
Mundialização,
Comércio Internacional
e Direitos Humanos
Luiz
Olavo Baptista*
Existência da Ordem Jurídica: a
associação entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento
A Ordem Jurídica Internacional do Fim
do Século e os Direitos Humanos: a legitimidade
Conclusão
Art.
28 Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os
direitos e liberdades estabelecidos na presente declaração possam ser
plenamente realizados
Declaração
Universal dos Direitos Humanos
Minha
preocupação constante com os direitos humanos foi a instigadora da
minha vocação para a carreira jurídica e, sem dúvida, tem sido parte
da minha vida. Como advogado, fui o primeiro defensor, não de ofício,
de presos políticos nos anos de chumbo. Como intelectual e pesquisador,
tenho me preocupado com o tema. Entretanto, notei que meu enfoque em
relação aos direitos humanos vem evoluindo. Da atuação passei à
reflexão. Esta também seguiu o percurso de outras preocupações,
inspirada pelas mudanças que o processo de globalização ou mundialização
vem aportando às relações e ao comércio internacionais, sobre os
quais desenvolvo minha atividade acadêmica.
Acredito
ser necessária uma discussão sobre os efeitos desses eventos, a qual
passa, tanto pela inserção dos direitos humanos na ordem jurídica
internacional, quanto pela contemplação de como são tratados nela.
Este
texto, entretanto, é apenas um ponto de partida nessa reflexão, ao
mesmo tempo que um apelo para que outros se debrucem sobre os problemas
detectados.
Existência da Ordem Jurídica: a
associação entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento
Os direitos de crédito,
por meio dos quais se exprime, no plano jurídico, a exigência da
solidariedade são uma idéia da razão que transpõe os limites práticos
do conhecimento no parar para pensar o problema da desigualdade
A
ordem jurídica é um requisito indispensável em qualquer situação em
que se encontrem os seres humanos. A própria existência do direito -
que sempre gosto de dizer que é como o ar, que não percebemos a não
ser quando nos faz falta -
está a indicar a indispensabilidade do mesmo. Não há ordem jurídica,
sem que exista o direito.
Assim
é também no plano internacional onde, como ressaltava Celso Lafer
as relações desenvolvem-se em planos diferentes: o dos assuntos estratégicos
militares, o das relações econômicas e o dos valores.
Todos
eles relacionam-se com o direito, e relacionam-se diretamente com a
ordem jurídica internacional, onde cada um repercute, de forma
diferente, sobre os direitos humanos.
Isso
fica evidente numa recordação da elaboração das normas
internacionais relativas aos direitos humanos, como adiante veremos.
As
relações internacionais influem de modo vital na existência dos
direitos humanos porque, como dizia Norberto Bobbio:
“La
pace è, a sua volta, il presupposto necessario per il riconoscimento e
l’effettiva protezione dei diritti dell’uomo nei singoli stati e nel
sistema internazionale”[3]
É
sempre nas épocas de paz que os direitos humanos vem se inserindo e
afirmando na ordem jurídica internacional, confirmando, assim a afirmação
do filosofo piemontês.
Essa
inserção segue na esteira de uma elaboração, desenvolvida ao longo
da história da humanidade, em que várias gerações sucessivas dos
direitos humanos foram explicitadas.
Proclamaram-se
primeiro, tornaram-se normas positivas depois, no interior dos Estados,
e a seguir, passaram para a ordem internacional. Se a proclamação
nesta vai adiantada, a positivação não. É ainda incipiente.
Não
hesito em dizer que este trabalho é mais proclamatório que
interpretativo.
Na
evolução histórica dos direitos humanos, a primeira geração
é a dos direitos ditos individuais: a liberdade de pensamento, as
liberdades civis e políticas, a liberdade de culto etc.
A
segunda geração é a dos direitos chamados sociais: a proteção do
trabalho, o direito à educação, o direito à seguridade social e à
proteção da velhice e da doença, e outros.
A
terceira geração, a que Celso Lafer chama também de direitos
coletivos, pois sua titularidade não é dos indivíduos, mas de
coletividades como a família, os povos e nações, e até a humanidade.
Nesta categoria incluem-se os direitos à solidariedade, ao
desenvolvimento, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, à
paz internacional etc.
Nos
diferentes planos das relações internacionais, a proclamação desses
direitos se faz de modo desigual em cada um. No plano dos assuntos
estratégico-militares vamos encontrar os direitos humanos da primeira
geração, como o direito à vida e à integridade física, que são os
primeiros a ser ameaçados com os conflitos, mas também os da terceira
geração.
No
plano das relações econômicas, vamos encontrar os direitos humanos da
segunda e da terceira geração. Estão ligados às condições para a
sobrevivência e o desenvolvimento das pessoas e das coletividades e
envolvem o direito a um trabalho, a uma remuneração justa, à alimentação,
ao desenvolvimento econômico, à solidariedade internacional etc.
Finalmente,
no campo dos valores, vamos ter a apreciação de todos os direitos
humanos já formulados, quanto à sua extensão e seu relacionamento com
os demais direitos, assim como na esperança e prospectiva dos que serão
formulados.
Celso
Lafer tem lembrado que foi a visão kantiana que corporificou a teoria
dos valores nas relações internacionais; com efeito, Kant pretendia
que cada ser humano é um fim em si mesmo e não um meio que os demais
pudessem instrumentalizar pelos seus próprios interesses. E o filósofo
germânico acrescentava ainda a sua visão de paz perpétua, cujo ideal,
como recorda Bobbio:
“non
può andare innanzi senza una graduale estensione del riconoscimento e
della protezione dei diritti dell’uomo al di sopra dei singoli stati.
Diritti dell’uomo, democrazia e pace sono tre momenti necessari dello
stesso movimento storico; senza diritti dell’uomo riconosciuti e
protetti no c’è democrazia; senza democrazia non ci sono le
condizioni minime per la soluzione pacifica dei conflitti”[6]
Mas
ao lado de Kant, Celso Lafer relembra, freqüentemente, Hugo Grotius
para o qual, se a política internacional é composta de confronto, ela
é também completada pela cooperação. Aí, destaca a importância das
tentativas de integração e das organizações que se criam na ordem
internacional. Elas serão instrumento da afirmação dos direitos
humanos, quer na esfera da palavra, quer na da ação, ou seja,
proclamando e positivando.
Ao
mesmo tempo, no importantíssimo trabalho que foi a sua tese de
Professor Titular,
Celso Lafer, partindo do seu diálogo com Hannah Arendt recorda o dado,
fundamental, de que é o reconhecimento do homem como pessoa pelo
direito, que permite que seja tratado como ser humano que é. E também,
fundado na evolução do pensamento de Grotius, destaca a importância
da normatividade na ordem jurídica internacional. A associação dessas
correntes de pensamento com o valor da paz perpétua de Kant acrescenta
mais um dado na visão do jusfilósofo brasileiro.
Ensina,
da sua maneira sempre clara e precisa, que o totalitarismo, para poder
destruir os direitos humanos, deixava de considerar pessoas como tal.
Por isso, o reconhecimento dos indivíduos como pessoas é um
pressuposto da existência dos direitos humanos, e esse reconhecimento só
acontece positivamente quando há uma ordem jurídica. E que esta
consagre determinados valores, entre eles os da democracia e os que, na
história do direito, foram formulados para assegurar as garantias
individuais e os direitos humanos.
Ora,
vê-se aí a necessidade de uma ordem jurídica, que precisa ser democrática
para a positivação dos direitos humanos e seu resguardo.
Foi
com o iluminismo, e a Revolução Francesa, que se teve a idéia de se
formular codificadamente os direitos das pessoas, a partir, aliás da
codificação dos direitos da pessoa humana.
Aí
também está a fonte da democracia moderna, pela proposta de um Estado
fundado no sufrágio universal e na igualdade das pessoas (aliás, dois
direitos fundamentais, pois além do valor que protegem são o meio para
que outras garantias se desenvolvam).
A
Declaração universal dos direitos do homem, o mais belo fruto da
revolução francesa, é um monumento à ordem jurídica, servindo de
modelo à técnica das codificações, que prosseguiram com o Code Napoléon.
Entretanto,
essa declaração, apesar de incompleta para nossos padrões, é um
ponto de partida para o estabelecimento dos direitos humanos, e
sobretudo é quem vai introduzi-los na ordem internacional, quer pelas
aspirações dos revolucionários de 89, quer pela sua redação e conteúdo,
ambos universalistas.
Estava
dada a partida na proclamação. A positivação viria depois, passo a
passo, cercada de lutas, ou resultante de conflitos.
Os
tratados para abolir a escravidão e o tráfico de escravos (1926), para
regular os trabalhos forçados (1930), os tratados sobre o tratamento
humanitário de prisioneiros, proibição de gases e químicas na
guerra, a criação da Cruz Vermelha, estão entre as normas que começam
a construir o reconhecimento do indivíduo naquelas condições
extremas, em que a ausência da ordem jurídica está evidente e em que
predomina a força bruta, que decorrem das situações de conflito bélico.
Mas
essa construção opera-se, também, quando há paz, e vão se
desenvolvendo, pouco a pouco, normas jurídicas de alcance
internacional, que vão permitindo o reconhecimento e as garantias dos
direitos do indivíduo.
Estes
tratados, como muitos outros, é bom que se repita, são normas
garantidoras dos direitos humanos. Positivam-nos.
Mas
norma sem sanção não configura uma ordem jurídica. Como ensina
Bobbio, a característica dos sistemas jurídicos é serem completos,
determinarem condutas e sancionarem-nas.
Há,
por isto, sanções na ordem internacional, garantindo o cumprimento das
normas relativas aos direitos humanos. Vamos vê-las, garantindo a paz,
nas intervenções das Nações Unidas, ou autorizadas por esta em países
ou regiões em conflito ou que ameaçam gravemente a paz mundial. Vamos
encontrá-las também em Nuremberg, punindo os genocidas, assim como,
sucessivamente, nos tribunais da Haia e de Arusha, mais recentemente.
Na
fase em que a visão era, ainda, a dos direitos individuais ou direitos
de garantia, vamos ver a sanção sendo delegada aos Estados, mediante
um sistema de competências concorrentes ou distribuídas. Cada novo
tratado se encarregava de desenhar um pedaço desse quebra cabeças, e
registrava um novo marco na proteção aos direitos humanos.
Entretanto,
é com a “ruptura totalitária”, na feliz expressão de Celso Lafer,
que vai começar uma reconstrução dos direitos humanos, em nova
escala, objeto de sanção na ordem internacional. Além das sanções
decorrentes do consenso político e da ação diplomática, desenham-se
mecanismos que permitem aplicá-las no âmbito jurídico.
Nuremberg
é o primeiro passo, com a constituição do tribunal dos crimes de
guerra; a Corte Européia dos Direitos Humanos, o Tribunal de São José
da Costa Rica e agora a nova Corte Criminal Internacional, objeto do
tratado de 18/07/98, de Roma, são decorrência natural dessa evolução.
Como
ressaltava Ignacy Sachs em conferência no IEA-USP,
“o século XX foi marcado por
duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido
como projeto político e industrial”.
A
resposta a esse horror veio com os julgamentos de Nuremberg e com a
Carta das Nações Unidas. Ambos consagram direitos humanos da terceira
geração.
É
importante mudança, e que acrescenta ao tratamento da pessoa como indivíduo,
a consideração do mesmo enquanto parte de uma coletividade, e também
enquanto integrante da mesma espécie.
É
um processo contínuo de evolução, como refere Ignacy Sachs:
[e]nquanto
se consolida o registro da primeira geração dos direitos políticos
civis e cívicos, balizando o poder de ação do Estado e se fortalece o
da segunda geração dos direitos sociais, econômicos e culturais, que
impõe uma ação positiva ao Estado, uma terceira geração de
direitos, desta vez coletivos faz sua aparição: direito à infância,
direito ao meio ambiente, direito à cidade, direito ao desenvolvimento
dos povos, enfim reconhecido na conferência de Viena em 1993.[11]
Entretanto,
é preciso dizer que a positivação desses direitos na ordem jurídica
internacional é ainda fragmentária e incompleta.
As
maiores lacunas aparecem no campo dos direitos econômicos e sociais,
onde ocorrem as maiores resistências.
A
solidariedade não é, infelizmente, o sentimento mais difuso entre os
humanos, e dele se poderia dizer que é a antítese do bom senso
cartesiano - extremamente mal distribuído.
É
bem verdade que propostas ideológicas, na esteira das religiosas,
historicamente afirmaram a solidariedade como um valor fundamental.
Entretanto, paradoxalmente, é nesse âmbito que vamos encontrar a negação
da solidariedade proclamada, na prática de atos concretos, como as
experiências da Inquisição e do Gulag, entre muitas outras, ilustram.
É
por isto que precisamos examinar mais de perto como e quanto, na ordem
jurídica internacional, foi possível afirmar os direitos humanos desse
tipo, e o grau de efetividade que alcançaram neste fim de século.
A Ordem Jurídica Internacional do Fim
do Século e os Direitos Humanos: a legitimidade
“Tendo
em vista o cenário mundial como se apresenta hoje, pode-se dizer que a
nova ordem apenas começa a se estruturar, mostra-se caótica, está em
desenvolvimento e não é suscetível de formulações
simplificadoras”[12]
“O
debate sobre a estrutura desejável das relações econômicas do mundo,
do ponto de vista dos países subdesenvolvidos, transita inicialmente
por reivindicações e insistências importantes, não só política mas
também epistemologicamente, uma vez que o melhor intérprete do
interesse coletivo da comunidade internacional é a própria
coletividade internacional no seu conjunto”[13]
A
visão dos direitos humanos que nasce após a Segunda Guerra Mundial,
como vimos, encara-os também sob o aspecto coletivo, e não mais,
apenas, como garantias de direitos individuais.
Se
na evolução da ordem jurídica internacional, no que eu chamaria
da sua primeira fase, a construção dos direitos humanos se
desenvolveu a partir do reconhecimento dos direitos de cada indivíduo,
na sua reconstrução, após a Segunda Guerra Mundial, passou a se
reconhecer os direitos do indivíduo enquanto membro de uma
coletividade.
Nesse
caso, talvez a principal indicação da nova atitude foi a recorrência
do uso da palavra cooperação,
primeiro na Carta das Nações Unidas, depois na maioria dos
documentos nascidos no seio da organização.
A
noção de cooperação é uma noção de solidariedade; só se
coopera num ato solidário. E a solidariedade, repito, é um dos
valores maiores na construção dos direitos humanos; sem ela não há
reconhecimento da pessoa nem direitos humanos.
No
âmbito dos direitos coletivos, destacou-se o direito
ao desenvolvimento, pois, como bem lembrou Ignacy Sachs,
“O
desenvolvimento pode ser visto como um processo de aprendizagem
social que recorre às faculdades da memória e da imaginação, as
quais constituem traço distintivo de nossa espécie...
Enfim,
quando falamos do desenvolvimento em termos de libertação, estamos
diante de algo mais que uma metáfora. Na realidade, ele passa pela
libertação humana com relação à opressão material, o que supõe
partilha eqüitativa dos bens e a supressão de todos os entraves
que impedem o seu desabrochar em busca de uma melhor situação”[1]
E
é justamente a partir desta construção, que encara os direitos
humanos coletivamente, que a espécie passou também a ser
contemplada como sujeito deles, por exemplo, nos direitos relativos
à proteção do meio ambiente, configurando o que se chamou de
direitos humanos da quarta geração,
destacando os dos direitos coletivos da terceira geração.
Como
quer que seja, quando a humanidade considera os oceanos como seu
patrimônio, quando trata a Antártida como inapropriável, ou
quando dispõe que o espaço e os corpos situados no espaço não
pertencem a ninguém e a todos, está enunciando os direitos da espécie.
Assim também quando se afirma o direito da humanidade à preservação
do meio ambiente.
Assim,
a evolução no direito internacional vai dos direitos do indivíduo
isolado, primeiro de modo restrito, depois de modo mais amplo e
ativo, passando a seguir, para a proteção dos seres humanos e
chegando aos da espécie - o que consiste em projetar os direitos
humanos para o futuro, contemplando pessoas que ainda não nasceram,
mas apenas porque fazem parte de nossa espécie.
Entretanto,
não se esgota no meio ambiente a projeção para o futuro dos
direitos humanos. Nela se inclui o direito ao desenvolvimento econômico,
que o Pe. Lebret, definia como “uma civilização do ser na
partilha eqüitativa dos bens”, noção decorrente da
solidariedade social que, associada à idéia de cooperação,
inspira os direitos humanos, da segunda geração em diante.
Essa
construção dos direitos da espécie, como aconteceu com os
direitos do indivíduo, é um processo de adensamento progressivo,
um processo sedimentar e de especificação, passando também pelas
fases da proclamação e positivação.
Mas,
um novo elemento se agrega: a legitimação.
Se
a proposta de novos domínios para os direitos humanos pode partir
de indivíduos, sociedades de direito privado (as ONGs), pode também
partir de Estados ou Organizações internacionais. Entretanto a
proclamação e a positivação dependem em última instância dos
Estados (embora possam se fazer e se façam, muitas vezes, no seio
das Organizações internacionais).
Surge
então a questão da sua legitimação, que se confunde com a da ação
e das propostas dos Estados. E a legitimação opera-se no retorno
ao plano dos valores nas relações internacionais, mas sob outros
ângulos, além da garantia dos direitos humanos Ela se desenvolve
na justificativa da proclamação e da positivação, assim como na
definição das políticas a seguir e de sua eficácia.
O
advento da visão neo-liberal neste final de século, vinda na
esteira do fim da Guerra Fria, colocou-nos diante de certas
propostas ideológicas assustadoras, por que negam o dever de
solidariedade e erguem os valores econômicos, em especial o da
acumulação de riquezas, acima dos da pessoa.
Essa
formulação ideológica não é explicita, mas lê-se nos efeitos e
nas ações, ficando implícita nos discursos.
Com
efeito, nesta visão, que chamo de anarco-liberal para não
confundi-la com a liberal autêntica, que era historicamente
humanista, pois associava à liberdade de mercado a das pessoas
(assegurada pelos direitos humanos) vamos encontrar uma glorificação
da lei da selva.
Propugna-se
na ordem econômica, do ponto de vista da teoria, uma ausência de
quaisquer peias e de quaisquer limites para tudo aquilo que tenha
motivação econômica. A moeda, e sua acumulação, passam a ser os
valores dominantes, e não o ser humano; a acumulação de riquezas
e a avareza predominam sobre a solidariedade e a cooperação.
É
como se houvesse uma visão neo-hobbesiana em que o Leviatã deixa
de ser o Estado para ser a especulação monetária, ou spengleriana,
valorizando o triunfo da lei do mais forte, aplicável tanto no
plano dos indivíduos, das coletividades, como no dos Estados. Isso
tem efeitos na leitura que se passa a fazer da ordem econômica
internacional.
Para
a retomada e defesa do percurso dos direitos humanos na ordem
internacional, é preciso, então, desenvolver uma reflexão sobre o
binário do controle dos abusos decorrentes da mundialização
financeira, e da busca da paz e da segurança globais, protegendo os
menores contra os maiores.
Isto
é, será preciso recuperar e valorizar as noções de cooperação
e de solidariedade, reintegrando-as no discurso internacional, em
especial no campo das relações econômicas.
A
mundialização na órbita financeira, cujos efeitos estamos
assistindo aterrados, tem conseqüências extremamente assustadoras
para os direitos humanos.
É
a substituição dos valores que é aterradora. A pretexto da
liberdade do mercado, permitem-se ataques especulativos contra a
moeda de economias mais fracas. É como se fosse, num bando de
lobos, os mais fortes atirando-se sobre os animais feridos ou mais
fracos da alcatéia, para destruí-los, e alimentar-se dos seus
despojos, ou até mesmo para dar vazão à própria violência e
afirmar a própria força.
Não
é possível que a humanidade possa aceitar que esta conduta
continue no passo em que segue.
Cada
vez que ocorre uma manobra de especulação financeira, e que os países
que têm forças a elas resistem, perdendo muito e se empobrecendo,
os que não têm forças tombam imediatamente.
Em
uns e outros há feridos de morte e sofrem os que neles vivem,
arrebentam-se orçamentos públicos, resultando na impossibilidade
material dos Estados assegurarem muitos dos direitos humanos; sofrem
as garantias individuais da segunda geração.
Em
que se baseou essa mudança de rumo? A meu ver ocorreu por razões
políticas e tecnológicas.
As
segundas, creio, precedem as primeiras.
Como
com acuidade lembra Fernando Henrique Cardoso, as revoluções na
era moderna ocasionam mudanças a partir de um “curto circuito”.
Os curto circuitos na eletricidade, como sabemos, ocorrem em razão
de sobrecargas. Na sociedade também. Atingido um ponto crítico nas
cargas sociais, ocorre o curto circuito de que resulta a mudança.
O
advento da nova tecnologia das informações - isto é, o fato de
que se fazem por meio digital, numérico se preferirem, - e a existência
das máquinas para processá-las - computadores e aparelhos que os
utilizam (satélites, cabos óticos etc.) fez com que o modo como as
pessoas fazem negócios e se relacionam se alterasse.
Dentre
as mudanças mais importantes está a ocorrida com a moeda.
Materializada (conchas, ouro, prata, cacau, cobre, papel moeda,
etc.) ela evolui para o ser escritural (com o desenvolvimento da
contabilidade, em especial a bancária). Quando surge a
possibilidade tecnológica nova da numerisação, passamos a ter a
moeda eletrônica ou digital, evolução-mutação da moeda
escritural que, ao contrário da lentidão desta, adquire uma
velocidade igual a do pensamento.
Associada
a moeda digital aos novos meios de comunicação, ela passa a
circular com uma liberdade nunca conhecida na história.
Os
que a manejam procuram aumentar sua esfera de liberdade diminuindo
os obstáculos regulamentares ainda existentes e evitando a criação
de novos. Busca-se a liberdade total, a ausência de regras, uma
verdadeira anomia no campo monetário. Só interessa aos operadores
financeiros a existência de regras que lhes protejam o direito de
propriedade.
Ao
mesmo tempo, a soberania sofre mutações. Controlar as informações
era exercer o poder, tanto quanto cunhar moeda. Mas, hoje, as
informações são incontroláveis e não se cunha mais a moeda,
porque é imaterial, eletrônica, passando a existir apenas como
registros contábeis. Ao poder de cunhar a moeda associava-se, na
soberania clássica, o de controlar o volume circulante através de
vários instrumentos, inclusive a restrição ao crédito, o recurso
a operações cambiais, a adoção de padrões monetários e muitas
outras políticas. Entretanto isto também mudou - hoje os
operadores financeiros são livres para fazer suas operações de câmbio
à revelia dos Estados, e mais, de aumentar o valor da moeda através
da criação de derivativos, operações que têm efeito
multiplicador sobre o crédito e o volume de moeda.
Com
a perda dos meios, os Estados deixam de poder exercer as formas
tradicionais de soberania. Perdem, perante os cidadãos, a
legitimidade. Não têm forças para controlar os fenômenos que
ocorrem ao seu redor. Terão forçosamente que criar uma nova concepção
da soberania em que certos aspectos que anteriormente eram
privativos de cada qual passarão a ser partilhados
internacionalmente (tomada a palavra no sentido etimológico e
atual, simultaneamente). Essa nova concepção de soberania, que
reforçará sua legitimidade interna e garantirá a internacional -
o que, e como, não cabe discutir aqui - é que lhes permitirá
assegurar o direito de acesso à escola, à saúde, e, às vezes até
mesmo à sobrevivência, em razão do desemprego e da fome que
resultaram das manobras especulativas.
Gilberto
Dupas, lembrando Peter Druker, diz que “em
todos os casos, o dinheiro virtual levou a melhor, comprovando que a
economia global é o árbitro final das políticas monetárias e
fiscais”.
Arthur Schlesinger, recorda ainda Dupas, “também
mostra-se apreensivo (...) acha que ‘o computador transforma o
mercado em uma monstruosa máquina maléfica global que rompe todas
as fronteiras (...) negando às nações a possibilidade de moldarem
seu próprio destino econômico (...) criando uma economia mundial
sem uma sociedade mundial”.
Ao
lado dessa desordem financeira, temos o fato de que o advento de
novas tecnologias agrava as desigualdades e gera o desemprego. Logo,
agravam-se os problemas da exclusão social. As cargas acumularam-se
para o curto circuito - que já terá ocorrido sem que tenhamos
percebido bem, ou ainda virá.
O
que quero destacar é que tudo isto se fez e faz ao arrepio do
Estado de direito, e portanto da legitimidade jurídica.
Com
efeito, o processo de mundialização financeira, na órbita jurídica,
é facilitado pelo enfraquecimento ou desagregação das instituições
de Bretton Woods. Estas, como recordamos, foram criadas na seqüência
da segunda grande guerra justamente para impor uma ordem - econômica
e jurídica - ao mercado financeiro. Mas, desde as crises dos anos
70, e ao “choque de Nixon”, o FMI deixou de desempenhar as funções
de controle e estabilização das moedas. Pior, tendo-as perdido
pelo esvaziamento, delas hoje se demite, propugnando, em nossos
dias, a total liberdade de circulação e câmbio das moedas sob a
falácia de que os mercados poderão e saberão se controlar, e com
isto contribui para agravar o problema.
Assim
como foi necessário regular o comércio internacional e estabelecer
parâmetros para que ele pudesse funcionar de maneira mais eficaz,
definindo e reprimindo abusos e práticas desleais, estabelecendo -
na medida em que a correlação de forças o permitiu - uma
diferenciação entre mais e menos desenvolvidos, e a OMC é marca e
guardiã do início desta obra, assim também será preciso
reconstruir o sistema de Bretton Woods.
É
preciso que o Banco Mundial e o FMI retomem a sua função especial
de guardiães da estabilidade da moeda e da estabilidade dos
mercados financeiros internacionais, e com os Estados comecem a
reconstruir uma ordem econômica internacional que regule os
movimentos de moeda, impedindo os fluxos especulativos e seus
efeitos danosos para a economia mundial.
Estamos
vivendo uma situação de “deslegitimização progressiva”, na
feliz expressão de Gelson Fonseca Júnior.
Tal como no exemplo que aponta, relativo às decisões do Congresso
de Versalhes, no período que se segue, do entre guerras.
As
forças políticas que apoiavam o quadro então criado são as que dão
suporte às normas criadas e lhes garantem a legitimidade, pois como
bem acentua o autor, “se
colocarmos o foco no mundo da alta política, que envolve as questões
de segurança, as disputas estratégicas e os embates étnicos,
religiosos e ideológicos [acrescentaríamos, a positivação
dos direitos humanos no âmbito internacional] veremos que a relação entre a lei e a legitimidade é complexa,
inclusive porque o poder, como vimos, é vizinho delas”.
Assim,
se reconhecemos - e esse parece um conceito já assentado, - que na
ordem interna a legitimidade decorre da associação entre
democracia, direitos humanos e ordem jurídica - teremos que
reconhecer que na ordem internacional, pelas características de sua
formação, agrega-se o elemento do poder.
Entretanto,
o quadro em que se afirmam os direitos humanos e a democracia é o
da ordem jurídica. E esta só se afirma fundada na legitimidade.
Tanto
uma quanto outra serão elementos indispensáveis para que se possa
viver de maneira mais humana e mais tranqüila. Serão elemento
necessário para assegurar a paz, sem a qual não é possível
garantir os direitos humanos, quer na ordem internacional, quer na
interna. Ao mesmo tempo darão eficácia e efetividade às decisões.
Não
devemos esquecer a lição da história e recordar-nos de que o prenúncio
da Segunda Guerra Mundial, justamente onde ocorreu a “deslegitimação
progressiva” da ordem jurídica então reinante, foi justamente a
desordem monetária internacional.
Compondo
este quadro sombrio, da desordem monetária internacional, ameaçadora
dos direitos humanos, temos o narcotráfico e o volume de moedas que
maneja, somas incríveis, maiores que o orçamento da maioria dos
Estados, e que segundo alguns já representam percentual
significativo dos movimentos financeiros globais. Por isso, também,
além do desafio constante à ordem jurídica, o tráfico de substâncias
estupefacientes representa grave ameaça ao tecido social, não só
dentro dos países como na área internacional onde atua. Como
trata-se de atividade tipicamente transnacional, desenvolvida à
margem do direito, por fora das soberanias, envolve grave ameaça a
estas e danos aos direitos humanos da primeira à terceira geração.
Por
outro lado, a existência de liberdade total e de uma verdadeira lei
da selva predominando no campo monetário, associado aos meios eletrônicos
que asseguram pagamentos instantâneos e relativo anonimato, bem
como à chamada “titrisação” - através dos derivativos e
outros instrumentos financeiros - vem servindo e abrindo novos
caminhos ao processo de lavagem de dinheiro - tanto o proveniente do
narcotráfico como de outros ilícitos - no mercado financeiro
internacional.
É
fato conhecido dos que acompanham a atividade criminosa organizada
internacional, que para dar aparência de legitimidade aos seus
recursos financeiros, os infratores os inserem, por vários meios,
no circuito monetário legal. Quando os volumes atingem certa dimensão,
a operação de lavagem passa a ser feita internacionalmente, e
usando tanto o abrigo de companhias de paraísos fiscais de reputação
torva, quanto o jogo dos futuros. A sociedade A perde para a
sociedade B no mercado de futuros, e esta registra os seus lucros
como operação legítima. Por se tratar de operação de futuros,
é possível empenhando somas menores ganhar outras muito maiores.
A
possibilidade de sucesso dessas operações aumenta nos momentos de
maior especulação e instabilidade - exatamente nas crises monetárias
e nos ataques especulativos.
Seria
ir longe demais afirmar que é o grande crime internacional que
provoca essa turbulência. Isso ainda não parece possível. Mas,
sem dúvida, ele está no meio dela aproveitando, e quiçá - pelo
elemento psicológico que envolve muitos desses eventos - atuando.
De
qualquer modo, legítimos ou não, os fundos manejados pelos
especuladores, a sua atividade não o é. Ela é danosa, tanto aos
Estados como às pessoas.
Essa
ameaça é tanto maior quanto há um desequilíbrio militar que
permite senão a hegemonia, pelo menos o predomínio de uma potência.
Todos nós podemos recordar que os períodos de paz relativa da
humanidade nos tempos modernos ocorreram nos momentos de maior equilíbrio
militar e comercial, e de maior estabilidade econômica entre as potências.
Será que não deveríamos nos preocupar com a presença desses dois
reagentes, em contato um com o outro?
É
claro que a evolução do direito internacional diminui o arbítrio,
além de que a facilidade e amplitude das comunicações fazem com
que o peso da opinião pública sirva como moderador nos excessos.
É
preciso então refletir sobre a paz e a segurança globais para
completar este trajeto “vol d’oiseau” pelos direitos humanos
no alvorecer do século XXI.
As
ameaças à paz e à segurança globais, vêm exatamente da ausência
de governabilidade ou de governance,
como querem alguns.
Na
medida em que a sobrevivência dos países fica à mercê dos
caprichos da banca internacional e dos especuladores, ou a segurança
individual e a paz, à mercê dos caprichos dos terroristas e dos
interesses dos barões das drogas, aí também, estamos diante de
circunstâncias extremamente complexas para a ordem política
interna.
A
par das ameaças que essa nova forma de criminalidade representa,
ressuscitando outras que se supunha em desaparecimento - como o tráfico
de pessoas para fins de prostituição, o trabalho escravo, etc. -
vemos o recrudescimento de práticas de lavagem de dinheiro que
implicam no recurso ao mercado de futuros e a atividades
especulativas com moedas.
Sem
sombra de dúvidas, grande parte dos ataques especulativos a moedas
ocorridos nos últimos anos conta com recursos oriundos do narcotráfico
e serviu para a “lavagem” de dinheiro.
A
destruição do tecido econômico acarreta inelutavelmente danos ao
tecido político e social. E as destes, à ordem jurídica. O país
que sofre um ataque especulativo e vê as suas estruturas econômicas
arrebentadas pela pretensa liberdade de câmbio (na realidade a
liberdade dos especuladores financeiros internacionais), vê ameaçada
a sua paz e segurança internas, aumentar a miséria e com isso
negados os direitos humanos. Enquanto isso, os aventureiros e os
narcotraficantes prosperam.
Como
não temer a especulação monetária quando a paz e a segurança
globais são ameaçadas?
Como
se não bastasse, da miséria e da desigualdade nascem
ressentimentos e movimentos ideológicos e religiosos que,
deturpados, dão origem ao terrorismo e aos fundamentalismos.
Vemo-nos,
destarte, também ameaçados, de um lado pelos atos desenfreados do
terrorismo, e de outro pelo advento dos fundamentalismos, fenômenos
que por definição denegam e ignoram os direitos humanos.
A
tudo acresce o temor decorrente dos meios tecnológicos que passaram
a ficar à disposição dos terroristas, substituindo as armas
manuais e as bombas dos atentados do começo do século. Mísseis,
explosivos plásticos com controle remoto, a arma atômica, as armas
químicas, e bacteriológicas, são todos instrumentos colocados nas
mãos daqueles que o desespero atirou no terrorismo e na
irracionalidade da violência ou nas ações do crime organizado, ou
dos aventureiros que se apropriam do vácuo de poder para seus próprios
propósitos.
Com
isto vemo-nos diante da necessidade de criar novos meios de controle
social, desta vez internacionais, para assegurar a paz e a segurança
dos povos, promovendo uma nova forma de ordem que assegure os
direitos humanos assim ameaçados.
É
preciso também retomar as preocupações com o direito ao
desenvolvimento. Como bem acentuou Antônio Augusto Cançado
Trindade:
“a
Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento
de 1986, corretamente situa o ser humano como sujeito central do
processo de desenvolvimento. Reclamando um maior fortalecimento na
inter-relação entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos
em todo o mundo, a Declaração de Viena, ao endossar com firmeza os
termos daquela Declaração, contribui para dissipar as dúvidas
porventura persistentes e inserir o direito ao desenvolvimento
definitivamente no universo do Direito Internacional dos Direito
humanos[10].
Sem
sombra de dúvida toda a retomada de um discurso sobre direitos
representa uma caminhada para uma ordem jurídica justa e
garantidora dos direitos humanos.
Conclusão
Toda
preocupação com os direitos humanos passa, na ordem internacional,
pela reconstrução em primeiro lugar do sistema financeiro
internacional, visando evitar o seu uso indevido pelos
narcotraficantes e pelos especuladores. Em segundo lugar, pela
retomada do discurso da cooperação, da fraternidade e do
reconhecimento da solidariedade entre os seres humanos.
Não
se pode falar de ordem jurídica sem falar em direito, e este é
supedâneo da justiça. Não existe sem esta. É arremedo e farsa
quando permite a opressão e fecha os caminhos para a solidariedade
e a cooperação internacional, deve assegurar os direitos humanos,
inclusive o direito ao desenvolvimento. São esses valores que lhe
asseguram a legitimidade.
Concluo
dizendo que escrevo a partir do meu contexto - de brasileiro e de
advogado - e pedindo emprestada uma frase que explica estas reflexões
“É claro que estou pondo os meus valores em avaliação - o
desenvolvimento tem que vir com democracia e com incorporação”.
É
preciso que todos se incorporem ao mundo do Direito, que a ordem jurídica
lhes assegure as garantias que precisam para viver, e que isso se faça
no ambiente de liberdade, de respeito às leis, de solidariedade e
de cooperação, tanto no âmbito interno como no internacional.
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