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REDE
BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS |
VIVER EM SOCIEDADE: DIREITO À VIDA
Dalmo
Dallari
A vida é necessária para que uma pessoa exista. Todos os bens
de uma pessoa, o dinheiro e as coisas que ela acumulou, seu prestigio
político, seu poder militar; o cargo que ela ocupa, sua importância na
sociedade, até mesmo seus direitos, tudo isso deixa de ser importante
quando acaba a vida. Tudo o que uma pessoa tem perde o valor, deixa de
ter sentido, quando ela perde a vida. Por isso pode-se dizer que a vida
é o bem principal de qualquer pessoa, é O primeiro valor moral de
todos os seres humanos.
Não são os homens que criam a vida. No máximo os homens são
capazes de perceber que em determinadas condições, quando se juntam
certos elementos, a vida começa a existir Os cientistas podem até
juntar num vidrinho, numa proveta, os elementos que geram a vida, mas
não conseguem criar esses elementos. Na verdade, nenhum homem
conseguiu inventar ou criar a vida, dominar o começo da vida.
E como não é capaz de criar a vida de um ser humano, nenhum
homem deve ter o direito de matar outro ser humano, de fazer acabar a
vida de outro homem. A vida não é dada pelos homens, pela sociedade ou
pelo governo, e quem não é capaz de dar a vida não deve ter o direito
de tirá-la.
É preciso lembrar que a vida é um bem de todas as pessoas, de
todas as idades e de todas as partes do mundo. Nenhuma vida humana é
diferente de outra, nenhuma vale mais nem vale menos do que outra. E
nenhum bem humano é superior à vida. Por esses motivos não é justo
matar uma pessoa ou muitas pessoas para que alguns homens fiquem mais
ricos ou mais poderosos, para satisfazer as ambições ou a
intolerância de alguns, nem para que uma parte da humanidade viva com
mais conforto ou imponha ao resto do mundo seu sistema de vida.
Quando uma pessoa mata outra por ódio, por vingança ou para
obter algum proveito, está cometendo um ato imoral, está ofendendo o
bem maior, a vida, que a nenhum outro se iguala.
E quando uma pessoa ou um grupo de pessoas mata alguém, porque
a vítima era criminoso ou marginal, está cometendo, além disso, um
grave erro. O homicídio não resolve problemas individuais ou
sociais, mas, longe disso, é fonte de problemas. Aquele que matou
deverá responder por seu ato homicida e será punido por ele, pois só
o Estado tem o direito e o dever de julgar e punir os criminosos, dentro
da lei e com justiça, retirando o criminoso do meio da sociedade para
ensiná-lo a respeitar os valores humanos e sociais.
Além desses aspectos, é preciso ter em conta que a
repetição de crimes contra a vida pode gerar a idéia de que a vida
não é um bem muito importante, e com isso todas as vidas passam a ser
menos respeitadas.
A guerra é outra forma extremamente imoral de atentado contra
a vida humana. Na origem das guerras está, geralmente, a ambição
econômica dos que desejam vender armamentos ou conquistar
territórios, a ambição de mando ou vaidade dos que pretendem poder
político ou, então, está a intolerância de homens que querem impor
aos outros sua vontade, seus valores, seu sistema político e
econômico.
A guerra é imoral porque sacrifica vidas humanas com o
objetivo de satisfazer interesses mesquinhos. Além disso tudo, a guerra
é imoral porque consome, no comércio da morte, quantias elevadíssimas
que deveriam ser utilizadas para a promoção da vida.
Outra prática imoral e que atenta contra a vida é o
genocídio, muito em uso atualmente. Entende-se por genocídio a
matança de grupos populacionais com características diferenciadas, por
meios diretos ou indiretos. O genocídio pode ser motivado por ódio
racial ou por interesses políticos ou econômicos.
Um caso escandaloso de genocídio é o que está acontecendo
agora com os índios brasileiros. Sendo um grupo minoritário e pobre
na sociedade brasileira, os índios estão sendo expulsos de suas terras
com a desculpa de que estas são necessárias para o desenvolvimento
econômico.
O que realmente acontece é que há poucos anos se descobriu
que, se os ladrões aventureiros tivessem a ajuda de pessoas ligadas ao
governo, seria muito fácil tomar as terras que há séculos são
ocupadas pelos índios. Ao mesmo tempo, por meios de estudos realizados
com o uso de satélites equipados com aparelhos de grande alcance, foi
revelado que existem muitas riquezas minerais no solo e no subsolo dos
territórios indígenas.
Começou aí a matança dos índios para que as terras hoje
ocupadas por eles sejam dadas de presente aos aventureiros. Assim está
ocorrendo a morte de uma raça. Isso é um genocídio, pois é o
assassinato de um grupo racial.
Muitos outros atentados contra a vida humana estão ocorrendo
todos os dias, quase sempre pela ambição sem limites de alguns homens,
que provocam a morte de outros com o objetivo de ganhar dinheiro. A
poluição provocada por muitas indústrias e pelo uso de venenos e
substâncias tóxicas na agricultura é bem um exemplo de agressão à
vida.
Assim também a situação de pobreza em que são obrigadas a
viver milhões de pessoas é um atentado contra a vida. A morte não
ocorre de um momento para outro mas essas pessoas estão morrendo
rapidamente, um pouco por dia, por falta de alimentos, de assistência
médica e de condições mínimas para a conservação da vida.
O mesmo acontece com os trabalhadores que são obrigados a
trabalhar em condições perigosas ou muito prejudiciais à saúde.
Sua vida não está sendo respeitada, pois mediante o pagamento de um
salário o empregador fica com o direito de exigir que eles arrisquem a
vida constantemente ou vivam num ambiente de trabalho que apressará
sua morte
O respeito à vida de uma pessoa não significa apenas não
matar essa pessoa com violência, mas também dar a ela a garantia de
que todas as suas necessidades fundamentais serão atendidas. Toda
pessoa tem necessidades materiais, as necessidades do corpo, que se não
forem plenamente atendidas levarão à morte ou uma vida incompleta, que
não se realiza totalmente e que já é um começo de morte. Assim,
também, as pessoas têm necessidades espirituais, como a necessidade de
amor, de beleza, de liberdade, de gozar do respeito dos semelhantes, de
ter suas crenças, de sonhar, de ter esperança.
Todos os seres humanos têm o direito de que respeitem sua
vida. E só existe respeito quando a vida, além de ser mantida, pode
ser vivida com dignidade.
DIREITOS HUMANOS: HISTÓRICO, CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
(Palestra realizada, sem revisão do autor)
Há 15 anos mais ou menos, falar em Direitos Humanos era
considerado subversão. Corria-se o risco de sofrer processo com
fundamento na lei de Segurança Nacional. Houve também todo um trabalho
de mistificação que, entre outras coisas, associou a pregação aos
Direitos Humanos com o comunismo e com a defesa de criminosos e, em
conseqüência, estímulo à prática do crime. Mais ainda, uma
pregação que dificultava a ação das autoridades ... fazemos um
esforço enorme para apanhar um criminoso, quando o prendemos, os
Direitos Humanos atrapalham tudo... não permitem torturar, bater,
matar..
Em sua visita ao Brasil, Jimmy Carter, então presidente dos
Estados Unidos, falou em proteger os direitos humanos, o que abriu
novos espaços. Hoje, corre-se o risco do extremo oposto, o fisco de
falar demasiado e demagogicamente sobre os direitos humanos, o que pode
levar a um desgaste indesejável.
É muito importante que as pessoas que estão tratando dos
direitos humanos tenham pela convicção de que é realmente uma coisa
séria, fundamental para a convivência. Por circunstancias
históricas, fomos encaminhados para um sentido ultra-individualista
de vida que levou a uma atitude egoísta. É difícil que alguém se
sinta injustiçado porque o outro sofreu uma injustiça e, no entanto,
ficamos muito ofendidos quando somos nós a vítima de injustiças e os
outros não nos vêm apoiar.
O que seria o seu conteúdo, o que significa direitos Humanos?
Direitos humanos é uma forma sintética de nos referirmos a
direitos fundamentais da pessoa humana, aqueles que são essenciais à
pessoa humana e que precisa ser respeitada como pessoa. São aqueles
necessários para a satisfação das necessidades humanas fundamentais.
Respirar é uma necessidade básica, portanto a pessoa tem direito a um
ar puro e não ar poluído que pode ser o caminho da morte.
A presença dos direitos humanos através da história
Há divergências quanto ao primeiro aparecimento na história,
mas muitos autores referem-se à Grécia Antiga, citando um dos textos
de Sófocles em que Antigona responde ao rei que a interpela em nome
de quem sepultara, contra suas ordens, o irmão que fora executado: agi
em nome de uma lei que é muito mais antiga do que o rei, uma lei que se
perde na origem dos tempos, que ninguém sabe quando foi promulgada.
Nos grandes monumentos legislativos da humanidade, encontramos
inúmeros dispositivos que hoje, sem dúvida, colocaríamos como
direitos humanos. A Idade Média vai ter uma importância excepcional,
por uma série de fatores. E um momento de revisão de valores, de
confronto de objetivos temporais, imediatos e permanentes, muitos deles
já indicados como objetivos espirituais. O cristianismo passa a ter uma
influência muito grande na vida política, ora benéfica, ora
maléfica, e a Igreja passa a associar-se ao poder temporal.
No final da Idade Média aparece a grande figura de Santo
Tomás de Aquino, que discute diretamente a questão dos direitos
humanos, retomando Aristóteles e dando à sua filosofia a visão
cristã, inclusive dos direitos humanos. A fundamentação de Santo
Tomás é teológica: o ser humano tem direitos naturais que fazem parte
de sua natureza, pois lhe foram dados por Deus. Daí se desenvolve
toda uma linha teórica, política. Ocorrerá, no entanto, uma
ambigüidade na utilização deste conceito, levando até mesmo a
firmar-se e aceitar-se, na prática, que o direito dos reis era um
direito natural, de origem divina. De onde nasceu o absolutismo.
Na Idade Média, a partir das famílias daqueles que lutaram
contra as invasões dos bárbaros e com isso tornaram-se proprietários
de terras, constituiu-se uma aristocracia, sócia natural do poder real,
que buscava fundamento no direito natural para os seus privilégios. Foi
uma caminho aberto para toda sorte de violências, em última análise
até para a negação dos direitos humanos. O poder armado, o poder
econômico, proprietários de terras não respeitavam aqueles que não
desfrutavam desses privilégios. Não havia respeito pela pessoa
humana. Um grande número de seres humanos vivem à margem, não têm,
na verdade, nenhum direito, são explorados de todas as maneiras.
Nesse quadro, surgem instituições jurídicas novas como a que até
hoje é muito usada, o habeas corpus, que está presente na nova
Constituição brasileira., e que, naquela época, determinava que a
pessoa acusada fosse apresentada para julgamento público, pois que os
nobres e aristocratas prendiam e faziam a sua própria justiça.
Nos fins da Idade Média, surge uma nova realidade histórica -
a burguesia. Cessadas as invasões dos bárbaros, cessados os grandes
riscos, a proteção dos senhores feudais se tornara dispensável, e
as pessoas começam a voltar para as cidades e os burgos passam a se
desenvolver a burguesia vai crescendo, dedica-se ao comércio, às
funções de emprestador de dinheiro, de banqueiro, vai tornando-se
rica, forte economicamente, mas marginalizada do poder político, o que
lhe faltava para defender direitos pessoais e seu patrimônio. Na
Inglaterra, onde existia o parlamento desde o século XIV mas formado
somente por nobres e prelados, todos os proprietários, a burguesia
consegue a criação de uma Câmara dos Comuns, o que perdura até hoje.
O crescimento político da burguesia favorece o crescimento dos direitos
humanos.
No século XVII, ocorre a primeira grande revolução burguesa,
que se deu na Holanda, quando aparecem grandes pensadores liberais como
Espinoza, grandes pregadores da liberdade como direito humano. Com essa
revolução, instala-se na Holanda, pela primeira vez, um governo de
comerciantes. Não foi por acaso que os holandeses vieram ao Brasil.
Vieram em busca de comércio, de utilização de seu potencial
econômico. A Holanda vem a ter papel relevante na criação do direito
internacional.
Foi o burguês, associado aos pensadores liberais, quem
levantou modernamente a liberdade como um valor. Os burgueses, ao final
do século XVIT, conseguem fazer com que a Câmara dos Comuns se torne
mais importante que a Câmara dos Lords, o que prevalece até hoje. No
início do século XVIII, veio o Parlamentarismo que nasceu do quadro
burguês em ascensão política e que coloca o poder nas mãos do
Primeiro ministro e não do rei. Nesse mesmo século, surge a criação
dos Estados Unidos da América, através de uma revolução claramente
burguesa. A Constituição norte-americana é uma Constituição feita
por comerciantes para comerciantes. No final do século XVIII vem a
Revolução Francesa, também burguesa.
Refletindo historicamente, verificamos que os direitos humanos
foram concebidos como direitos naturais, impostos por Deus e vinham
sendo utilizados contra os burgueses, em favor dos reis, em favor da
aristocracia, para cometer violências. O burguês não rejeita esses
direitos mas os reclama para si também. Aparecem pensadores,
considerados liberais, como Espinoza, Locke, Rousseau, Montesquieu, que
pregam a existência dos direitos fundamentais como a liberdade e a
igualdade. O conceito de igualdade nessa época não é o mesmo de hoje,
pois a Constituição norte-americana admitia a escravidão.
Rejeita-se a fundamentação teológica e busca-se um
fundamento racionalista, que vai ter um peso extraordinário. O
racionalismo não rejeita os direitos naturais mas muda o seu
fundamento. Disse Hugo Grocius que ainda que Deus não existisse, o
homem teria direitos naturais. O fundamento portanto não está em
Deus mas na razão. Isto é o racionalismo. Em conseqüência, passou-se
a valorizar a lei, de tal modo que, no século XVII, chegou-se a dizer
que um governo da sociedade deve ser um governo de lei e não um governo
de homens, afirmando que o homem é arbitrário e a lei não, pois é
igual para todos.
Será mesmo? Na verdade, os teóricos do racionalismo quando
falavam em lei, estavam tomando a lei natural no sentido de
Aristóteles, de 5. Tomás de Aquino e não de uma lei criada
arbitrariamente pelo Parlamento ou Executivo burguês, ou por quem
quer que seja. Acreditava-se numa lei natural que a razão poderia
descobrir. Percebe-se pela razão que o ser humano precisa ser livre,
precisa ter liberdade de expressão, de locomoção, e cada uma destas
necessidades corresponde a uma lei natural.
O século XVIII está muito presente em nossa Constituição,
que é concebida como um acordo entre iguais, quando na realidade não
temos a igualdade.
Temos um Parlamento que não funciona, porque foi concebido
para uma sociedade do século XVIII e estamos no século XXI. Porque
não usamos o computador para saber a opinião das pessoas, pois temos a
loteria esportiva que é a captação de opiniões. Porque só para a
opinião esportiva?
Na atual Constituição brasileira, se dá muita ênfase à
liberdade e quase nada à igualdade. Como fica a liberdade para quem
não tem dinheiro? Será que adianta dizer a um favelado você é livre,
o Estado não vai interferir na sua vida, use sua miséria como você
quiser?
Quando no Brasil se inicia o processo intenso de
industrialização, as indústrias se localizam nas cidades que passam a
ser vistas como centros de riqueza, para onde se desloca muita gente,
acima das disponibilidades de trabalho. Muita gente vai para o centro da
riqueza mas passa a formar a periferia que não penetra no centro da
riqueza. Permanece na periferia econômica que é também a periferia
social, não recebe os benefícios sociais. Estou falando com Pessoas da
Rede Pública, que sabem que a escola pública é muito mal tratada, mas
a escola pública da periferia é ainda mais mal tratada. É menos
visível, recebe menos apoio. Há inclusive perigo de invasão, de
assalto, até de assassinato de alunos.
A vertente liberal da revolução burguesa admite a liberdade
como primeiro valor A desigualdade que foi produto de uma sociedade
livre não tem importância. Já os duas coisas juntas.
- será possível ter-se uma legislação que respeite os
Direitos Humanos, ou as leis irão sempre beneficiar os ricos, os mais
fortes, os mais poderosos? A Constituição brasileira, que trouxe uma
série de coisas muito boas para os Direitos Humanos, a par de coisas
extremamente negativas, não mostra que a lei pode ser a favor dos
Direitos Humanos?
- será possível criar
uma sociedade justa por meios pacíficos ou é inevitável uma luta
armada?
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