
A
Gramática dos Direitos Humanos
Oscar
Vilhena Vieira
1.
O que significa ter um direito?
2.
O Papel dos Direitos
3.
Prevalência dos Direitos
4.
Crítica a Idéia de Direitos Humanos
5.
A Erosão dos Direitos Humanos
6.
Direitos Humanos no Mundo Contemporâneo. Uma Análise
Normativa
1.
O que significa ter um direito ?
Embora
todos os dias falemos sobre direitos parece ser mais fácil
compreender o que é ter um objeto ou poder criticar o governo
livremente, do que é ter um direito à propriedade ou à
liberdade de expressão. O objeto nós podemos ver e pegar e
criticar o governo, nós simplesmente criticamos, mas o direito é
algo mais abstrato. Por outro lado, nós sabemos que as pessoas não
podem pegar o que é nosso ou
impedir a nossa crítica sem a nossa permissão ou sem uma
excelente razão. Ou seja, as demais pessoas têm o dever de
respeitar a nossa propriedade ou a nossa liberdade, porque estes são
nossos direitos. Daí se dizer que ter um direito é ser beneficiário de deveres de
outras pessoas ou do Estado.
Assim se eu tenho o direito de andar pelas ruas, conclui-se
que as demais pessoas têm, por alguma razão, o dever de
respeitar esse meu direito, não podendo, restringir a minha
liberdade. Se eu sou um deficiente físico, por exemplo, e as calçadas
não tem rampas que permitam que
me locomova com minha cadeira de rodas, alguém está
deixando de cumprir o seu dever e, portanto, restringindo ou
violando o meu direito. Se tenho direito à educação, isto
justifica que alguém tenha uma obrigação, para comigo, de
estabelecer escolas e bibliotecas, treinar e pagar professores,
para que eu possa aprender. Se cada um de nós tem o direito de
votar, estes votos devem ser levados em consideração na escolha
dos que irão nos governar e, mais do que isto, significa que
aqueles que foram eleitos têm uma obrigação de nos representar.
Temos
direitos a coisas distintas, como à propriedade, à liberdade de
expressão, ao voto, à educação ou à saúde, à prestação
jurisdicional. Esses direitos podem aparecer formalmente como:
direito-pretensão, liberdade, poder, ou imunidade, gerando, por
sua vez, obrigações correlatas em terceiros, na forma de: dever,
não-direito, sujeição e incompetência. Ou, seja:
1.
A tem um direito-pretensão
a X, em relação a B, se e somente se B tem um dever
de X em relação a A;
2.
A tem uma liberdade
a X, em relação a B, se e somente se B tem um não
direito de que A deva X;
3.
A tem um poder a
X, em relação a B, se e somente se B está
sujeito a que sua posição jurídica possa ser alterada por A, ao
realizar X;
4.
A tem uma imunidade
a X, em relação a B, se e somente se B tem uma incompetência
para alterar a posição de A em relação a X.
Portanto,
para cada um desses direitos existirá distintas formas de
deveres. Nesse sentido é muito difícil falar em direito sem
imediatamente pensar em uma obrigação ou em um dever, que pode
significar simplesmente o dever de se abster de uma determinada
conduta (não torturar), como na obrigação de fazer algo (obrigação
da polícia de investigar um caso de tortura).
Destaque-se,
ainda, que para cada um desses direitos há distintas pessoas ou
instituições que estarão obrigadas a respeitá-los. Há
direitos que obrigam apenas uma pessoa, como os derivados de um
contrato. Outros obrigam o Estado, como o direito à educação básica,
expresso em nossa Constituição. Há direitos, por sua vez, que
criam obrigações universa is, ou seja, que obrigam a todas as
pessoas e instituições. O direito a não ser torturado, como
reconhecido por diversos instrumentos, entre os quais a Convenção
Contra a Tortura, é um bom candidato a essa categoria.
2.
O Papel dos Direitos
Os
direitos, como hoje compreendidos, constituem uma formidável
construção da modernidade, que está diretamente associada ao
sentimento de que as pessoas não podem dispor de uma esfera de
proteção, que assegure determinados valores ou interesses
fundamentais.
A
principal distinção entre a moderna linguagem dos direitos, que
surge com as declarações e constituições do final do século
XVIII, e os privilégios existentes no período medieval, é a idéia
de universalidade e reciprocidade intrinsecamente ligada aos
direitos. Enquanto os privilégios constituem proteção de
interesses de um determinado grupo ou classe, os direitos se
apresentam como algo que deve a todos proteger. No mais os
direitos tende m a estabelecer relações horizontais e de
reciprocidade, em contrapartida com as relações verticais e
hierarquizadas decorrentes de um universo regulado por privilégios.
Evidente que essas características da gramática dos direitos se
colocam num plano ideal, e muitas vezes o que chamamos de direitos
funcionam na realidade como privilégios. No entanto, ainda no
plano ideal, a adoção de um sistema de direitos permite o
estabelecimento de relações de reciprocidade entre os diversos
sujeitos, ou seja, permite a construção de um mundo fundado na
igualdade entre os seres humanos.
A
idéia Kantiana de que "toda a ação que por si mesma ou por
sua máxima permite que a liberdade de cada indivíduo possa
coexistir com a liberdade de todos os demais de acordo com uma lei
universal é direito"
encontra na gramática dos direitos um instrumento indispensável
a sua realização. O papel formal dos direitos de harmonizar e
preservar uma esfera de interesses da pessoa, também pode ser
aceita, com ponderações, por alguns utilitaristas. A distinção
básica se dará mais em função do fundamento último do sistema
de direitos, do que em relação a sua função de mediação de
relações de reciprocidade. Enquanto para Kant os direitos servem
para preservar e realizar a autonomia, para Stuart Mill os
direitos devem harmonizar interesses
e não valores pretensamente intrínsecos. Mill renuncia a
"...idéia de direito abstrato, como algo independente
da utilidade. Eu encaro a utilidade como última instância em
todas as questões éticas...utilidade baseada nos interesses
permanentes do homem..."
Nesse sentido os direitos são instrumentos de realização de
interesses e não de valores como a dignidade ou autonomia.
Isto
só é possível porque os direitos e o Direito (o chamado sistema
jurídico) em si são criações voltadas a organizar ou a mediar
relações entre pessoas. Neste sentido não seria incorreto dizer
que os direitos são uma conseqüência do fato das pessoas atribuírem
umas as outras uma esfera de valores e decidirem, ainda que
implicitamente, que isto deve ser respeitado, seja por uma razão
ética ou utilitária. É desta relação de reciprocidade, onde
nos vemos como pessoas dignas de direitos - na mesma medida que
reconhecemos estes mesmos direitos as outras pessoas - que surge
todo o sistema de direitos no sentido contemporâneo. Para alguns,
é dessa mesma relação de reciprocidade que surge o próprio
Direito enquanto sistema.
Assim,
o papel dos direitos é assegurar esferas de autonomia ou
dignidade, para os Kantianos, ou de interesses, para os
utilitaristas, que permitam aos seres humanos se relacionarem e
conviverem sem que essa liberdade ou que esses interesses se
encontrem constantemente ameaçados pelas liberdades e interesses
dos demais. Invocar valores ou interesses a partir da linguagem
dos direitos significa reivindicar um situação especial para
esses valores ou interesses.
3.
Prevalência dos Direitos
As
pessoas que têm um direito encontram-se, normalmente, numa posição
mais confortável em relação àqueles que tem obrigações. Como
num jogo de baralho, onde há determinadas cartas que têm mais
valor que as cartas dos adversários, a presença de direitos é
um trunfo.
Assim, quando numa disc ussão reivindicamos um interesse ou
um valor que nos diz respeito, como a integridade física, que é
protegida por um direito, esta reivindicação deve prevalecer
sobre outros valores ou interesses que não são protegidos por
direitos. Por exemplo: reduzir os gastos do Estado pode ser um
objetivo ou um interesse legítimo do governo, mas isto não pode
ser feito fechando escolas ou deixando de pagar professores, pois
o governo tem um dever de prestar este serviço, o que decorre do
direito que todas as crianças e jovens têm à educação. O
mesmo exemplo poderia ser dado quanto ao objetivo de reduzir a
criminalidade, que é uma meta mais do que desejável, mas isto não
pode ser feito por intermédio da tortura ou da eliminação de
suspeitos, pois todas as pessoas têm direito a sua integridade física
e moral, portanto o Estado deve respeitá-las. Não se busca aqui
argumentar que os direitos, em geral, sejam absolutos, que prevaleçam
sobre todos os outros interesses; por outro lado deve-se destacar
que muitas vezes os direitos encontram-se em tensão uns com os
outros.
Cabem
também destacar que a relação entre direitos e obrigações é
mediada e não automática. Daí a adequação da proposição de
Raz de que
ter um direito significa ter uma boa justificativa, uma razão
suficiente, para que outras pessoas estejam obrigadas, e portanto
tenham deveres, em relação aquela pessoa que tem um direito. Os
direitos não geram obrigações diretas nas outras pessoas, mas
razões para que as outras pessoas se encontrem obrigadas.
Neste
sentido um direito não se confunde com uma presunção absoluta,
ou com a idéia de uma esfera intransponível e incompatível com
as liberdades e direitos alheios. Se direitos só existem em
sociedade
e se pressupõem uma decisão da sociedade de preservar certos
valores ou interesses por intermédio do meio legal, é
fundamental que eles sejam em primeiro lugar capazes de se
conciliar com direitos alheios e em segundo lugar
compatibilizar-se com interesses coletivos, ainda que numa posição
de superioridade presumida em relação a outros interesses da
sociedade. Daí a importância de se compreender os direitos como
uma razão ou como uma justificativa suficientemente importante
para que os outros tenham o dever de respeitá-los.
Entender
os direitos desta forma nos facilita compreender de que maneira os
direitos se harmonizam entre si e com outros interesses legítimos
existentes em uma sociedade. Num mundo onde existem uma profusão
de valores e interesses e porque não dizer uma profusão de
valores e interesses com presunção de legitimidade, somente
alguns desses valores e interesses são reconhecidos como
direitos. Desta forma, quando houver uma competição entre
diversos valores e interesses, aqueles que forem protegidos por
direitos, tem uma boa razão para prevalecerem sobre os demais
valores e interesses.
Mas
mesmo valores e interesses protegidos como direitos muitas vezes
podem ceder espaço para outros que se demonstram, numa
determinada situação, mais relevantes. É só pensar nos limites
que as democracias contemporâneas põem sobre o direito da
propriedade. O direito à propriedade presume uma obrigação dos demais de
respeito à propriedade, porém, razões como o bem estar coletivo
podem limitar o uso da e impor encargos à mesma. Num
conflito entre valores e interesses, reivindica-los por intermédio
da gramática dos direitos, significa estabelecer uma prioridade
destes interesses e valores guardados por direitos sobre outros
desprovidos de uma proteção especial.
Essa
definição de direitos, além de nos auxiliar a compreender o
papel dos direitos como fundamento para a ação individual e
coletiva, também nos permite solucionar conflitos entre direitos.
Se adotássemos uma definição mecânica, em que direitos impõe
deveres diretamente, ficaria difícil explicar porque, na prática,
muitas vezes os sujeitos de direitos vêem seus direitos
legitimamente limitados pelos direitos dos outros. Se tenho
direito a plena liberdade de expressão, como justificar que este
direito possa ser restringido, se pela minha definição mecânica,
todas as outras pessoas se encontram obrigadas automaticamente a
respeitar tal liberdade? Caso razões como a
integridade moral de outras pessoas ou mesmo a segurança
da coletividade possam ser legitimamente invocadas para restringir
o meu direito à liberdade de expressão, a linguagem dos direitos
como fonte geradora de deveres, ficaria absolutamente destituída
de sentido. Porém se adotarmos uma definição de direito que não
seja mecânica, mas que transforme as pretensões articuladas por
intermédio da linguagem dos direitos, em razões prioritárias,
razões com pretensão de superioridade, então poderemos entender
porque em face de outras razões também importantes, em
determinadas circunstâncias, nossos direitos são algumas vezes
obrigados a se conciliar com razões adversas.
Portanto,
se é correto afirmar que o direito estabelece um conjunto de razões
que cada um de nós deve levar em consideração, em conjunto com
outras ordens de razões, antes de agir, deve-se ter em mente que
as razões articuladas pelos direitos são sempre prioritárias,
devendo se encontrar entre as primeiras a serem consideradas por
cada um de nós antes de tomarmos uma decisão. Constituem, assim, razões a priori, que devem ter um peso maior do que
o das demais razões.
3.Fundamentos
Filosóficos dos Direitos e Humanos
Quando
associamos a expressão “humanos” a idéia de “direitos”,
a presunção de superioridade, inerente aos direitos em geral,
torna-se ainda mais peremptória, uma vez que esses direitos
buscam proteger valores e interesses indispensáveis à realização
da condição de humanidade de todas as pessoas. Agrega-se, assim,
força ética a idéia de direitos, passando estes direi tos a
servir de veículos aos princípios de justiça de uma determinada
sociedade.
Numa
definição preliminar os
direitos humanos poderiam ser compreendidos como razões peremptórias,
pois eticamente fundadas, para que outras pessoas ou instituições
estejam obrigadas, e portanto tenham deveres, em relação aquelas
pessoas que reivindicam a proteção ou realização de valores,
interesses e necessidades essenciais à realização da dignidade,
reconhecidos como direitos humanos.
Alguns
destes valores, interesses e necessidades, protegidos como
direitos humanos, são tão relevantes que não seria incorreto
afirmar que se sobrepõem as demais ordens de valores, interesses
e necessidades. O direito de não ser torturado, por exemplo, se
coloca como um obstáculo absoluto face aos interesses do Estado
de descobrir um crime. A liberdade de religião também é uma
vedação a que o Estado determine uma religião oficial. Porém o
exercício da liberdade religiosa não pode ser utilizado de forma
a infringir a liberdade das outras pessoas. Daí a necessidade de
conciliação entre direitos.
A
grande dificuldade, que tem monopolizado os debates entre filósofos
e teóricos do direito, pelo menos nestes últimos dois milênios,
é saber que direitos são estes, que se sobrepõem aos demais
interesses e valores, de onde eles vêm e se precisam de alguma
forma de reconhecimento positivo para que possam existir.
Exemplo
desta discussão sobre a origem dos direitos humanos pode ser
encontrada desde a Grécia antiga, como na tragédia Antígona, de
Sofócles.
Morto
Polícines, irmão de Antígona, numa batalha contra o reino de
Tebas, o rei Creonte baixa um édito determinando que o corpo do
traidor fique insepulto, para ser devorado pelos cães e abutres.
Revoltada, Antígona enterra o irmão. É presa pelos soldados do
rei e levada a sua presença, que indaga: “sabias que um édito
proibia aquilo?” Antígona responde que “sabia. Como
ignoraria? Era notório.” O rei então indaga “Como ousastes
desobedecer às leis?”, ao que Antígona por fim responde:
Mas
Zeus não foi o arauto delas para mim,
nem essas leis são as
ditadas entre os homens pela Justiça... e nem me pareceu
que tuas determinações
tivessem força
para impor aos mortais
até a obrigação
de transgredir normas
divinas, não escritas,
inevitáveis; não é de
hoje, não é de ontem,
é desde os tempos mais
remotos que elas vigem,
sem que ninguém possa
dizer quando surgiram
A
resposta de Antígona, além de corajosa, tem um profundo sentido
crítico, pois questiona, de forma veemente, a idéia de que é
direito tudo aquilo que é colocado pelo poder constituído,
limitando o fenômeno jurídico a uma mera expressão do poder, a
uma questão de fato. Na linguagem de Kant "uma teoria empírica
pura do direito" que reduza o direito ao fato social,
"como a cabeça de madeira na fábula de Fedrus, pode ter uma
bela aparência, mas não irá infelizmente conter cérebro."
Porém,
ao buscar dar outro fundamento de validade ao direito, que não o
poder, Antígona vacila entre a transcendência divina e a Justiça,
que também é uma deusa. Ao fundar os direitos na autoridade
divina e colocá-los como entidades atemporais, Antígona pressupõe
a crença e a própria existência de deuses. Muito embora este
tipo de argumento tenha sido aceito por um longo período da história,
principalmente durante aquele período em que prevaleceu no
ocidente o domínio quase que absoluto do cristianismo, este
direito de origem divina perde o seu principal suporte numa
sociedade dominada pelo racionalismo.
Com
o fim da hegemonia cristã, há uma ruptura dos paradigmas de
verdade impostos pelo pensamento dogmático. E com isto a idéia
de direitos naturais decorrentes de deus perde a sua sustentação.
Já no Renascimento o pensamento de base cristã começa a ser
desafiado. Os fundamentos do poder e da própria arte, que estavam
diretamente submetidos ao domínio cultural da igreja, começam a
se esgarçar. Basta para isto ter em mente as figuras e as obras
de Michelangelo e Maquiavel. O que une o gênio da arte ao criador
da ciência política moderna, foi a capacidade destes dois
homens, não apenas de se libertar dos paradigmas dominantes nas
suas esferas de ação, mas de reencontrar o humano, separando-o
do religioso. Se compararmos a arte pré-renascentista com as
pinturas e esculturas produzidas por Michelangelo, podemos
perceber que seus personagens são homens e mulheres que não são
feitos a imagem e semelhança de um deus idealizado, mas são o
resultado da sobreposição de tecidos, músculos e veias e que têm
um movimento que resulta de uma vontade estritamente humanas. Era
o homem de carne e osso que o interessava. Basta pensar em seu
Moisés, na escultura do escravo em fuga, ou mesmo no deus da
capela Sistina, para reencontrarmos o humano, mesmo nas figuras
divinas.
Da
mesma forma Maquiavel, no Príncipe, nada mais fez do que
desvendar o poder. Assim como Michelangelo, ao descrever o modo
como o Prínci pe conquista e se mantém no poder, Maquiavel esta
dissecando o seu objeto de análise. Afastando as visões
religiosas que fundamentavam o poder e buscando demonstrar a forma
pela qual esse poder é efetivamente exercido. Como salientou o
insuspeito Rousseau, ao dar lições ao Príncipe, sobre como
alcançar o poder, Maquiavel estava na realidade demostrando ao
povo a forma pela qual o poder é sobre ele exercido. Qualquer que
tenha sido a intenção de Maquiavel o fato é que ele nos
demonstrou que o poder do Estado e a legitimidade dos reis não
decorrem da vontade divina ou mesmo da tradição, senão da ação
humana.
Neste
contexto os jusnaturalistas modernos, Hobbes e especialmente
Locke, irão fundar o direito não mais numa entidade
transcendente, mas na razão humana. Utilizando-se da abstração
do contrato, especialmente Locke, aponta que se seres racionais
fossem submetidos a uma situação de natureza, ou seja, a ausência
do Estado, certamente eles acordariam em criar uma entidade
voltada a regular a vida em sociedade, desde que limitada pelo
direito. A criação do Estado e
do direito, assim, passa a ser compreendida como resultante da
vontade humana. Evidente que nenhum destes autores seria ingênuo
o suficiente para acreditar que o estado de natureza tenha
realmente existido. Mas a utilização desta abstração ser ve
para demonstrar como a razão funcionaria caso ela fosse
consultada, no vazio de instituições e outras condições que
limitam a sua liberdade.
A
grande diferença entre Hobbes e Locke é o modo como cada um
destes autores descreve o ser humano. Dotados de menos qualidades
morais, os indivíduos hobbesianos viveriam num estado de guerra
de todos contra todos, que para ser pacificado exigiria um Estado
forte. Já os indivíduos descritos por Locke, que no estado de
natureza sabem diferenciar o justo do injusto, mas não têm quem
resolva um conflito de modo imparcial quando este aparecer,
vivendo num mundo precário, optariam pelo seu ser aperfeiçoamento,
através da criação de uma entidade imparcial, que auxiliasse no
bom relacionamento entre os indivíduos.
O
que importa, para efeito desse ensaio, é que para ambos os
autores será a razão que ditará qual o fundamento último do
direito. Como explicita Locke "O estado de natureza tem uma
lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão,
que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, sendo
todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a
outrem na vida..."
Da
mesma forma Kant colocará a razão como ponto central sobre sua
reflexão sobre direitos. Para eles as leis da natureza não
constituem algo inerente à natureza, "mas construções da
mente utilizadas para o propósito de entender a natureza"
O estabelecimento de regras éticas não deriva da experiência,
mas de proposições lógicas a
priori, que possam ser adotadas como lei universal. Esses
imperativos categóricos, na linguagem de Kant, são juízos
formais, que não estipulam o conteúdo dos direitos, mas a fórmula
pela qual a razão humana pode descrever esferas recíprocas de
autonomia para os indivíduos.
O
que importa para Kant é o estabelecimento de uma lei necessária
para todos os seres racionais para que estes possam julgar as suas
ações "segundo máximas tais que possam os mesmos querer
que elas devam servir como leis universais."
Tomando os "homens com fins em si mesmos" e obedecendo a
máximas construídas livremente e que possam ser universalizáveis,
estaremos construindo racionalmente a esfera ética, na qual se
insere o direito. Conforme Kant o "direito é portanto a soma
total dessas condições dentro das quais a vontade de uma pessoa
possa ser reconciliada com a vontade de outra pessoa de acordo com
a lei universal da liberdade"
No sentido kantiano, os direitos são fruto dessa razão ética,
daí não deverem ser confundidos com direitos transcendentes no
sentido religioso, mas como construção humana, como uma decorrência
do processo de emancipação da humanidade, em que os homens se
utilizam do direito como instrumento de realização da liberdade
ao mesmo tempo em que serve de auto-limitação dos interesses.
Esse
racionalismo levado a prática impõe necessariamente que o
direito seja fruto da vontade humana, como pretendia Rousseau.
"Já que nenhum homem tem autoridade sobre seu semelhante, e
uma vez que a força não produz direito algum, restam então as
convenções como base de toda a autoridade legítima entre os
homens."
Sendo todos os homens iguais, ou seja, tendo o mesmo valor moral,
para que se justifique uma regra que vincule a conduta de todos,
é fundamental que todos participem de sua formulação. Desta
forma passamos de um jusnaturalismo substantivo, comprometido com
o conteúdos dos direitos que deveriam ser protegidos, para um
jusnaturalismo racional ou formal, que se concentra na construção
de procedimentos racionais que favoreçam a produção de decisões
justas. Deve-se destacar, no entanto, que em nenhum momento esses
autores abrem mão da idéia de dignidade humana. Pois é a
igualdade e o valor moral atribuído a todos que justifica a idéia
de contrato social ou o estabelecimento de leis universais.
As
Revoluções Francesa e Americanas, assim como as declarações e
constituições que delas derivam são fruto dessa idéia de um
homem racional, emancipado e livre para decidir seu próprio
destino. Ao redigir a Declaração de Direitos de Virgínia, de
1776, logo após a ruptura dos laços com a metrópole, Jefferson
acolhe a argumentação dos jusnaturalistas ao afirmar que
"todos os homens são por natureza igualmente livres e
independentes e têm certos direitos inatos de que, quando entram
no estado de sociedade não podem, por nenhuma forma, privar ou
despojar a sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da
liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade e
procurar e obter felicidade e segurança."
Da mesma forma os franceses ao redigirem a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, estabeleceram que todos
"os homens nascem e são livres e iguais" e que o fim de
toda a "associação política é a conservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem",
numa clara sintonia com a idéia de direitos como fruto da razão,
declarada por intermédio da lei, expressão da vontade geral
rousseauniana.
O
Estado e os direitos são, assim, obras humanas que têm por única
finalidade a preservação da esfera de dignidade das pessoas.
Apesar de Jefferson se utilizar da idéia de direitos inatos, que
se encontram em estado de natureza, trata-se de uma utilização
retórica, que esconde uma construção ética. Evidente que os
homens não são iguais, como afirmado por Jefferson, do ponto de
vista de sua riqueza, poder complexão física inteligência,
etc., mas sim do ponto de vista moral. Como destaca Habermas, os
direitos básicos não são uma dádiva transcendente, mas uma
consequência da decisão recíproca dos cidadãos iguais e livres
de "legitimamente regular suas vidas em comum por intermédio
do direito positivo".
O Contrato social é uma metáfora dessa decisão, assim como os
momentos constitutintes, em que se declaram direitos, são
tentativas de dar concretude aos ideais de autonomia; do livre
estabelecimento das leis sob as quais a comunidade pretende viver.
4.
Crítica a Idéia de Direitos Humanos
Essa
razão abstrata será, no entanto, intensamente criticada por
autores conservadores como Edmund Burke e mesmo por progressistas
como Hume, Bentham e Marx. Para Burke as instituições decorriam
de um longo processo de sedimentação histórica. O direito era
algo que se herdava das gerações anteriores, a partir de um
processo de erro e acertos que iria apurando a lei e o governo.
Pretender que todas as instituições fossem recriadas de um só
ato, como o poder constituinte, que é a materialização da
vontade geral rousseauniana, é pretender que a razão de um grupo
de homens, num determinado momento histórico, se sobreponha a séculos
de experimentação.
Como dizia um de seus seguido res, fazer uma constituição não é
como fazer um pudim, não basta que se siga uma receita para que o
resultado seja bom. Por fim, afirma que a Declaração poderia
levar as pessoas a crer que eles realmente tinham aqueles
direitos, o que provocaria uma grande desordem se viessem a
exigi-los.
A
crítica progressista ou radical, embora tenha uma finalidade
distinta, também desconfia desta razão abstrata, da qual os
jusnaturalistas derivam direitos. Hume critica Locke e os demais
contratualistas tanto em relação ao uso que fazem da
racionalidade, ao dela derivarem o direito natural, quanto a idéia
de contrato, que além de num haver existido, tem por única função
mistificar o verdadeiro exercício do poder. Não há para Hume
como derivar obrigações morais e políticas da razão abstrata
proposta pelos contratualistas, pois os valores que dela derivam e
que apontam como obrigatório, não passam de justificação à
uma determinada forma de organização da sociedade e exercício
do poder,
como um dia esses mesmos direitos naturais serviram para
justificar o poder absoluto dos reis.
Bentham,
por sua vez, descreve os direitos tais como expresso na Declaração
Francesa como “falácias anárquicas”. Ao seu ver a natureza
colocou a humanidade sob o governo de dois princípios soberanos,
que são a dor e o prazer. Nesse sentido as decisões morais são
aquelas que derivam da maior felicidade, ou maior prazer. Os
sistemas jurídicos ao invés de dar atenção aos
"caprichos" de uma falsa razão, à "escuridão"
devem se fundar no princípio da utilidade, único derivado da
verdadeira razão.
Para Bentham o bem estar da sociedade só pode ser alcançado a
partir do sacrifício de todos e não pelo fortalecimento do egoísmo
de cada um, como assegurado pela Declaração de 1789.
Este
também será o ponto básico da crítica de Marx, ao fazer uma análise
da declaração Francesa, em sua obra Questão Judaica. Ao garantir direitos que separam a esfera pública
da privada, a Declaração estaria apenas mantendo uma situação
de natureza dentro da
nova esfera privada, assegurada pelo Estado, que deve preservá-la,
sem intervir. A esfera cercada por direitos burgueses tem por função
básica garantir o mercado, que nada mais é do que uma extensão
do estado de natureza, onde deve prevalecer o mais forte, aquele
que tenha domínio sobre os meios de produção. Ao vender a sua
força de t rabalho, ou seja, ao realizar um contrato que é
protegido pela Declaração de Direitos, como parte intrínseca do
direito de propriedade, as pessoas estão indiretamente alienando
também seus demais direitos. "O direito humano à
propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar o seu
patrimônio e dele dispor arbitrariamente, sem atender aos demais
homens, independentemente da sociedade...[sendo] a segurança o
conceito social supremo da sociedade burguesa"
como meio de preservação da sociedade.
Estas
críticas à direita e à esquerda da Declaração, somadas a uma
reação historicista no pensamento jurídico alemão, retiraram
credibilidade desse direito racional, com pretensões
universalistas. Assim, para esses autores, a legitimidade do
direito deve derivar ou de sua sincronia com os valores e a herança
cultural de uma determinada comunidade, do princípio da utilidade
- ou felicidade para o maior número - ou de uma total reformulação
da sociedade, a partir da igualização material.
Nesse
contexto de diversos princípios e ideologias com pretensão de
validade, mas que no entanto são auto excludentes, surge uma espécie
de descrença em verdades superiores e absolutas. O mundo que se
abre com o século XX é cetico, daí a força do positivismo como
método interpretativo do direito. Nesse sentido, não mais se
deve indagar sobre a legitimidade ou justiça do direito, mas
sobre a sua eficácia, sobre a sua fonte de produção. O que nos
recoloca na posição de Antígona, ou seja, de nos vermos
obrigados a um direito que tem como único título de legitimidade
o fato de ser posto por aqueles que se encontram no poder.
A
importante distinção, no entanto, é que a partir de Rousseau a
soberania não mais é compreendida apenas da perspectiva que lhe
foi atribuída por Bodin, ex
parti principe, mas
como soberania popular, ou seja, no final do século XIX, início
do século XX, a lei ganha validade quando produzida por um
parlamento que represente a nação, e este é seu critério último
de validade.
5.
A Erosão dos Direitos Humanos
Embora
a idéia de que as pessoas têm direitos que lhe são inerentes
pelo simples fato de serem humanas poder ser rastreada desde a
antigüidade, no início de nosso século o paradigma dominante
era de que os direitos decorriam da vontade dos Estados, ainda que
estes Estados não correspondessem mais ao modelo absoluto
hobbesiano, mas a um Estado que têm no parlamento sua esfera máxima
de legitimação. Há que se destacar, no entanto, que o conceito
de democracia parlamentar prevalecente à época era um conceito
bastante formal, que se adaptava a transição do Estado liberal
para o Estado intervencionista. Mais do que isto o ambiente
intelectual e político na Europa nas primeiras décadas do século
também não contribuíam, para uma percepção substantiva dos
direitos, enquanto uma esfera de proteção inerente ao ser
humano. Há, neste sentido, uma série de eventos que precedem o
período da II Guerra mundial que podem nos ajudar a compreender,
como puderam os direitos de milhões de pessoas serem simplesmente
destroçados pelos regimes totalitários e autoritários que
assolaram os diversos continentes. Max Weber escreve, no primeiro
pós-guerra, sobre o processo de desencantamento por que passa o
mundo. Constata que a prevalência de uma racionalidade
instrumental,
tanto na esfera da ciência, como no âmbito do funcionamento da
empresa, provocou uma ruptura com os parâmetros intelectuais do século
XIX. Neste mundo desencantado, a idéia de uma verdade absoluta ou
mesmo da exist ência de direitos naturais, inerentes a qualquer
pessoa, pelo simples fato de ser humana uma pessoa, é totalmente
destituída de credibilidade. A herança do direito natural passa,
portanto, por um vertiginoso processo de erosão nos anos 20 e 30,
não apenas na Alemanha, mas com efeitos mais catastróficos neste
país. A cultura jurídica produzida pelo positivismo jurídico
sintetiza esta superação do direito natural. Para o positivismo
qualquer que seja o título de legitimidade do poder, os direitos
não passam de uma expressão da vontade do Estado e, portanto,
podem ser colocados e retirados a qualquer momento por este.
Deve-se destacar que dentro dessa idéia de que os direitos podem
ser colocados e tirados a qualquer momento, Hitler, que dispunha
de um corpo de “juristas” de plantão, num determinado momento
vislumbra a possibilidade de realizar os fins do nazismo
utilizando-se dos mecanismos formalmente estabelecidos pela
Constituição de Weimar, assim como pelas instituições
organizadas sob os padrões burocráticos bismarkianos. Desta
forma o direito neutro serve de instrumento para um Estado
nazista.
Após
chegar ao poder em 1933, Hitler por uma série de medidas
legislativas, altera a Constituição (conquistando o quorum de
dois terços) e promulga o Ato de Habilitação, que seria o embrião
do sistema jurídico nazista. Por este ato constitucional, todas
as medidas propostas por Hitler, que fossem incompatíveis coma a
Constituição, desde que obtivesse maioria parlamentar, poderiam
ser transformadas em lei. Um dos primeiros atos de Hitler foi
destituir diversos grupos do seu status de nacionais. Os judeus
foram os primeiros a ser desnacionalizados. Como não mais tinham
vínculos com o Estado alemão, como não haviam relações jurídicas
que os ligassem a qualquer outra órbita de proteção de
direitos, eles encontravam-se excluídos moral e juridicamente do
sistema de proteção concebido pela Constituição de Weimar e
mesmo do precário sistema de proteção oferecido pela Liga das
Nações. Excluídos, judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e
outras minorias ficaram totalmente vulneráveis e passaram a ser
tratadas como objeto e não como sujeito de direitos, como
descreve Hannah Arendt.
A
II Guerra mundial se diferencia das demais guerras exatamente pelo
fato de que as principais vítimas foram nacionais mortos pelos
seus próprios Estados. No período que vai de meados dos anos 30
até o final da II Guerra morreram cerca 45.000.000 de pessoas.
Mais da metade desses mortos não foram soldados vitimados em
combate, mas civis mortos pelos seus próprios Estados,
primordialmente na Alemanha e na União Soviética. Então esses
mais de 20 milhões de seres humanos foram vítimas da instituição
que a princípio deveria protegê-las. Este é um fato
absolutamente aterrorizador. Essa idéia de que o Estado se
utiliza do direito, e por intermédio do direito
ele consegue liquidar grupos raciais, religiosos e
dissidentes políticos, numa escala assustadora, é algo peculiar
ao período da II Guerra.
6
Direitos Humanos no Mundo Contemporâneo. Uma Análise
Normativa
6.1
A Carta da ONU e a Declaração Universal
O
holocausto e as outras barbáries do período, como os campos soviéticos
de trabalhos forçado e m esmo a bomba atômica, causaram um
profundo choque na consciência da comunidade internacional. É
como reação a esta demonstração de irracionalidade e da
capacidade do homem de se auto destruir que surge a idéia
contemporânea de direitos humanos. Trata-se de uma reação,
ainda que filosoficamente não bem resolvida, ao vazio ético
deixado pelo desencantamento que favoreceu o nazismo e todas as
atrocidades do período.
O
primeiro passo no sentido da construção de um direito
internacional dos direitos humanos foi a inclusão, na Carta da Nações
Unidas, do respeito e da observância dos direitos humanos como
uma das obrigações da própria ONU e dos Estados membros
(artigos 1, (3), 55 (c) e 56 da Carta). Neste sentido, o Estado
que se torna parte das Nações Unidas, aderindo à Carta, passa,
no plano jurídico, a reconhecer os direitos humanos como uma
obrigação internacional, que não mais pode ficar restrita à
esfera doméstica das nações.
A
Carta, no entanto, não explicitou o conteúdo dos direitos
humanos. O que gera, de certa forma, um paradoxo, pois os Estados
se obrigaram a respeitar direitos, sem que o seu conteúdo fosse
conhecido ou sequer delimitado. Isto somente veio a acontecer três
anos depois com a adoção da Declaração Universal de 1948, por
intermédio de uma resolução da Assembléia Geral das Nações
Unidas.
O
artigo 68 da Carta da ONU previu a criação de uma comissão
voltada para a questão dos direitos humanos. Para os fundadores
das Nações Unidas, a Comissão de Direitos Humanos deveria
iniciar seus trabalhos propondo uma carta de direitos que pudesse
servir como paradigma para o mundo pós-guerra. Conforme manifestação
do presidente Truman, dos Estados Unidos, ao fechar a Conferência
de São Francisco, “nós temos boas razões para esperar a
elaboração de uma carta internacional de direitos, que será tão
parte da vida internacional, como a nossa (americana) Carta de
Direitos é de nossa própria Constituição”
Se
por um lado o Trumam acertou ao antever a importância que a
Declaração de 1948 assumiria no cenário político
internacional, errou rotundamente no que se refere a força jurídica
da Declaração. Muito mais tensa do que a discussão sobre o
conteúdo do documento, foi a decisão sobre seu status jurídico:
se um tratado multilateral, um apêndice à Carta da ONU, ou uma
simples resolução da Assembléia Geral, sem capacidade d e
vinculara a conduta dos Estados, o que acabou prevalecendo. Como
pretendia o bloco comunista, acompanhado pelos Estados Unidos, a
Declaração não nasceu com pretensão de obrigar juridicamente
os Estados. Além das divergências ideológicas, não queriam as
superpotências se ver suas soberania
limitadas por qualquer forma de agência internacional de
fiscalização de suas práticas domésticas.
A
Declaração de 1948, talvez por não ter alcançado força jurídica,
recebeu um amplo reconhecimento por parte da comunidade
internacional. A Declaração foi aprovada pela unanimidade dos países
membros das Nações Unidas, com a abstenção de apenas oito
Estados: União Soviéica, Checoslováquia, Russia Branca, Iugoslávia,
Polônia, África do Sul e Arábia Saudita, sendo que apenas os
dois últimos tinham problemas de ordem substantiva em relação
ao documento. Para os sul-africanos a idéia de que toda a forma
de discriminação seria banida era, por razões óbvias, inadmissível.
Para os sauditas, por sua vez, não aceitavam a liberdade para que
se trocasse de religião, o que não constituiu um problema para
que os demais países islâmicos tenham aprovado a resolução.
Hoje, todos estes países reconhecem a Declaração Universal.
Assim
é que surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o
objetivo de estabelecer um novo horizonte ético, a partir do qual
a relação dos Estados com seus cidadãos pudesse ser julgada por
um paradigma externo ao próprio direito de Estado. A Declaração,
como já se disse, não surgiu com a pretensão de transformar-se
em direito internacional, como uma hard
law,, mesmo porque coincidindo com início da Guerra Fria,
dificilmente seria a possível alcançar um consenso mais sólido
entre os dois blocos. Embora seja o principal instrumento e
certamente o mais conhecido dos documentos de direitos humanos
produzidos na esfera das Nações Unidas, não é um tratado
internacional, mas uma simples declaração decorrente de uma
resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas. Não sendo
um tratado, não pôde ser ratificada e, portanto, não tinha
originalmente pretensão de obrigar os Estados juridicamente. Mas,
sim, de servir como paradigma moral. Apesar disto muitos juristas
lhe conferem força de direito internacional público. Para uma
primeira corrente, ao menos alguns dos dispositivos da
Declaração transformaram-se em direito internacional costumeiro,
em face do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça,
que estabelece as fontes do Direito Internacional Público. Para
outros a força jurídica da Declaração decorre do fato desta
constituir uma interpretação autêntica da Carta da ONU. Ao
aderir à Carta da ONU os Estados se obrigaram a assegurar os
direitos humanos, mesmo que não houvessem acordado sobre quais
direitos. Ao adotarem a Declaração de 1948, deram substânc ia ao
compromisso assumido em 1945. Portanto, tecnicamente, a Declaração
deveria vincular as condutas dos que participam da comunidade
internacional.
Diferentemente
do que argumentam alguns a Declaração de 1948 não constituí um
mero exercício de hegemonia ou imperialismo cultural do ocidente.
Embora fundada sobre os alicerces do racionalismo iluminista e das
Declarações americana e francesa do final do século XVIII, a
participação dos representantes de países do extremo oriente,
mulçumanos, latino-americanos e africanos, deu a Declaração uma
conformação mais pluralista. O fundamento Kantiano aparece logo
no preâmbulo da Declaração ao estabelecer que o
“reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis
de todos os membros da família humana é o fundamento da liberade,
justiça e paz no mundo”.
Foram
reconhecido pela Declaração especialmente direitos civis. Do
artigo 1º ao 20 temos vemos aqueles direitos que foram
moldados a partir dos séculos XVII e XVII, pelas revoluções
liberais, porém com um nova linguagem, especialmente no que se
refere a não discriminação de qualquer natureza. No arigo 21
reconece-se os direitos políticos e do 23 ao 27 os direitos econômicos
sociais e culturais. O artigo 28 trata da solidariedade
internacional, o 29 dos
deveres para com a comunidade e o 30 é uma cláusula
interpretativa.
Buscando
conciliar o liberalismo com o igualitarismo a Declaração
estabelece em seu artigo 1º que “todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e deverão agir uns em relação
aos outros com espírito de fraternidade”. Esta é a proposição
moral que irá influenciar todo o edifício dos direitos humanos
construído no século XX. As desigualdades naturais deverão se
corrigidas por uma igualdade socialmente construída por seres
racionais, capazes de agir moralmente, fraternalmente.
A
Declaração reconhecerá então os direito de não ser
discriminado em função de nenhuma forma de distinção, como
sexo, raça, cor, lingua, religião, opinião política,
nacionalidade, origem social, propriedade, nascimento ou outra
condição. Da mesma forma nenhuma distição poderá ser feita em
função do status do estado ou jurisdição a qual a pessoa
esteja ligada (artigo 2º). A todos é reconhecido o
direito à vida liberdade, segurança pessoal (artigo 3º);
ningué p oderá se feito escravo (artigo 4º); ningém
poderá ser submetido à tortura, ou tratamento cruel ou
degradante (artigo 5º); todos devem ser reconhecidos
como iguais perante a lei, assim como receber igual tratamento da
lei (artigo 7º).; Do artigo 8º ao 11
encontram-se as garantias básicas do processo e do estado de
direito, como, a garantia a todos de remédios legais efetivos
assegurados por tribunais competentes, independentes e imparciais;
a proibição de prisão arbitrária; a presunção de inocência;
o princípio da prévia cominação legal, para que alguém possa
ser penalmente punido. Os direitos à privacidade, à liberdade de
movimento, inclusive a deixar seu próprio país e procurar asilo
em outro país, aparecem nos artigos 12, 13 e 14. Como reação ao
processo de desnacionalização, que permitiu o surgimento de milhões
de apátridas na primeira metade do século, reconhece-se, no
artigo 15, o direito à nacionalidade. No artigo 16 aparece o
livre direito a contrair matrimônio, em termos iguais para homens
e mulheres, que também devem gozar de direitos iguais durante ou
depois da disssolução do matrimônio. Este, certamente, é um
dos dispositivos mais complexos, pois choca-se frontalmente com
preconceitos culturais, tradições religiosas e normas legais de
diversos Estados, em todos os continentes. O artigo 17, que
reconhece o direito à propriedade, o faz de uma forma muito
distinta da Declaração Francesa de 1789, que atribuía uma posição
sagrada a esse direito. De acordo com o exposto na declaração
Universal “todos têm propriedade” de forma individual ou
coletiva, o que viabilizou o consenso sobre esse dispositivos
entre liberais e socialistas. O artigo 18 também troxe problemas
e foi a razão pela qual a Arábia Saudita não reconheceu, num
primeiro momento a Declaração. Ao estabelecer a liberdade de
pensamento, consciência e religião, a Declaração também
assegurou a liberdade para que as pessoas pudessem livremente
mudar de crença ou religião, de forma individual ou coletiva, o
que viola os códigos religiosos mulçumanos. Nos artigos
seguintes temos a liberdade de expressão, assim como o direito de
receber informações imparciais por intermédio da mídia (artigo
19); e a liberdade de associação, sendo reservado o direito de não
se associar (artigo 20).
No
artigo 21 temos uma das deficiência da Declaração. Ao invés de
falar abertamente em democracia, o que não seria aceito por
diversos países do bloco socialista, aquele momento, a Declaração
preferiu assegurar a “todos o direito de tomar parte no governo
de seu país, direta ou indiretamente, por meio de representantes
livremente escolhidos”, assim como estabeleceu que a vontade do
povo deve ser a base para a autoridade do governo, o que deve se
dar por intermédio de eleições livres e periódicas. Este,
portanto, é o único artigo que fala em direitos políticos.
O
direitos sociais, culturais e e conômicos têm início no artigo
22 vão até o 27. São
esses os direitos ao trabalho, a livre escolha da profissão,
assim como à proteção contra o desemprego; todos tem direito a
igual remuneração por trabalhos iguais; todos têm direito a uma
remuneração adequada e compatível com uma exist6encai digna
para si e sua família, suplementado, se necessário, por outros
meios de proteção social (artigo 23). O artigo 24, certamente o
mais criticado, traz o direito ao descanso e ao laser, assim como
a limitação as horas de trabalho e descanso remunerado. Na
verdade essas são críticas preconceituosas, pois nenhum ser
humano pode viver dignamente, sem que possa gozar de esferas de
liberdade fora do trabalho. Sem dúvida nenhuma a crítica de Marx
ao direito de livre contratação, que permitia que pessoas fossem
literalmente presas aos seu empregos por mais de 18 horas diárias,
durante a Revolução Industrial, teve um impacto junto aqueles
que tiveram a responsabilidade de redigir a Declaração
Universal. O artigo 25 fala novamente no direito a um padrão de
vida digna, que atenda as necessidades de saúde, alimentação,
moradia, vestimenta, e a serviços sociais, incluindo a garantia
contra o desemprego, a doença, a incapacidade, viuvez, velhice e
outras dificuldades que se coloque fora do controle das pessoas. O
artigo 27 refere-se à educação. Trata-se de um dos dispositivos
mais felizes da Declaração. A educação é um direito de todos,
deve ser gratuita, ao menos nos níveis elementar e fundamental.
Devendo a educação elementar ser obrigatória. Trata ainda da
educação técnica e superior. A Declaração, no enta nto, não
se satisfez em estabelecer direito
a educação, mas também busca estabelecer alguns princípios e
diretrizes que devem informar a realização desse direito: “a
educação deve ser direcionada para o pleno desenvolvimento da
personalidade humana e para o fortalecimento do respeito aos
direitos humanos e liberdades fundamentais. Deve promover o
entendimento, tolerância e amizade entre as nações, grupos
raciais e religiosos...” Ou seja, a educação não é apenas um
instrumento voltado a formação técnica ou mesmo a transmissão
de conhecimento de uma geração para a outra, mas sim um
instrumento de formação moral dos indivíduos. O que significa,
de acordo com a declaração, formar pessoas que sejam capazes de
respeitar os demais em seus direitos e em sua condição de seres
humanos. O artigo 27 trata do direito de acesso à cultura e as
artes, assim como do direito as criações científicas, artísticas
e intelectuais. Esta segunda parte do artigo 27 não deveria
efetivamente fazer parto do rol de direitos reconhecido pela
Declaração, pois dificilmente poderíamos encontrar uma boa
justificativa para colocá-lo ao lado de direitos tão
fundamentais à exist6ncia de uma vida digna.
O
artigo 28, violado desde o momento desde sempre, refere-se ao
direito de todos a uma ordem social e internacional em que os
direitos reconhecidos na Declaração possam ser plenamente
realizados. Estabelece assim o direito à s olidariedade
internacional, pelo qual as nações mais desenvolvidas deveriam
partilhar de seus recursos, muitas vezes construídos as custas
dos menos desenvolvidos, com aqueles que se encontram numa condição
menos favorável.
O
artigo 29 da Declaração estabelece que todos têm deveres com a
comunidade, sem os quais os direitos não poderia se realizar.
Mais do que isso estabelece que os direitos e liberdades podem ser
limitados em função dos direitos e liberdades dos demais. Esta
limitação, no entanto, só será possível por intermédio da
lei, quando necessário para
a preservação da moralidade, ordem pública e bem estar
geral numa sociedade democrática. Aqui aparece então, pela única
vez, o termo democracia no texto da Declaração.
Por
fim há um dispositivo que estabelece que nada na Declaração
deve ser interpretado de forma a autorizar qualquer Estado, grupo
ou pessoa a engajar em atividade que violem direitos humanos.
A
Declaração, com esse conteúdo, passou a ocupar um papel tão
importante no imaginário da comunidade internacional após a II
Guerra e serviu de respaldo ideológico no processo de descolonização
e mesmo na luta de resistência contra os regimes autoritários
nas mais diversas partes do mundo, que deixou de ser um mero
instrumento retórico e passou a ser incorporada pelos Estados
enquanto direito em suas constituições.
Basta olharmos o exemplo da África, onde dezenas de constituições
foram promulgadas a partir da concepção de direitos humanos
proposta pela Declaração, o que jamais significou o respeito
incondicional a estes direitos. Países na América Latina que se
reconstitucionalizaram nesse período, quase todos incorporaram a
estrutura e a lógica da Declaração dentro de suas constituições.
Talvez a Constituição brasileira de 1988 seja um ponto exemplar,
não só de reprodução
da lógica da Declaração e dos demais instrumentos
internacionais de proteção da pessoa humana, mas de uma ampliação
e atualização de seus ideais. A nossa Constituição é generosa
e criativa em termos da confecção do mapa ético segundo o qual
a sociedade deve se organizar. Além de sua pormenorizada carta de
direitos, por força do parágrafo 2º do artigo 5º,
abre suas portas para que uma série de direitos decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados
internacionais dos quais o Brasil seja parte passem a ingressar em
nosso ordenamento numa posição privilegiada.
A
Declaração Universal é, porém, apenas um primeiro passo nesse
processo de constitucionalismo globalizado que vem sendo
propulsionado pelos direitos humanos. Há hoje diversas
esferas internacionais de proteção à pessoa humana. A nível
global temos o sistema das Nações Unidas, fundado na Carta da
ONU, de 1945, na Declaração Universal de 1948 e nos diversos
tratados de proteção específica, onde se inclui também a proteção
dos refugiados; há também sistemas regionais de proteção dos
direitos humanos, sendo os mais evoluídos aqueles que se
encontram em funcionamento nos continentes europeu e americano;
por fim, deve-se destacar o direito internacional humanitário,
estabelecido a partir das Convenções de Genebra, de 1949, que
buscam dar proteção às pessoas que se encontram submetidas a
conflitos armados.
6.2.
Pactos Internacionais
O
sistema global de proteção aos direitos h umanos passou a ter
mais consistência, no entanto, com a adoção da Convenção
Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e a
Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambas de
1966. Estes quatro documentos formam o International
Bill of Rights, o cerne deste
processo global de constitucionazação. Com conteúdos distintos,
a primeira Convenção incorpora aqueles direitos que decorrem da
tradição socialista, estabelecendo obrigações positivas aos
Estados. Seu grande defeito, semelhante a muitas constituições
nacionais, foi dar caráter programático ou progressivo a estes
direitos.
A Convenção de Direitos Civis e Político, por sua vez, abriga
diretos decorrentes do movimento liberal e democrático, já
reconhecidos pelos constitucionalismos nacionais desde o século
XIX, dando-lhes eficácia imediata. Criou este tratado um Comitê
de Direitos Humanos, que, entre outras funções, analisa relatórios
preparados pelos Estados, assim como denúncias individuais de
violação dos direitos estabelecidos pela Convenção.
Diversas outras convenções foram adotadas pelas Nações Unidas
nestes últimos cinqüenta anos. Cada uma delas voltada a tutelar
direitos específicos ou grupos determinados de pessoas. Trazem
também mecanismos próprios de fiscalização e monitoramento. O
sistema da ONU , no entanto, padece de grande fragilidade, posto
que a própria Carta das Nações Unidas determina que a Organização
seja ciosa com a esfera de soberania dos Estados, tal como
reconhecido pelo artigo 2º da Carta.
6.4.
Outras Iniciativas na Esfera da ONU
Nos
anos sessenta, por intermédio das resoluções 1235 e 1503, do
Conselho Econômico e Social, estabeleceu-se que a partir de denúncias
que “aparentemente revelam um padrão consistente, repulsivo e
confiavelmente atestado de violações de direitos humanos...”,
ou seja, “graves violações de direitos humanos”, o Estado
estaria violando obrigações contraídas com a Carta e poderia,
assim, sofrer investigações, repreensões e mesmo sanções por
parte da comunidade internacional.
Houve,
nos últimos anos, bastante progresso, especialmente a partir da
Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, em
1993. Entre estes citaria a criação de um Alto Comissariado para
Direitos Humanos, que tem por função articular as ações das Nações
Unidas nesta esfera e do Tribunal Internacional Criminal, a partir
das experiências dos Tribunais de Ruanda e da Ex-Iugoslávia.
Desta forma o sistema global, que até 1998 não contava senão
com parâmetros normativos e agências fiscalizadoras (comitês e
comissões), passou a poder também contar com uma instância
jurisdicional, ainda que em moldes bastante distintos daqueles
existentes nos sistemas regionais de direitos humanos. Ao menos para o crime de
genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, o
sistema das Nações Unidas se fortaleceu neste último ano.
Os
sistemas regionais europeu e interamericano, porém, são melhor
estruturados e técnicamente mais viáveis, aproximando-se ainda
mais de um sistema internacional de caráter constitucional. Como
o sistema ONU, estes dois sistemas regionais são fundados a
partir de tratados internacionais, que não apenas dão o parâmetro
normativo, criam sistemas de monitoramento, mas também
estabelecem instâncias jurisdicionais de proteção dos direitos
humanos, que já se encontram em funcionamento.???? /span>/font>
6.5.
Sistema Interameicano de Direitos Humanos
No
continente americano o sistema passou a se desenvolver a partir da
adoção, pela Organização dos Estados Americanos, da Declaração
dos Direitos e Deveres do Homem, em 1948. Assim como a Declaração
Universal, não é a Declaração Americana um tratado
internacional. Em 1959, sob os auspícios da OEA e dentro de sua
estrutura constitucional, foi criada a Comissão Interamericana,
com a função primordial de implementar os direitos humanos no
continente. Somente em 1969 é que surgiu a Convenção Americana
de Direitos Humanos, com força jurídica de tratado
internacional. Esta Convenção, que só entrou em vigor em 1978,
reconheceu direitos de ordem civil, política e social,
estes últimos apenas de forma
“progressiva”.
A
Convenção também estabeleceu uma Corte Interamenricana de
Direitos Humanos e deu um novo status
à Comissão, que passou a funcionar como órgão da Carta da OEA
e órgão da Convenção, para aqueles países que desta se
tornarem parte. As competências comuns da Comissão, tanto como
órgão da Carta como da Convenção, são bastante genéricas.
Nos anos setenta isto permitiu que a Comissão de forma bastante
criativa desempenhasse um papel tremendamente importante na denúncia
das violações que eram cometidas pelos regimes militares então
no poder. Já sob o mandato da Convenção, a Comissão passou a
ter funções mais concretas, como receber denuncias individuais,
representá-las junto à Corte Interamericana,
fazer investigações no local, ou solicitar informações dos
governos.
A
Corte Interamericana de Direitos Humanos é um autêntico
tribunal, que pode exercer, para aqueles Estados parte que reconheçam
sua jurisdição, uma prestação jurisdicional de caráter
contencioso, relativa a todos os casos concernentes à interpretação
e aplicação da Convenção Americana, ou outros tratados de
proteção à pessoa humana, na esfera da comunidade
interamericana. A Corte só poderá ser provocada em sua jurisdição
contenciosa pela Comissão ou pelos Estados parte que aceitem a
sua jurisdição. Suas decisões podem fazer cessar uma situação
de lesão aos direitos protegidos pela Convenção, como a
tortura, prisão ilegal, ou mesmo buscar a suspensão de uma norma
que viole os dispositivos da Convenção, exercendo, assim, uma
espécie de judicial review
dos ordenamentos jurídicos domésticos em face da Convenção.
Isto pode ser feito ainda de forma preventiva, através da jurisdição
não contenciosa da Corte.
Por outro lado a Corte também pode determinar
que os Estados indenizem as vítimas ou os seus familiares.
O que ocorreu pela primeira vez no caso Velasquez, onde o governo
de Honduras, responsável pelo seu desaparecimento, foi condenado
ao pagamento de uma indenização à família. Neste aspecto ocorre um
dos pontos de maior proximidade entre o sistema interamericano e
os sistemas domésticos. De acordo com o artigo 68 da Convenção
“a parte da sentença que determinar a indenização compensatória
poderá s er executada no país respectivo pelo processo interno
vigente para a execução de sentenças contra o Estado.” Assim
a decisão da corte não tem força de sentença estrangeira, mas
de uma sentença judicial como outra qualquer, numa perfeita
integração com os sistemas domésticos.
A
importância do sistema interamericano tem aumentado na medida em
que os países passam voluntariamente a se submeter à sua ordem.
Embora mecanicamente o sistema não apresente grandes falhas, o
que o fragiliza é o fato da maior potência do continente, os
Estados Unidos da América, até o presente momento, continuar
marginal ao sistema, postura, aliás, semelhante a do Brasil até
pouco. Porém, com a estabilização dos regimes democráticos no
continente, a integração entre as ordens jurídicas interna e
regional tem aumentado. A Constituição argentina, por exemplo,
expressamente assegura status constitucional aos direitos
previstos nos tratados internacionais. No Brasil a doutrina, e uma
jurisprudência embrionária, tem dado a mesma interpretação ao
parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição
Federal.
Isto, portanto, caracteriza o caminho inverso, de internacionalização
do direito constitucional.
6.6
Sistema Europeu de Direitos Humanos
O
sistema europeu de proteção dos direitos humanos, por sua vez,
tem sido um dos pilares do processo de constitucionalização da
Comunidade, assegurando parâmetros que devem limitar não apenas
os Estados, em suas relações com os seus cidadãos, mas também
a Comunidade no embate com os nacionais de cada Estado.
O
sistema europeu foi estabelecido pelo Conselho da Europa, que
determina em seu estatuto que “todos os Estados membros do
Conselho da Europa devem aceitar os princípios do Estado de
Direito e a fruição por todas as pessoas dentro de suas jurisdições
dos direitos humanos e liberdades fundamentais...”. A Convenção Européia
de Direitos Humanos, de 1950, entrou em vigor três anos após a
sua adoção. Reconhece basicamente direitos de ordem civil. Logo
em seu preâmbulo estabelece que o objetivo do sistema europeu é
dar eficácia aqueles direitos elencados na Declaração Universal
de 1948, embora a Convenção deixe de lado direitos de ordem
social e econômica. Esta lacuna foi parcialmente preenchida em
1961, com a adoção da Carta Social Européia. Digo parcialmente,
pois assim como os demais documentos internacionais que tratam de
direitos sociais, a Carta estabelece obrigações vagas e que
devem ser perseguidas nos limites dos meios existentes e como política
governamental.
Três
eram os órgãos responsáveis pela implementação da Convenção,
até o ano de 1998, quando surge a nova e unificada Corte Européia
de Direitos Humanos, por força do Protocolo no. 11. Mesmo assim
é interessante compreender o funcionamento pretérito desse
sistema, pois o novo modelo simplesmente buscou conjugar as
atividade dos diversos órgãos em uma só Corte.
A
Comissão de Direitos Humanos, que funcionou em Estrasburgo, tinha
por função básica receber denúncias de Estados e indivíduos,
de acordo com o artigo 25 da Convenção. A maior parte dos
Estados reconhecia a competência da Comissão para receber tais
denúncias. Havia um processo bastante rigoroso que avaliava a
admissibilidade das petições individuais. Sendo aceitas,
iniciava-se uma nova fase em que a Comissão buscaria a realização
de um acordo amigável com os Estados. Caso este acordo não fosse
alcançado, a Comissão poderia encaminhar o caso ao Conselho de
Ministros ou à Corte de Direitos Humanos. Em geral deveriam
seguir para a Corte os casos dos Estados que aceitavam sua jurisdição.
Os demais devendo ser encaminhados para o Conselho de Ministros
para que fosse tomada uma decisão política, ainda que balizada
pelo direito. O fato porém é que a decisão de qualquer uma
destas instâncias tinha força obrigatória para os Estados
parte, ou seja, impunha uma obrigação internacional dos Estados
em se conformarem a ela. Esse mecanismo criou um sistema paralelo
de controle da compatibilidade da legislação doméstica aos parâmetros
estabelecidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos.
Com
o novo formato dado pelo Protocolo no. 11, a Corte passou a
concentrar todas as atividade da Comissão. Assim é a Corte hoje
quem recebe as petições individuais, analisa sua
admissibilidade, nomeia um de seus juízes como rapporteur
do caso, realiza os acordos amigáveis, quando for o caso, ou
finalmente julga as demandas que lhe chegam. O papel do Conselho
de Ministros, por sua vez, ficou limitado a supervisionar a execução
das decisões da Corte.
Por
fim, deve-se destacar que na maioria dos Estados europeus a Convenção
ingressa automaticamente no ordenamento jurídico, com status
de lei ordinária, podendo ser invocada diretamente face aos
tribunais nacionais. Na Holanda o status
da Convenção é supra-constitucional. Há alguns países,
no entanto, onde a Convenção exige atos parlamentares para que
os direitos ali reconhecidos possam ser reclamados junto ao judiciário.
Paulatinamente, no entanto, os magistrados destes países têm se
permitido olhar para a Convenção como direito auto-aplicável.
|