
Direitos
Humanos: contra o Poder
Paulo
Sérgio Pinheiro
(Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo e Relator Especial das Nações Unidas para o Burundi)
A
luta pelos direitos do homem não pode jamais se efetivar senão contra
o poder, pensava René Cassin, um dos pais-fundadores da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, ao ver-se face a face com o general De
Gaulle, a quem acompanhara no exílio de Londres, agora de volta ao
governo em 1981. Porque os direitos humanos estariam sempre em conflito
com o Estado, com o governo, enfim com o poder?
Governo,
estado, significa poder. O poder é mais que a coerção, mas o poder do
Estado tem uma característica única porque ele está acima de todos os
outros “poderes” no interior da sociedade pelo direito que lhe é
reconhecido de recorrer à força, mesmo de matar, quando seus
representantes estimam que tal ação seja necessária (e a mais
legítima, ali aonde a legalidade é respeitada).
Se
examinarmos a coerção exercida pelo Estado, devemos constatar que essa
tem uma particularidade: como o Estado não é um ser real, não pode
executar nenhum ato de coerção, seja física ou de outra espécie
porque ele não pode ele mesmo agir de alguma maneira. A afirmação de
que o Estado age pela coerção é somente uma forma de falar que
corresponde na realidade a muitas situações diferentes. Primeiramente,
ela completa e prolonga a ficção pela qual alguns atos de coerção
física cometidos por homens/mulheres são considerados como
desempenhados pelo Estado. É essa ficção que o direito chama de “imputação”.
O
Estado exerce assim a coerção por intermédio de homens, que são
considerados como órgãos do Estado. Esses atos, que não serão
imputados ao Estado, mas aos próprios indivíduos, são entretanto
autorizados ou mesmo prescritos pelo Estado.
O
mesmo ocorre com o Estado. Não há na verdade uma distinção
significativa entre o Estado e o governo do Estado. Não importa qual o
regime, o cidadão comum estabelece uma clara equação entre os dois.
Para fundamentar esse postulado Sir Moses Finley recorre a um texto de
Harold Lasky, The State in Theory and Practice (1935) há muito
esquecido:
“O
cidadão não pode ter acesso ao Estado senão pelo intermediário do
aparelho de governo (...). as conclusões que ele as tira sobre (...) a
natureza do Estado, ele tira-as do caráter das ações governamentais;
e ele não poderia conhecer de outra maneira. Esta é a razão porque
nenhuma teoria do Estado é adequada se não situa a ação
governamental no centro da explicação que ela propõe. Um Estado é o
que faz seu governo; o que uma teoria qualquer requer do aparelho
governamental para que seja atingido o fim último do Estado (...) não
é senão um critério para julgar este Estado, não um índice de sua
essência real”.
O
Estado não pode pretender-se democrático se as práticas do governo e
de seus agentes não respeitam os requisitos da democracia. O Estado
não pode pretender ser democrático se tolera as violações de
direitos humanos e se não consegue implementar o acesso efetivo da
população aos direitos fundamentais.
O
triângulo fatal das violações
Os
critérios disponíveis para classificar as violações de direitos
humanos não são claros. Nenhuma resolução de organização ou
conferência internacional oferece um critério claro para delinear o
que são violações de direitos humanos: no máximo indicam o conteúdo
dessas violações. Por exemplo os parágrafos 7 e 11 da Programação
da Conferência Internacional de Direitos Humanos de Teerã de 13 de
maio de 1968 refere-se a “gross denial of human rights”. Já a
Declaração e Programa de Ação de Viena de 25 de junho de 1993 usa as
expressões “massive violations of human rights” (par. I.29), e
“gross human rights violations” (par. I.30).
Apesar
de conscientes dessas dificuldades, para analisarmos a arbitrariedade do
Estado temos de contar com um conceito operacional. Nas novas
democracias, nas quais os governos não coordenam ou organizam a
repressão ilegal, violações de direitos humanos continuam a ocorrer
perpetradas pelos agentes do Estado que contam muitas vezes com a
impunidade. Entre os operadores do Estado que perpetram maior número de
graves violações de direitos humanos, como execuções sumárias,
sequestros e torturas, estão as polícias dos Estados modernos,
falhando na sua missão originária de construir a pacificação.
Cremos
que podemos trabalhar com um conceito operacional provisório dessas
violações, fundado na Declaração Universal de Direitos Humanos e no
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Na Declaração
estão formulados três direitos que dizem respeito especificamente aos
operadores do Estado: o direito à vida, liberdade e segurança (art.
3), de não ser submetido à tortura (art. 5) e de não ser preso
arbitrariamente (art. 9). Quando esses direitos são violados, como Alex
Schmid propôs em seu relatório Reserarch on Gross Human Rights
Violations, estamos diante de graves violações de direitos humanos
reconhecidas pelo direito internacional dos direitos humanos; como essas
violações geralmente ocorrem simultaneamente, esses direitos
correspondem a um “Triângulo fatal”.
Evidentemente,
para uma avaliação do alcance dessas violações, essas violações
precisam ser medidas, o que pode ser feito usualmente recorrendo-se a
três indicadores: o escopo da violação e grau de seriedade, sua
intensidade, e seu alcance, isto é, o tamanho da população afetada.
Uma violação isolada cometida por indivíduos privados ou grupo de
pessoas, sem ligação com o Estado, obviamente não constitui
violação de direitos humanos: como regra geral, o Estado não pode ser
responsabilizado por ações de indivíduos (a única exceção sendo
aqueles casos em que o governo impede esses indivíduos de serem
responsabilizados). As graves violações de direitos humanos são
aquelas cometidas por órgãos locais do governo, do Estado ou seus
funcionários, atuando dentro de sua autoridade; a responsabilidade
perante o direito internacional dos direitos humanos cabe ao Estado,
mesmo que as violações não tenham sido perpetradas sob sua
orientação. Nas democracias os principais responsáveis pelas
violações dentro desse “triângulo fatal” nas novas democracias
são os operadores do Estado, as polícias.
No
caminho percorrido desde 1948
Desde
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, como já vimos
ao examinarmos as violações dentro do triângulo fatal, a definição
das normas do direito internacional dos direitos humanos e a
construção do sistema internacional de proteção têm dado grande
atenção ao controle da violência do Estado. Nós estamos convencidos
de que nesse processo, que vai da Declaração até a recente
instituição do Tribunal Internacional, os direitos humanos têm sido
um instrumento importante de controle do arbítrio do Estado tanto em
regimes de exceção como em regimes democráticos.
Lembre-se
que a Declaração e Programa de Viena, adotada consensualmente em
Plenário pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho
de 1993, afirma que “a natureza universal desses direitos e liberdades
não admite dúvidas”. A Declaração de Viena ultrapassou assim tanto
o dilema tradicional entre universalismo e relativismo, como as
alegações de eurocentrismo dos direitos humanos por consenso entre
todos os Estados membros da
ONU presentes na conferência. Em consequência, nenhum Estado pode
alegar tradições locais que possam sustentar graves violações de
direitos humanos praticadas por suas polícias.
As
primeiras fontes básicas, que apenas indicamos, são obviamente a Carta
das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Além dessas, trazem normas e princípios decisivos para o controle do
arbítrio os dois Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e
o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Queria ressaltar que a
proteção contra a privação arbitrária da vida, presente no artigo 6
do Pacto de Direitos Civis e Políticos tem grande importância para o
controle das práticas ilegais dos operadores: “Os Estados partes
devem tomar medidas não apenas para prevenir e punir a privação da
vida por atos criminosos, mas devem também prevenir as execuções
arbitrárias por suas próprias forças de segurança. A privação da
vida por autoridades do Estado é uma questão da mais alta gravidade.
Portanto, a lei deve estritamente controlar e limitar as circunstâncias
nas quais uma pessoa pode ser privada da vida por tais autoridades”.
Que
largo caminho fez o Leviatã nascido da concentração do monopólio da
violência física legítima do Estado, esse lugar onde se afrontam
interesses em conflito. Da antiguidade aos dias que correm, os
pensadores, os políticos, os partidos buscaram atingir um modelo ideal,
um Estado onde se pudesse transferir os conflitos de modo que todos os
cidadãos pudessem atingir uma vida verdadeiramente digna. Mas, a
constatação é fácil, nenhum Estado, hoje ou outrora, atingiu esse
fim ou mesmo aproximou-se dele. Do Estado a busca se transferiu, faz
cinquenta anos, para padrões universais que pudessem funcionar como uma
contenção da barbárie. Os grandes perigos da enorme concentração de
violência nos Estados encontra-se hoje, no final do século XX,
delimitada pela crescente normalização e pelas inesperadas
possibilidades de monitoramento que o sistema internacional de direitos
humanos tornou realidade, abrindo possibilidade para que as vítimas, os
cidadãos, pudessem queixar-se das violações. Chegamos ao começo do
próximo milênio com a montagem acabada de uma formidável maquinaria
para a proteção dos direitos do homem. No começo do próximo milênio
que se inicia, cada vez mais a transparência e a prestação de contas
à comunidade internacional será uma exigência para todos os Estados.
A luta pelos direitos humanos, como dizia René Cassin, continua a ser
uma luta contra o poder, enquanto arbítrio e violência ilegal, mas a
luta dos cidadãos contra o Leviatã tende a ficar mais equilibrada, em
razão da soberania não mais poder ser invocada em termos absolutos
quando estiverem em causa os direitos humanos. Se nosso curto século XX
foi a era dos extremos, como Eric Hobsbawn propôs, paradoxalmente essa
era também ficará na memória dos tempos, lembra Norberto Bobbio, como
a era dos direitos.
|