Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Coleção Memória Histórica
Glênio Fernandes de Sá - Volume XVII
Glênio
Sá
Por
Walter Medeiros*
Posso falar sobre algumas pessoas, dizer o que vivi e convivi com
elas, defini-las com minha visão ou com parâmetros
determinados, incluir a técnica ou a emoção
em cada momento, mas de toda experiência que tive até
agora, o maior exemplo de integridade que conheci foi Glênio
Sá. Longe de mim achar ou dizer que se tratava de alguém
perfeito. Mas dentro dos princípios e convenções
da sua época e da sua ideologia, para mim era o maior exemplo,
tão extremado que muito difícil de seguir, tão
desprovido de interesses era ele, na sua luta por um mundo melhor.
Era um comunista exemplar.
Na hora de enfrentar o perigo, enfrentava; na hora de estudar, estudava;
na hora de viajar, viajava; na hora de amar amava; até na
hora de brincar, brincava – pois o povo também brinca,
inclusive Carnaval. Fazia tudo com tanta dedicação,
que pode ser enquadrado, entre outras situações, como
exemplo de intensidade. Desconheço quem tenha vivido uma
vida tão intensa em cada coisa que vivenciava e fazia. Uma
dedicação em busca do melhor, do exato e, se possível,
do perfeito. Alguém exigente, responsável, determinado
e forte, a ponto de explodir quando sentia que algo havia sido feito
errado, algo havia se desencaminhado diante dele.
Apesar de todas as imensas preocupações que tinha,
Glênio tinha sempre um espaço carinhoso para referências
a sua cidade, Caraúbas, e à sua família, que
considerava uma boa trajetória educativa estudar em Fortaleza
- Ceará. Já nos anos 60, advira-lhe a primeira prisão,
tão marcante que ele lembrava detalhes da notícia,
a qual chamava a sua participação de manobras. O Jornal
dizia que ele tinha distribuído boletins considerados subversivos
pelas autoridades. Ele esteve preso na Delegacia Especial da cidade
do Crato - Ceará, onde foi ouvido oficialmente pela Polícia
Federal. Desde 1968 ele participava ativamente do movimento estudantil
secundarista. Foi preso outra vez, depois de liberado, em 1969.
Em 1970 partiu para São Paulo, onde se engajou no então
clandestino Partido Comunista do Brasil – PC do B, indo atuar
no sul do Estado do Pará. Participou da Guerrilha do Araguaia,
onde foi recebido por João Amazonas e dedicou-se ao trabalho
no campo. Num momento de infortúnio, ele buscava tratamento
para malária, mas foi delatado e findou preso pelo Exército,
que ocupava vastas áreas da região. Passou, então,
um novo período de prisão, no qual esteve em vários
quartéis. Foi torturado e submetido a diversos outros atos
desumanos, entre eles a permanência em cela solitária,
na qual sequer podia ficar em pé. Sua família pensava
que ele estava estudando em São Paulo, mesmo com a ausência
de notícias. Jamais imaginava o que havia ocorrido e estava
ocorrendo.
Em 16 de junho de 1973 uma jovem chamada Divina, residente no interior
de Goiás, escreveu uma carta dirigida à Farmácia
Minan, para a sua Família, no município potiguar de
Caraúbas. A carta era datada de 16/06/73. Dizia mais ou menos
assim: “O motivo desta é comunicar-lhe que seu filho
se encontra preso no setor dos militares no Pique (PIC) em Brasília.
Querendo maiores informações, procure-me. Estou comunicando
ao senhor pelo fato de meu pai estar preso junto a ele. Então
ele pediu-nos que escrevesse avisando a vocês. Se vocês
receberem esta carta responda-me. Seu filho Glênio pede que
vocês compareçam em breve”. Ela pedia que acusassem
o recebimento, porque naquela época ninguém tinha
certeza de que a correspondência chegava.
Algumas providências foram adotadas pela família, que
conseguiu localizá-lo no cárcere, e com quem manteve
correspondência – censurada - enquanto tomava as medidas
jurídicas cabíveis.
Vivenciadas todas estas atribulações, em 10 de setembro
de 1974 Glênio voltou para Fortaleza depois de identificado
pela advogada Eva Ribeiro Monteiro, que conduzia documento lacônico
registrando sua prisão: “MINISTÉRIO DO EXÉRCITO
- COMANDO DO I EXÉRCITO – CHEFIA DE POLÍCIA
- DECLARAÇÃO - Declaro que o portador da presente,
GLÊNIO FERNANDES DE SÁ, esteve à disposição
do I Exército, achando-se atualmente liberado, podendo deslocar-se
para FORTALEZA, sua cidade natal. Rio, GB, 05 de Setembro de 1974
(a.) MILTON BARBOSA DOS SANTOS – Ten Cel - CHEFE DE POLÍCIA
DO I EXÉRCITO”.
Glênio voltou ao convívio da família em setembro
de 1974, mudando-se em seguida para Natal, onde prestou vestibular
e começou a cursar Geologia na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte - UFRN. Retomou contato com o movimento estudantil,
onde foi dirigente do Centro Acadêmico de Ciências Exatas,
e liderou a reestruturação do Partido Comunista do
Brasil. Era uma pessoa extremamente disciplinada e organizada, com
a agenda sempre preenchida por eventos, estudos e outros afazeres.
Acima de tudo, entretanto, era clara a dedicação 24
horas de cada dia à militância política.
A têmpera revolucionária de Glênio fazia-o buscar
incessantemente a reimplantação do Partido na região,
através dos contatos possíveis. Noites, madrugadas
e dias afora ele tentava reconstituir de memória os documentos,
entre eles os Estatutos, ao mesmo tempo em que procurava participar
dos raros eventos democráticos que eram programados. Corajosamente,
fundou, juntamente com outros militantes políticos, no início
de 1980, no bairro de Igapó, uma Sociedade de Defesa dos
Direitos Humanos - SDDH. A SDDH foi a forma encontrada para aglutinar
as pessoas e organizar as reivindicações populares,
que eram muitas.
Havia
uma movimentação revolucionária, onde as exigências
por democracia aumentavam e o povo clamava por uma Constituinte
que substituísse o autoritarismo da Emenda Constitucional
Nº 1, chamada de Constituição de 1969. Era conseqüência
da experiência dos anti-candidatos Ulisses Guimarães
e Barbosa Lima Sobrinho, para Presidente e Vice-Presidente da República
e outros momentos de luta nos meios partidários e estudantis,
uma vez que os sindicatos quase não participavam de atividades
que entrassem em confronto com a ditadura.
Algum
contato feito pelos partidos clandestinos eram avaliados muito cuidadosamente,
pois podiam tratar-se de ciladas da repressão. Tempo em que
até as informações tinham que ser decoradas
e não anotadas, para não deixar pistas. Ninguém
podia se arriscar. Depois de retomado o contato com o Partido, periodicamente
recebíamos a visita de membros do Comitê Central, que
traziam documentos e informações, além de realizar
reuniões completas para atualizar a todos. Eram antigos camaradas,
que traziam grandes experiências da luta revolucionária
e novos militantes, que estavam exercendo funções
importantes na política nacional ou regional. As reuniões
eram sempre um período de total tensão. O aparelho
tinha que ser mantido na mais perfeita camuflagem e o sigilo sobre
a presença do representante nacional era total. Nada podia
ser revelado nem mesmo aos familiares que não estivessem
envolvidos com o Partido, pois tratava-se de questão de vida
ou morte.
Glênio recebia sempre as informações necessárias
à compreensão do estabelecimento de novos níveis
de organização, acompanhando atentamente cada evento
da área estudantil, sindical e partidária. Para tanto,
articulou conosco e outros a distribuição semanal
da “Tribuna da Luta Operária”, que era uma nova
forma de construir o partido nas massas populares. Os movimentos
evoluíram e ele era figura sempre presente e influente na
articulação, que mobilizou sociedades de amigos de
bairros, movimento de mulheres, movimento contra a carestia, pastoral
operária, pastoral da juventude, associações
de servidores públicos, de estudantes e de professores, além
de partidos políticos de oposição e dos sindicatos
de trabalhadores. Onde havia espaço, estava ele levando a
sua palavra de luta, admirada e seguida cada vez por mais pessoas
que decidiam acompanhá-lo.
Em meio a toda aquela efervescência, participou de articulações
importantes para a redemocratização do Brasil. Pode
parecer normal ou comum nos dias de hoje o encontro de dirigentes
para coligações, mas à época era algo
bastante tenso: por tratar-se de decisões rodeadas de preocupação
com a segurança, e que tinham de ser baseadas nas normas
do partido, porém com a abertura suficiente para a tomada
de decisões dentro de novos cenários.
Sempre com o objetivo de levar ao povo a mensagem do seu partido
e do socialismo, Glênio Sá foi escolhido candidato
a vereador, deputado estadual e senador. O simples fato de ser candidato
e levar aquela mensagem já constituía uma demonstração
de desprendimento e coragem. Na campanha ao Senado, em 1990, foi
vítima de um acidente nunca esclarecido, em Jaçanã,
mas que é citado até como item da Operação
Condor. Morreu junto com o companheiro de partido Alírio
Guerra, outro destemido dirigente do partido. A sua morte chocou
os meios políticos potiguares e a despedida foi feita ao
som de memorável música que tem entre seus versos
a conhecida sentença: “Amigo é coisa prá
se guardar”.
Falar de Glênio é lembrar aquele seu andar firme, aquele
sorriso amável, aquele olhar sério pelos corredores
do campus da UFRN, pelas ruas de Igapó, do Alecrim e de Natal
inteira, pelos palanques das frentes democráticas e revolucionárias.
É recordar as reuniões nos aparelhos do PC do B, um
deles na minha própria casa, na sede do partido que começou
a instalar-se publicamente em prédio situado em frente ao
Instituto Padre Miguelinho, de onde se mudou para o Edifício
Leite, para uma casa da Avenida Deodoro e depois para o prédio
da antiga Rádio Nordeste. É vê-lo com agenda
e papéis na mão, conferindo os compromissos próprios
e de todos os que com ele e com o partido assumiam compromissos,
conferindo sempre com aquela postura digna de quem estava a cada
instante fazendo a sua parte, no dizer de Agostinho Neto colocando
“pedras nos alicerces do mundo”.
*Jornalista
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