Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Coleção Memória Histórica
Juliano Homem de Siqueira - Volume VIII
O
Mestre
A
história do Rio Grande do Norte estaria incompleta se não
fosse dada a verdadeira importância do Movimento Estudantil,
que foi resgatado a duras penas por dedicados militantes que colocaram
a luta contra a ditadura militar acima de qualquer outro interesse.
Mas entre esses militantes existe uma pessoa cuja participação
precisa ser bem situada, explicada e entendida. Trata-se de Juliano
Siqueira, que já havia passado pelos porões da repressão
e retomava sua vida estudantil como estudante de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, a partir da inauguração
do campus.
Juliano foi a maior referência da resistência, tanto
pela sua experiência e preparo, como pela liderança
nata que levou a estudantada a reunir-se em torno das lutas que
eram identificadas como necessárias e indispensáveis.
Era um tempo em que a sala de aula da nossa turma – tive o
privilégio de ser seu colega de curso – reunia nada
menos que oito agentes da Polícia Federal e outros órgãos
de segurança. Tempo em que todos desconfiavam de praticamente
todos. A relação de confiança para participação
nas atividades políticas era algo construído com o
máximo de cautela, mas era impossível não correr
certos riscos.
Nesse cenário iam sendo retomadas as atividades da política
estudantil, das quais lembro bem a primeira, a eleição
do representante dos estudantes de Direito no colegiado do curso.
Disputa acirrada entre um civil, no caso eu mesmo, e um estudante
de Direito capitão da Polícia Militar, Domício
Damásio. Ganhamos a eleição com uma grande
margem, o que nos deixava com um sentimento indescritível:
um misto de vitória e vibração, com receio
do que poderia advir naquele novo cenário. Depois nossos
colegas democratas e socialistas foram sendo eleitos para os diretórios
acadêmicos e finalmente para o Diretório Central de
Estudantes - DCE, cuja eleição, a exemplo do que ocorria
na política geral, era indireta: cinco presidentes de diretórios
elegiam o Presidente do DCE.
Em 1976, na eleição para o DCE o candidato dos democratas
e das chamadas esquerdas era o estudante de Direito Jair Elói
de Souza. Mas havia uma informação de que poderia
ter seu nome vetado pela Assessoria de Segurança e Informação
– ASI, por conta da sua atuação política.
Havia a impressão de que o meu nome seria menos visado, daí
a decisão de registrarmos a minha candidatura a Presidente
do DCE. Caso a candidatura de Jair não fosse vetada, eu retiraria
a minha. E foi o que aconteceu. Depois de confirmada a candidatura,
retirei a minha e aquele colega foi eleito Presidente do DCE, entidade
que tinha sede no prédio do IFRN da Avenida Rio Branco.
Cada fato político de importância nacional era comentado
e discutido pelas lideranças estudantis universitárias,
que diariamente planejavam suas atividades nos mais diversos locais,
sempre driblando aqueles agentes dos órgãos de segurança
que podiam até saber parte dos nossos roteiros, porém
eram seguramente despistados. Mas chegavam a desenvolver ações
mais diretas na tentativa de inibir o movimento.
Em dado momento houve uma manifestação de estudantes
em São Paulo, com cerca de cem participantes. Era uma grande
multidão para a época onde três pessoas conversando
já preocupavam à repressão. O fato foi noticiado
por mim através da Rádio Cabugi, onde trabalhava como
redator. Poucos minutos depois o diretor da Rádio, José
Gobat foi chamado a dar explicações na Polícia
Federal, que funcionava perto da sua residência, em Tirol.
Ia ser noticiado na Tribuna do Norte, através de matéria
de Edilson Braga, mas a PF tomou conhecimento e Agnelo Alves foi
chamado para receber a informação de que a matéria
estava censurada.
Nos dias seguintes os estudantes de Natal elaboraram e divulgaram
uma nota de apoio ao movimento de São Paulo, numa reunião
de cerca de sessenta pessoas realizada no Campus. Como resultado,
todos foram chamados a depor para dar explicações
na ASI ou na Polícia Federal. Naquele tempo a agenda dos
colegas era complicada. François Silvestre também
fazia parte da nossa turma de Direito e havia sido preso pela PF.
Em dado momento invadiram e fizeram uma busca na casa de Juliano
Siqueira, situada na rua Jundiaí. Lembro de quando nos reencontramos
com ele e ele relatou sobre coisas que levaram, inclusive alguns
poemas de sua lavra. Não sei se os resgatou.
Minha namorada à época (hoje minha mulher), Graça
foi chamada à ASI e sofreu pressões para afastar-se
de mim e dos demais participantes do Movimento Estudantil. Fui caçado
em casa e na rua, até que me pegaram na redação
da Tribuna do Norte e fui levado a depor na Polícia Federal,
onde compareci por três dias. Ali fizeram acareação
minha com François, para tentar criar contradições
em nossos depoimentos. Quando cheguei à PF e fui levado à
presença do superintendente Hugo Povoa, o professor Varela
Barca estava tratando da liberação de um curso de
Russo para um dentista que necessitava de literatura naquele idioma.
Varela Barca afirmou que a partir daquele momento estava ali como
meu advogado. Mas o policial garantiu não ser necessário
que permanecesse. Também meu irmão Wellington Medeiros,
chegando de viagem a São Paulo foi até a PF tomar
pé da situação. Estava terminando meu depoimento
e fui liberado, saindo com ele.
Em 1977, para concluir o curso, candidatei-me a orador da solenidade
geral de colação de grau. Apresentei o discurso a
ser proferido e fui chamado pelo professor Paulo Soares, que sugeriu
retirar o discurso para que não fosse vetado. Disse-lhe que
não desistiria e que se tivessem de vetar, que o vetassem.
Assim ocorreu. O discurso foi vetado e o orador da solenidade naquele
ano foi um sargento do Exército. Paralelamente eu havia sido
escolhido orador da turma de Direito. Resultado: o mesmo discurso
vetado eu li na Aula da Saudade, que ainda tenho na memória.
O professor Américo de Oliveira Costa fez referência
ao meu discurso considerando-me um “idealista”.
Os fatos importantes daquela época passavam pela discussão
do grupo, que reunia estudantes de todos os centros, bem como agregados
das lutas democráticas e, pela clareza com que conseguia
interpretar e orientar as ações, a maioria tratava,
merecidamente, Juliano como o Mestre. O local era determinado pelas
circunstâncias: uma sala de aula, um cinema, um bar, o cineclube.
Juliano conseguia transmitir um imenso amor à causa do povo,
uma fé na força popular, uma esperança num
futuro livre daquelas aflições, uma certeza em meio
a um imenso mar de dúvidas. A lembrança de escrever
esse relato tem, portanto, como objetivo, deixar esse registro da
homenagem ao amigo lutador, a quem os potiguares e brasileiros devem
parte do que conquistaram a partir dos avanços democráticos
das décadas seguintes aos anos 70.
Walter
Medeiros
Jornalista
waltermedeiros@supercabo.com.br
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