
A CONSTITUIÇÃO FRANCESA DE 1848
Fábio Konder Comparato
No
início de 1848 – o ano do Manifesto Comunista – um furioso vendaval
político varreu a Europa Ocidental, ameaçando deitar por terra, em pouco
tempo, o edifício conservador e imperial, que o Congresso de Viena
erigira em 1815. As palavras de ordem eram: nacionalismo, trabalho e
liberdade. Iniciando-se com a revolução popular de Paris em 24 de
fevereiro, em questão as poucas semanas o movimento estendeu-se, como um
rastilho de pólvora, ao sudoeste da Alemanha, Baviera, Áustria, Hungria,
Lombardia, os Estados Pontifícios e a Itália meridional. Foi a “primavera
dos povos”, que retrocedeu, porém, em pouco tempo, a um rigoroso
inverno político. Com a mesma velocidade do seu desencadeador, o
movimento insurrecional foi sufocado e seus líderes mortos, presos ou
deportados.
Na
França, o descontentamento do operariado urbano com os excessos
capitalistas do reinado de Luís Felipe de Orléans, instalado no trono
desde 1830, foi singularmente reforçado pelo agravamento da fome no
campo, em conseqüência da desastrosa colheita de 1846-47.
A
revolta popular de Paris, irrompida em 23 de fevereiro de 1848, visou
claramente não só à derrubada do rei, mas à reinstauração da
República, nos moldes do espírito revolucionário de 1792-93. Instalado
um governo provisório, do qual participava o operário Albert – fato
altamente simbólico, que não se viu em nenhum momento da grande
revolução do final do século XVIII -, decidiu-se convocar de imediato
uma assembléia constituinte.
As
eleições foram fixadas para dois meses após, ou seja, 23 de abril, sem
que os líderes revolucionários tivessem tempo suficiente para
desenvolver uma campanha de esclarecimento do eleitorado. O comparecimento
às urnas foi considerável – 7.800.000 votantes, num total de 9.400.000
–, o que significou uma votação maciça de camponeses, naturalmente
inclinados à ordem e à Segurança. Na composição da Assembléia, a
maioria absoluta era formada pelos deputados do centro, chamados “republicanos
moderados” – 500, num total de 880 –, não tendo a esquerda
preenchido mais do que uma centena de cadeiras, as demais sendo repartidas
entre os monarquistas.
A
cAorrelação parlamentar de forças foi, desse modo, muito desfavorável
àquelas que haviam liderado o movimento revolucionário. Acresce notar
que a grande iniciativa tomada pelo governo provisório para solucionar o
problema do desemprego urbano – a criação em Paris da “fábricas
nacionais” onde passaram a trabalhar 100.000 operários – foi
abruptamente interrompida logo no mês de junho, suscitando uma revolta
popular que o exército reprimiu ferozmente: 3.000 mortos. 5.000 feridos e
12.000 deportados para a Argélia.
Atuando
sob a impressão profunda desses sucessos trágicos, a assembléia
manifestou grande resistência à reintrodução, no texto constitucional
em elaboração, dos direitos sociais declarados em 1791 e 1793, tal como
proposto pelos deputados de esquerda.
As
discussões mais acaloradas giraram em torno do reconhecimento de um direito ao trabalho. Adolfo Thiers (que iria chefiar o governo que
negociou a paz com a Prússia vencedora, e esmagou no sangue a Comuna de
Paris, em 1871) qualificou esse direito como uma “heresia, uma falsa
teoria, já condenada pela experiência”. O pretenso direito ao
trabalho, acrescentou, acabaria por “destruir o espírito de economia”,
pois os operários, vendo seu futuro assegurado, deixaria de depositar
suas economias nas contas populares de poupança. Quanto a Torqueville,
respondendo ao deputado Mathieu, para quem o direito ao trabalho era o “direito
da fome”, advertiu que essa proposta implicava transformar o Estado em
proprietária de todos os beAns, ou seja, “o comunismo, uma nova forma de
servidão”. Para o celebrado autor da Democracia na América, a
Assembléia deveria seguir o exemplo dos Estados Unidos, onde de fato se
aplicava a “verdadeira democracia”.
A
constituição de 1848, por tudo isso, foi composta como uma obra de
compromisso. De um lado, entre o liberalismo – claramente afirmado com a
declaração preambular de redução gradual das despesas públicas e dos
impostos – e o socialismo democrático. Compromisso, de outro lado,
entre os valores conservadores – a Família, a Propriedade e a Ordem
pública, invocados com letra maiúscula no inciso IV do preâmbulo – e
o progresso e a civilização (preâmbulo, inciso I). É interessante
observar, a esse respeito, que, enquanto as anteriores declarações de
direitos da Revolução Francesa não fizeram referência alguma à
família, o preâmbulo da Constituição de 1848 menciona-a nada menos do
que quatro vezes. Por outro lado, a orientação do ensino público, como
dispõe o art. 13, não é para a formação do cidadão, mas sim para o
mercado de trabalho.
Seja
como for, malgrado a falta de firmeza das fórmulas empregadas, não se
pode deixar de assinalar que a instituição de deveres sociais do Estado
para com a classe trabalhadora e os necessitados em geral, estabelecida
nesse mesmo art. 13, aponta para a criação do que viria a ser o Estado
do Bem-Estar Social, no século XX.
Além
disso, duas disposições sobre direitos fundamentais merecem ser
ressaltadas. Pela primeira vez, na história constitucional, a pena de
morte é abolida em matéria política (art. 5). Por outro lado,
repristinando o Decreto da Convenção de 1793, revogado pelo consulado em
1802, proibiu-se a escravidão em “todas as terras francesas” (art.
6).
A
par desses inegáveis avanços no campo de direitos humanos, a
Constituição de 1848 foi, no entanto, responsável por um dos piores
abusos cometidos na França no campo das relações exteriores, ao
declarar que “o território da Argélia e das colônias é território
francês” (art. 109), uma disposição claramente contraditória com o
princípio afirmado no preâmbulo, segundo o qual a República Francesa
“não emprega nunca suas forças contra a liberdade de povo algum”.
O Texto
Em
presença de Deus e em nome do povo Francês, a Assembléia nacional
proclama:
I
– A França constitui-se em República. Ao adotar esta forma definitiva
de governo, ela tem por objetivo caminhar mais livremente na via do
progresso e da civilização, assegurar uma repartição sempre mais
eqüitativa dos encargos individuais e das vantagens da sociedade,
aumentar as facilidades de vida de todos pela redução gradual das
despesas públicas e dos impostos, bem como fazer com que todos os
cidadãos, sem nova comoção, pela ação sucessiva e constante das
instituições e das leis, acedam a grau sempre mais elevado de
moralidade, de luzes e de bem-estar.
II
– A República francesa é democrática, una e indivisível.
III
– Ela reconhece direitos e deveres anteriores e superiores às leis
positivas.
IV
– Ela tem por princípio a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade.
Tem
por base a Família, o Trabalho, a Propriedade, a Ordem Pública.
V
– Ela respeita as nacionalidades estrangeiras, assim como entende fazer
respeitar a sua; não empreende nenhuma guerra com intuito de conquista e
não emprega jamais suas forças contra a liberdade de povo algum.
VI
– Deveres recíprocos obrigam os cidadãos para com a República e a
República para com os cidadãos.
VII
– Os cidadãos devem amar a Pátria, servir a República, defendê-la
com suas próprias vidas, participar dos encargos do Estado na proporção
de sua fortuna; devem assegurar, pelo trabalho, os meios de vida, bem
como, pela previdência, os recursos para o futuro; devem concorrer para o
bem-estar comum, ajudando-se fraternalmente uns aos outros, assim como
para a ordem geral, observando as leis escritas que regem a sociedade, a
família e o indivíduo.
VIII
– A República deve proteger os cidadãos em sua pessoa, sua família,
sua religião, sua propriedade, seu trabalho, bem como pôr ao alcance de
qualquer um a instrução indispensável a todos os homens; deve, por meio
de uma assistência fraterna, assegurar os meios de subsistência aos
cidadãos necessitados, quer proporcionando-lhes trabalho nos limites dos
seus recursos, quer prestando, na falta da família, socorro aos que
estejam em condições de trabalhar.
(...)
Art.
5. A pena de morte é abolida em matéria política.
Art.
6. A escravidão não pode existir em nenhuma terra francesa.
(...)
art.
13. A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho e de
indústria. A sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do trabalho,
pelo ensino primário gratuito profissional, a igualdade nas relações
entre o patrão e o operário, as instituições de previdência e de
crédito, as instituições agrícolas, as associações voluntárias e o
estabelecimento, pelo Estado, os Departamentos e os Municípios, de obras
públicas capazes de empregar os braços desocupados; ela fornece
assistência às crianças abandonadas, aos doentes e idosos sem recurso e
que não podem ser socorridos por suas famílias.
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