Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Coleção Memória Histórica
Glênio Fernandes de Sá - Volume XVII
Glênio
Sá: De um especial brasileiro às novas gerações
Luiz
Carlos Antero*
Numa época em que a política sofre profundamente a
ação das práticas culturais de uma das elites
mais atrasadas do planeta, o resgate da memória de Glênio
Fernandes de Sá enobrece o espírito e remete ao exemplar
orgulho revolucionário de uma geração de lutadores.
Daquela safra de jovens que viveu intensamente a opção
de transformar um mundo caduco e enfermo. Este legado às
novas gerações que adveio do auge de uma era de transformações
e nos conduzia, de modo inexorável, a acreditar sob todos
os riscos num generoso sentimento de solidariedade capaz de realizar
os sonhos de uma nova sociedade.
Foi nessas circunstâncias que conhecemos, na Fortaleza de
final dos anos 1960 e início dos ’70, o altivo e sobranceiro
Glênio, um bravo potiguar de rosto proeminente, fala comedida,
olhar sereno e determinado, um desarvorado rebento nascido no município
de Caraúbas, no Rio Grande do Norte, em abril 1950, distando
somente alguns dias ou meses de idade em relação ao
próprio nascimento de cada um de nós, então
estudantes secundaristas. Era o caçula de sete irmãos
do casal Raimunda Fernandes de Sá e Epitácio Martins
de Sá, entre os quais Gil Fernandes de Sá, que também
adotara o Ceará como espaço adotivo de sua trajetória
de vida e luta.
Mais amadurecido, Glênio já percorrera o caminho da
resistência desde os 16 anos: seu ingresso na luta democrática
ocorrerra dois anos após o golpe militar de 1964, ainda no
Colégio Estadual de Mossoró (RGN), integrando-se a
partir de 1968, em Fortaleza, às fileiras do Partido Comunista
do Brasil (PCdoB), quando desenvolvia uma forte atuação
no Centro de Estudantes Secundários do Ceará (CESC)
e no movimento estudantil cearense.
No crepúsculo dos anos ‘60, Glênio já
despontara como uma das principais lideranças do movimento
secundarista em Fortaleza, tornando-se um destacado e querido dirigente
da resistência à ditadura militar com uma clara compreensão
da importância da restauração das liberdades
democráticas no Brasil.
Com uma visão ampla da vida, compreendia também as
circunstâncias da bipolaridade que dividia o mundo entre Estados
Unidos e União Soviética, numa intensa e marcante
luta de classes no plano internacional com reflexos em nosso país,
onde o regime de exceção se instalara para conter
os avanços sociais sob o declarado temor da opção
comunista e de uma mudança de lado na posição
brasileira.
Naquele momento, as liberdades políticas foram gradualmente
cerceadas, tornando as atividades da resistência mais arriscadas.
A propagação do pensamento libertário, antes
(do Ato Institucional nº 5, o AI-5, em 1968) possível
nos espaços públicos, inclusive no interior das instituições
de ensino, passou a depender de ações que deviam contar
sempre com um planejamento que envolvia a questão da segurança
em comícios relâmpagos nos colégios e universidades,
panfletagens na madrugada em cada casa, pichamentos nos muros mais
visíveis, etc.
Em síntese, o conteúdo das falas e panfletos conclamava
os estudantes e o povo brasileiro à obra da resistência
ao arbítrio, à defesa das liberdades democráticas
e da nossa soberania, à necessidade de uma vida melhor para
a classe operária e os trabalhadores em geral, de um regime
de justiça social capaz de valorizá-los e promovê-los
à posição de protagonistas das transformações.
Um conteúdo que se estendia à rejeição
da presença do intervencionismo imperialista em nosso país,
em particular dos Estados Unidos. Na atuação da União
da Juventude Patriótica (UJP), inspiração do
PCdoB, uma das suas consignas consistia na defesa da extensão
de 200 milhas para o nosso mar territorial em contraponto à
pretensão imperial de limitá-lo às 12 milhas.
Eram comuns os comícios-relâmpago nos restaurantes
universitários e em outros lugares, culminando com a queima
da bandeira dos EUA.
Nossa atuação encontrava em Glênio e na sua
presença invariavelmente firme e combativa à frente
do CESC, na organização e liderança das manifestações
estudantis, não obstante os perigos e atribulações
ocasionados pela repressão policial. Nessas circunstâncias,
compareceu ao Congresso da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (UBES), realizado em 1968, em Salvador, numa delegação
de quatro eleitos – que, na passagem por Aracaju, soube da
notícia do AI-5, decretado pelos generais.
Diante da privação das liberdades em todo o país,
a luta se radicalizava pelo próprio agravamento das operações
militares repressivas, restringindo cada vez mais as possibilidades
de atuação estudantil, criminalizadas pela ditadura.
Em 1969, Glênio foi preso duas vezes; logo na primeira prisão,
na cidade do Crato (CE), permaneceu detido três meses, indiciado
num Inquérito identificado pelo número 18/69, instaurado
pela Superintendência Regional do Departamento de Polícia
Federal do Ceará e remetido à Auditoria da 10ª
Circunscrição Judiciária Militar, depois arquivado
por solicitação da Procuradoria Militar, que o extinguiu
pela patética inexistência de crime a punir.
Na segunda prisão, também ocorrida no Crato, quando
convocava os estudantes para integrar o CESC, o jornalista Paulo
Verlaine, companheiro de lutas de Glênio e também membro
do Comitê Secundarista do PCdoB, fora preso numa ação
de pichamentos contra a presença no Brasil de Nelson Rockfeller,
destacado membro de uma poderosa família dos EUA e agente
dos interesses imperiais enviado, à frente de uma Missão,
pelo então presidente Richard Nixon.
Ao chegar no então Quartel General da PM, na Praça
José Bonifácio, em Fortaleza, Verlaine já encontrou
Glênio, que foi liberado cerca de 20 dias depois: “Já
nos conhecíamos muito bem e foi muito bom tê-lo encontrado
ali, apesar de se tratar de uma prisão (...) A imagem que
guardo de Glênio é a de um jovem aguerrido, solidário
e preocupado com os destinos do País. Um estudante que dedicava
toda a sua vida à luta contra a ditadura militar e se preocupava
com o sofrimento do povo. Um grande brasileiro”.
E foi essa a lembrança que permaneceu em seus mais próximos
contemporâneos. José Auri Pinheiro, também membro
da direção do CS do PCdoB, hoje professor universitário
aposentado, fixou em sua memória “uma pessoa afável,
gentil, solidária, ousada, de uma coragem invejável,
uma pessoa muito inteligente, de discurso fluente, habilidoso ao
lidar com as demais correntes políticas (a exemplo da AP,
dos trotskistas ou reformistas). Nos embates políticos das
reuniões ou congressos do CESC, nós sempre contávamos
com sua firmeza ideológica no arremate final, convencencendo
aqueles indecisos, sem partido, na conquista para as posições
do PC do B. Apesar da firmeza política, ideológica,
no discurso e na prática, mesmo tratando de temas áridos
fazia com humor, com graça. Não era aquele cara chato,
era admirado por todos. Era comunista 24 horas por dia, sempre maquinando
situações para colocar em cheque a ditadura num momento
em que as pequenas ações se revestiam de grande importância,
naqueles momentos difíceis em que era preciso ser ousado,
corajoso. E nisto o Glênio era mestre. Foi com estas ideias,
ações, atos cumulativos, que chegamos ao fim da ditadura”.
Seu irmão Gil até hoje considera muito dificil falar
do mano Glênio sem o peso da saudade e emoção:
“Ele se tornou cedo o espelho do combatente determinado sem
perder nunca a leveza e amabilidade na relação com
todos que o cercavam. Morreu lutando pelos ideais que o seguiram
por toda a sua existência contra a injustiça social
e pela igualdade de oportunidades para todos. Sua vida foi sempre
alimentada por sonhos libertários”.
E foi pela convicção de todas essas razões
entremeadas que a direita militar submissa ao Império nunca
o perdoou, perseguindo todos os seus passos até exterminá-lo
fisicamente.
A militância no movimento estudantil de Glênio foi interrompida
no início de 1970, com a desarticulação e a
proscrição das entidades mais atuantes, a exemplo
do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade
Federal do Ceará (UFC), diretórios acadêmicos
e do próprio CESC, declarados ilegais. Dispostos a prosseguir
na resistência, inúmeros estudantes ingressaram na
clandestinidade ainda que os riscos se tornassem maiores, pois a
ditadura passava a listá-los para execução
física, no caso do confronto direto, ou para a tortura e
o assassinato nas masmorras do regime.
Logo Glênio optou pelo deslocamento rumo ao sul do Pará,
onde aqueles cidadãos marcados para morrer adotaram uma nova
qualidade de resistência, na organização e conscientização
dos camponeses da região na luta contra grileiros e latifundiários.
Foi o movimento que permaneceu conhecido como Guerrilha do Araguaia
e que guarda mistérios até hoje ocultos nos arquivos
das forças armadas sobre seus acontecimentos. Até
abril de 1972, quando a repressão militar localizou e atacou
os que se refugiaram na região, homens e mulheres de todas
as idades, Glênio participou da preparação de
uma resistência sem data marcada e que poderia ser de médio
ou longo prazo.
Após o ataque dos militares, entretanto, internou-se na selva.
Em seguida a um período de combates, contraiu malária
e, gravemente enfermo e febril, foi detido, barbaramente torturado
e transferido sucessivamente, até que, localizado por sua
família, foi libertado em 1975 numa dramática situação
que envolveu gestões e pressões de diversas instâncias
sociais. Do mesmo modo que os demais sobreviventes, num total que
não chegaria a uma dezena (de um contingente de 69 que migraram
para a região do Araguaia em busca de uma nova perspectiva
de vida e de luta), acerscidos dos camponeses que aderiram à
resistência, Glênio também jamais foi acusado
ou processado por sua participação na Guerrilha. E,
para ele, a luta não terminaria com a saída do cárcere,
que significava somente mais uma etapa do processo versejado pelo
amor maior da libertação.
Muito magro e debilitado pelos maus tratos sofridos no período
em que esteve nas masmorras da ditadura, após a prisão
no Araguaia, Glênio recebeu um dia a visita de um amigo do
seu irmão Gil, na humilde residência em que vivia com
sua familia. O visitante, Pedro Carlos Álvares, muito emocionado
com aquele contato, cumpria uma agenda de trabalho em Natal, egresso
de Fortaleza, onde organizaria a equipe de expansão de uma
empresa cearense do ramo da informática. Surpreso, o abatido
mas sempre altivo Glênio soube que teria um emprego, na verdade
um desafio para um revolucionário que vivera por longo tempo
distante das novidades do mundo tecnológico, num tipo de
revolução muito diferente de tudo que vivenciara nos
anos de chumbo da ditadura. Apresentou-se na empresa no dia seguinte
trajando roupas muito simples, recebeu as primeiras instruções
sobre o trabalho, que consistia em liderar sua equipe de vendas,
e integrou-se, determinado, às novas funções.
Dias depois, Álvares viajou para Fortaleza numa emergência
familiar. No retorno a Natal, encontrou um dos sócios da
firma, um civil potiguar entusiasta da repressão aos comunistas,
indignado. Glênio, numa reunião com dezenas de funcionários,
havia relatado sua saga na guerrilha do Araguaia, contextualizando
a luta de resistência. Álvares foi convocado para uma
reunião em Fortaleza, e, com muita convicção
e habilidade, convenceu a diretoria da irrelevância do fato;
disse que o mais importante estava na realização das
metas de expansão comercial, apostou na capacidade de liderança
de Glênio e em seu desempenho. E não deu outra: a equipe
comandada por ele se tornou rapidamente campeã de vendas
no Nordeste.
Mas o êxito não o afastou da política. Pelo
contrário: sua atividade persistiu com a mesma determinação.
E, quando a fatalidade o alcançou, em 1990, estava em pleno
curso. Na verdade, a crônica de uma morte anunciada, pois
a comunidade repressiva persistiu em atividade após o anúncio
formal do fim da ditadura, cinco anos antes, em 1985. A mesma macabra
agenda que determinou o extermínio de todos os combatentes
no período da terceira campanha de cerco e aniquilamento
da Guerrilha do Araguaia, e que tornara a Chacina da Lapa, em 1976,
sua derradeira e simbólica batalha, vitimaria quem ousasse
permanecer no prumo libertário. Buscava-se desse modo completar
o inglório desígnio de destruição de
um pensamento nacional, consequente e libertário.
Alguns contemporâneos das lutas secundaristas voltamos a abraçá-lo
nos anos ‘80, em Natal ou em Fortaleza, quando reassumira
seu lugar na crista das lutas e na direção do PCdoB,
tornando-se candidato ao Senado pelo Rio Grande do Norte. Paulo
Verlaine, que o reencontrou, juntamente com outros militantes, numa
visita a Fortaleza, guardou a impressão de “um Glênio
mais sofrido devido às torturas e outros sofrimentos enfrentados
durante a prisão”. Mas a sua preservada firmeza nas
convicções e no jeito humano e comunista de ser, temperados
pelo afeto irresístivel ao povo brasileiro — e ao nosso
milagre territorial hoje cada vez mais potencializado — são
reveladores de sua contribuição ao Brasil de liberdades
democráticas e dos avanços pelos quais pugnamos hoje.
Não houve, portanto, nada de acidental no estranho acidente
automobilístico que ceifou sua vida. Pois Glênio, executado,
está ao lado de Mauricio Grabois e de tantos outros, como
um especial brasileiro no panteão de mártires e heróis,
entre os melhores filhos do nosso povo, exemplo de integridade e
de luta para as atuais e futuras gerações. Abatido
em pleno vôo da liberdade como na Canção do
Novo Mundo, onde “em menos de um segundo um simples canalha
mata um rei”. Mas com uma memória tão viva “que
nem a força bruta pode apagar”.
*Luiz Carlos Antero é Mestre em Sociologia, Jornalista, Escritor
e Assessor Parlamentar no Senado Federal.
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