ponta
da língua”, não foi difícil
que eu chamasse a atenção da professora
D. Celina Guimarães que, vendo o meu desembaraço,
passou a utilizar-me como auxiliar no desarnamento
dos mais atrasados.
O meu
progresso na escola foi rápido e minha
“preceptora” doméstica passou
a ter dificuldades cada vez maiores em preparar-me
as lições. Até que um dia
ela verificou que seus conhecimentos já
não eram suficientes para atender ao aluno
que progredia. Ela não pode esconder a
sua emoção. Abraçou com alegria
o seu aluno, por ver o seu grau de adiantamento,
mas havia tristeza em sua fisionomia, é
que perdera a sua imensa satisfação
de servir, de ajudar ao seu irmão predileto.
Essa
minha paixão pelos livros haveria de me
causar, mais tarde, um grande desgosto e revolta
quando tive que sufocar essa minha “veleidade”
pelo saber, por absoluta falta de recursos para
continuar meus estudos.
Hoje,
mais conformado, já me dou por satisfeito
por ter aprendido o suficiente para compreender
“o porquê” das desigualdades
e injustiças sociais e por ter dado o melhor
de minha vida à gigantesca batalha que
se desencadeou no mundo inteiro contra o nazi-fascismo
e pela supressão do iníquo regime
de exploração do homem pelo homem
e sua substituição por uma sociedade
justa e humana, a sociedade socialista.
Em
fins da primeira grande mundial tive que deixar
o Grupo Escolar 30 de Setembro para ir freqüentar
a escola Paulo de Albuquerque, da qual era professor
meu irmão mais velho, Raimundo Reginaldo
da Rocha. Essa mudança operou em mim uma
reviravolta completa. O meu novo professor Raimundinho
era filósofo e as suas aulas e palestras
me fascinavam. Nunca mais vi um professor que
ensinasse como ele, que falasse daquela maneira
convincente e entusiástica. Assistir às
suas aulas era como assistir um comício.
A sua eloqüência deixava os alunos
atentos, imóveis, com os olhos brilhantes
de emoção. Nas suas aulas de educação
moral e cívica aprendi que o benefício
que se presta ao próximo só tem
valor quando desprovido de interesses ou segundas
intenções. “Fazer o bem sem
esperar recompensas”, deveria ser o ideal
de todos... E o patriotismo que ele pregava não
era um patriotismo balofo do “me ufano do
meu país”. Era o amor ao povo humilde
colocado em primeiro plano. Todo nosso ideal patriótico
deveria estar em função do progresso
de nossa Pátria, em função
do bem estar e da felicidade de nossa gente. Não
era um patriotismo guerreiro, de autônomos,
de brigar sem saber porque, mas um patriotismo
baseado na fraternidade universal, na paz e na
liberdade.
No
que se refere ao combate às crendices e
superstições, o professor Raimundinho
era arrasador. Para ele só existia a ciência.
Era nela que ele depositava a sua fé. Só
tomava conhecimento daquilo que a ciência
tivesse comprovado, ridicularizando toda e qualquer
hipótese de existência de seres sobrenaturais.
A filosofia do professor não era uma filosofia
de palavras, ele aplicava-a na prática.
Viveu para fazer o bem aos seus semelhantes. Quando
passava pela escola um aluno pobre mas estudioso
e inteligente, ele dedicava-se a esse aluno, estimulava-o,
dava-lhe tudo que estivesse ao seu alcance, roupas,
livros e até alimentos. Preparava-o e encaminhava-o
para o ensino superior. Muitos deles chegavam
a se formar e se destacaram na vida pelo pessoal
e pela cultura.
O professor
Raimundo Reginaldo não foi um pequeno-burguês
de visão estreita e acomodado. Ao contrário,
foi o primeiro a lançar idéias marxistas-leninistas
em Mossoró e incentivar os seus irmãos
a organizarem os primeiros núcleos do “partido
da classe operária” em terras nordestinas.
Na revolução de 1935 ele lutou de
arma na mão nas ruas de Natal, ao lado
de sua filha Amélia de 16 anos de idade.
Libertou todos os presos da Cadeia Pública.
E, após a tomada do poder, distribuiu fartamente
gêneros alimentícios à população
necessitada, em nome do Governo Revolucionário.
Com
a derrota da insurreição, ele e
a filha empreenderam uma fuga espetacular, passando
por Mossoró, onde nasceram e viveram, disfarçados:
ele de cego, ela de guia, com a barriga volumosa,
com enchimento de pano, fingindo mulher grávida.
Ambos sabiam o que lhe aguardava, caso caíssem
nas mãos da polícia. Dormiram no
mato, crivados de carrapatos, picados de mosquito
e demais insetos, passando fome e sede. Com sangue
frio e paciência, conseguiram atravessar
os Estado do Rio Grande do Norte, Paraíba
e Ceará e escapar da prisão, das
torturas e humilhações a que seriam
submetidos.
O professor
Raimundo Reginaldo, o revolucionário que
recusou com altivez a oferta que lhe fez um ex-governador
do Estado do Rio Grande do Norte, de uma cadeira
de deputado como início de uma carreira
política em troca de abandonar suas idéias;
o homem bom que teve de renunciar a tudo que lhe
era mais caro, desde o emprego até a própria
família; esse militante digno e valoroso
da Revolução Libertadora, morreu
no interior do Piauí, onde filha casou
e lhe deu netos. Como relata sua filha Amélia
– em carta transcrita ao final destas memórias
– ele permaneceu com sua fisionomia tranqüila
mesmo depois de morto, como se estivesse em paz
com a sua consciência. Homens como esse
o povo jamais esquecerá.
Aquele
ambiente de pobreza exerceu profunda influência
na minha formação. Na escola, os
livros me falavam das riquezas do nosso país,
dos seus recursos naturais, e o que eu via em
torno mim era fome e miséria, gente vestindo
farrapos, crianças e adultos esqueléticos.
E não podia compreender as causas desse
contraste. Ouvia falar de povos adiantados, sábios
fazendo grandes descobertas e, ao meu lado, um
povo analfabeto, e não me conformava em
esse contra-senso. Estranha sensibilidade essa
minha. Desde criança, me tocava a dor alheia,
quando não era a minha própria dor
que me atormentava.
Esses
pensamentos me roubaram muito da minha infância,
porque muito cedo comecei a indagar se o mal era
incurável ou se havia alguma solução.
Eu não sabia formular perguntas, era uma
criança calada, mas procurava ouvir Raimundinho.
Não havia, a princípio, premeditação.
Eu ia passando despreocupadamente, via o mestre
conversando na sua rodinha, chegava mais perto
e escutava. E perdia a noção do
tempo e das coisas. Depois passei a freqüentar
assiduamente aquelas palestras. É que todas
as tardes – como era, aliás, costume
nas cidades do interior – vizinhos, parentes
e amigos reuniam-se em nossa casa para conversar.
A reunião era espontânea. Eles vinham
chegando isolados ou em grupos e iam sentado.
Não havia cadeiras para todos, os da casa
arranjavam-se em caixotes ou ficavam de pé.
Falava-se
da política, de secas, de marchas da fome,
até chegar ao assuntos da época,
“a revolução russa”.
Por incrível que pareça, aquela
cidadezinha longínqua não estava
isolada do resto o mundo. Não havia rádio
nem televisão mas, as noticias importante
do que se passava em lugares ao mais remotos do
globo ali chegavam pelo telégrafo, pelos
jornais e revistas, fazendo vibrar aquela pequenina
parcela da grande massa humana que cobre a superfície
terreste.
Sentado
no chão a um canto, eu aguardava a palavra
do mestre. Era ele que esclarecia as minhas dúvidas,
a sua voz, para mim era um clarão nas trevas.
“O povo russo, dizia ele, encontrou a caminho
de sua libertação, quebrou as correntes
da opressão, implantou o socialismo e vai
agora criar um mundo novo, diferente, de paz,
de conforto e de progresso”. E fazia desfilar
diante de meus olhos atônitos, como se eu
estivesse diante de uma realidade palpável,
os heróis daquela revolução
vitoriosa, a figura deslumbrante de Lenine à
frente. E eu me via de repente, na minha imaginação,
no meio de seres fantásticos, de fuzil
em punho, lutando, partindo cadeias, quebrando
grilhões.
Era
a voz do mestre, que falava sempre sorrindo, quem
acabava o devaneio, chamando-me à realidade:
“Cada povo deverá resolver sua própria
situação. Nada cairá do céu
por acaso, o preço da liberdade será
muito suor, sangue e lágrimas. O próprio
povo trabalhador – que tudo produz e nada
tem – terá que decidir e traçar
o seu destino. Na união está o segredo
de nossa força, pois isolados nada valemos.
Os trabalhadores nada têm a perder com a
revolução, mas o ganhar têm
um mundo”. E concluía recitando uma
estrofe da “Internacional”: “Para
não ter protestos em vão/ Para sair
deste antro estreito/ Façamos nós
por nossas mãos/ Tudo que a nós
diz respeito”.
Não
me recordo bem quando foi que descobri aquele
tesouro. Lembro-me que as estantes de livros da
sala de Raimundinho passaram a ser uma agradável
surpresa para mim. Não sabia como foram
parar ali obras tão boas, os clássicos
da literatura, as correntes mais diversas de pensamento
estavam ali representadas, desde “Os Sertões”,
de Euclides da Cunha, até as obras de Karl
Marx, Engels e Lenine. Eu devorava aqueles livros
com sofreguidão, largando no meio os que
não conseguia entender, indo até
o fim e às vezes relendo aqueles que maior
impressão me causavam.
Ler
bons livros é como viajar por mundos desconhecidos,
é como transpor novos horizontes. O pensamento
se eleva, o saber se renova. Que cabedal de experiências
e de conhecimentos eles contêm! Eu me sentia
feliz por contar com aquela boa fonte que era
a biblioteca de meu irmão, onde eu ia procurar
matar a minha sede de conhecimentos. Muito aprendi
naqueles livros.
Um
dos maiores passos que o homem deu na senda do
progresso foi quando passou a gravar pensamentos
e fatos. Voltando-se para o passado, a vista do
homem só alcança com precisão
até a época em que os nossos ancestrais
começaram a escrever ou garatujar. Daí
para trás a história vai se perdendo
nas lendas e nas conjecturas, até se apagar
totalmente, restando apenas aos estudiosos da
paleontologia os despojos encontrados nos fósseis.
Mas,
o livro não é somente um repositório
de fatos e experiências, é também
o espelho mais fiel do espírito humano.
Por meio dele podemos conhecer o grau de progresso
e de cultura de um povo, seja do presente ou do
passado mais distante. Penetrar nele é
penetrar num mundo que não tem fim.
Sobre
a origem dos livros marxistas encontrados na biblioteca
do professor Raimundo Reginaldo, encontrei mais
tarde a solução do enigma no livro
“Elizeu Viana, o Educador”, do escritor
Walter Wanderley, páginas 180 a 194. Nesse
livro há um depoimento precioso da nossa
amiga professora Celina Guimarães, de saudosa
memória. Dona Celina possuía uns
livros de Marx, Engels e Lenine e, querendo se
desfazer resolveu presenteá-los aos irmãos
Reginaldo: ”- Eis que chega – à
sua casa – o menino Lauro Reginaldo”.
Ela entrega-lhe um enorme pacote contendo os referidos
livros para que entregue a Raimundo Reginaldo.
Foi
desta maneira que eu mesmo, sem me dar conta,
conduzi aquelas preciosas jóias literárias
que fui encontrar, mais tarde, nas estantes de
meu irmão Raimundinho, que tanta impressão
me causaram e que me nortearam para o resto de
minha vida. Este gesto magnânimo de D. Celina
acrescentou à minha admiração
por ela, e meu mais profundo reconhecimento. Obrigado!
E muito obrigado, querida professora.
Quando
fui fazer o exame de admissão ao curso
de professor na Escola Normal, notei que havia
surpresa por parte dos presentes. Eu ainda era
um garoto, usando calças curtas, e a minha
compleição franzina fazia com que
eu parecesse ainda mais jovem.
A minha
antiga professora do Grupo Escolar, dona Celina,
esposa do diretor da Escola Normal, Elizeu Viana,
olhou-me com curiosidade e perguntou: “-
Lauro, em quantos anos você espera tirar
o diploma de professor? Tomei a pergunta como
um desafio e respondi: “- Vou me esforçar
ao máximo para não repetir nenhum
ano. Sou pobre e não posso perder tempo.
Creio que minha resposta agradou a professora,
que dizendo “muito bem”, retirou-se
com um sorriso.
Cumpri
a promessa. Fiz o curso sem reprovações
ou repetições, mas isto me custou
muito esforço e sacrifício. Eu não
estava preparado para aquele curso, pulei etapa,
não tinha dinheiro suficiente para comprar
todos os livros e o regime de sub-alimentação
em que vivia se constituíram em embaraços
seríssimos aos meus estudos.
À
noite eu procurava reunir aqueles apontamentos
rabiscados em cadernos, durante as aulas. Havia
matérias que não me davam muito
trabalho, mas a tal de matemática ocasionou-me
muitas tonteiras. E quando eu dormia, ainda vinham
pesadelos terríveis, eu procurando alcançar
pedaços de pão e o pão se
transformava em algarismos, os malditos algarismos
fugindo, sempre fugindo.
Na
parte da manhã eu trabalhava na fábrica
de cigarros de Humberto Jovino ou na de Hemetério
Leite; e isto me dava alguns trocados para pequenas
despesas. À tarde eu ia à escola.
A falta de livros foi atendida com a feliz idéia,
surgida não me recordo por quem, de estudo
em conjunto. Eu, Raimundo Nonato, Mário
Cavalcanti e Lauro da Escóssia, quando
se aproximava a época das provas, nos reuníamos
na casa deste último para repassar as lições.
Lucrei muito com esses estudos em comum. Quando
um encontrava dificuldades numa matéria
o outro ajudava; e assim solucionávamos
problemas de geometria, esclareciam-se leis de
física ou pontos de pedagogia. Nos intervalos
surgiam as piadas e as célebres anedotas
e isto amenizava os estudos, formava um ambiente
cordial, de camaradagem.
A minha
passagem pela Escola Normal deixou-me gratas recordações.
Quanto mais tempo se passa mais sinto saudades
daqueles ótimos professores, daqueles colegas,
daquela “irmandade” que ali se reunia
à procura da luz sagrada do saber e que
a luta pela vida dispersou, conduzindo-nos por
diferentes caminhos.
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