
Convenção de Genebra
(1864)
Fábio Konder Comparato
Direitos
Internacional Humanitário
Ela inaugura o que se convencionou chamar direito humanitário, em matéria
internacional; isto é, o conjunto das leis e costumes da guerra, visando
minorar o sofrimento de soldados doentes e feridos, bem como de
populações civis atingidas por um conflito bélico. É a primeira
introdução dos direitos humanos na esfera internacional. O direito da
guerra e da paz, cuja sistematização foi feita originalmente por Hugo
Grócio em sua obra seminal no início do século XVII (Ius Belli ac Pacis), passou, desde
então, a bipartir-se em direito preventivo da guerra (ius ad bellum) e direito da
situação ou estado de guerra (ius
in bello), destinado a regular as ações das potências combatentes.
A evolução posterior, no entanto, levou ao reconhecimento
da injuricidade objetiva da guerra como solução de conflitos
internacional, quaisquer que sejam as razões de seu desencadear. O
direito contemporâneo, a partir da Carta de São Francisco, instituidora
das Nações Unidas, restringiu sobremaneira o conceito de guerra justa,
elaborado pelos doutores da Igreja na Idade Média.
Com base nisto, tem-se insistido ultimamente na tese de que o
direito do estado de guerra (ius in
bello) já não poderia existir, por ser uma contradição nos termos:
se a guerra constitui em si mesma um ilícito e, mais do que isso, um
crime internacional, não faz sentido regular juridicamente as operações
bélicas – o Direito não pode organizar a prática de um crime.
Tal argumento, impressionante à primeira vista pelo seu
aparente rigor lógico, não é contudo aceitável. Se a guerra, no estado
presente do direito internacional, constitui em si mesma um crime, nada
impede que se reconheça a prática, por qualquer das partes beligerantes,
de outros ilícitos durante o desenrolar do conflito. A violação dos
princípios e normas do direito humanitário, durante uma conflagração
armada, pode por conseguintes representar, ele também, em crime de
guerra. No julgamento de 27 de junho de 1986 no caso Nicarágua v. Estados
Unidos, de resto, a Corte Internacional de Justiça reconheceu plena
vigência dos “princípios gerais de base do direito humanitário”.
A Convenção assinada em Genebra em 22 de agosto de 1864,
unicamente por potências européias, e destinada a “melhorar a sorte
dos militares nos exércitos em campanha”, originou-se dos esforços de
uma comissão reunida em torno do suíço Henry Dunant. Em livro publicado
em 1862 e que teve ampla repercussão (Un Souvenir de Solférino), ele
relatou como organizara, durante a batalha de Solferino de junho de 1859
entre os exércitos austríacos e franco-piemonteses, os serviços de
pronto-socorro para os soldados feridos de ambos os lados.
A comissão genebrina, que teve na origem da convenção de
1864 foi revista, a fim de se estenderem seus princípios aos conflitos
marítimos (Convenção de Haia de 1907) e aos prisioneiros de guerra
(Convenção de Genebra de 1929). Em 1925, outra Convenção, igualmente
assinada em Genebra, proibiu a utilização , durante a guerra, de gases
asfixiantes ou tóxicos, bem como de armas bacteriológicas. As
convenções sobre soldados feridos e prisioneiros de guerra foram
revistas e consolidadas em três convenções celebradas em Genebra em
1949, sob os auspícios da Comissão Internacional da Cruz Vermelha. Na
mesma ocasião, foi celebrada uma Quarta convenção, tendo por objetivo a
proteção da população civil em caso de guerra.
O Texto
Sua
Majestade o Rei dos Belgas, Sua Alteza Real o grão-duque de Baden, Sua
Majestade o Rei da Dinamarca, Sua Majestade a Rainha da Espanha, Sua
Majestade o Imperador dos Franceses, Sua Alteza Real o grão-duque de
Hesse, Sua Majestade o Rei da Itália, Sua Majestade o Rei dos Países
Baixos, Sua Majestade o Rei de Portugal e Algarve, Sua Majestade o Rei da
Prússia, a Confederação Suíça, Sua Majestade o Rei de Wurtermberg:
Animados, por igual, do desejo de suavizar, tanto quanto
deles dependa, os males irreparáveis da guerra, de suprimir os rigores
inúteis e melhorar a sorte dos militares feridos nos campos de batalha,
resolveram concluir uma Convenção com esse objetivo e nomearam seus
Plenipotenciários, a saber:
(...)
os quais, após terem apresentado seus poderes, encontrados
em boa e devida forma, convencionaram os artigos seguintes:
artigo 1º As ambulâncias e os hospitais militares serão
reconhecidos como neutros e como tal protegidos e respeitados pelos
beligerantes, durante todo tempo em que neles houver doentes e feridos.
A neutralidade cessará, se essas ambulâncias ou hospitais
forem guardados por uma força militar.
Artigo 2º O pessoal dos hospitais e das ambulâncias, nele
incluídos a intendência, os serviços de saúde, de administração, de
transporte de feridos, assim como os capelães, participarão do
benefício da neutralidade, enquanto estiverem em atividade e subsistirem
feridos a recolher ou a recorrer.
Artigo 3º As pessoas designadas no artigo procedente
poderão, mesmo após a ocupação pelo inimigo, continuar a exercer suas
funções no hospital ou ambulância em que servirem, ou retirar-se para
retomar seus postos na corporação a que pertencem,
Nesses circunstâncias, quando tais pessoas cessarem suas
funções, elas serão entregues aos postos avançados do inimigo, sob a
responsabilidade do exército de ocupação.
Artigo 4º Tendo em vista que o material dos hospitais
militares permanece submetido às leis de guerra, as pessoas em serviço
nesses hospitais não poderão, ao se retirarem, levar consigo os objetos
que constituem propriedade particular dos hospitais.
Nas mesmas circunstâncias, ao revés, a ambulância
conservará seu material.
Artigo 5º Os habitantes do país, os quais socorrem os
feridos, serão respeitados e permanecerão livres.
Os generais das Potências beligerantes terão por missão
prevenir os habitantes do apelo assim feito ao seu sentimento de
humanidade e da neutralidade que lhe é conseqüente. Todo ferido,
recolhido e tratado numa casa particular, conferirá salvaguarda a esta
última. O habitante que recolher feridos em sua casa será dispensado de
elogiar as tropas, assim como de pagar uma parte dos tributos de guerra
que lhe seriam impostos.
Artigo 6º Os militares feridos ou doentes serão recolhidos
e tratados, qualquer que seja a nação à qual pertençam.
Os comandantes em chefe terão a faculdade de entregar
imediatamente, aos postos avançados do inimigo, os militares feridos em
combate, quando as circunstâncias o permitirem e desde `haja
consentimento de ambas as partes.
Serão repatriados em seus países aqueles que, uma vez
curados, forem reconhecidos como incapazes de servir.
Os outros poderão igualmente ser repatriados, sob a
condição de não retomarem armas durante toda a guerra.
As forças de retirada, como o pessoal que as dirige,
ficarão garantidas por uma neutralidade absoluta.
Artigo 7º Uma bandeira distinta e uniforme será adotada
pelos hospitais e ambulâncias, bem como durante as retiradas. Ela deverá
ser, em qualquer circunstância, acompanhada da bandeira nacional.
Uma braçadeira será igualmente admitida para o pessoal
neutro; mas a sua distribuição ficará a cargo da autoridade militar.
A bandeira e a braçadeira terão uma cruz vermelha sobre
fundo branco.
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