
Eugênio
Bucci
Jornalista
Antes
de começar, vamos lembrar o “parêntesis irritante”
de um velho livro brasileiro:
“Um
parêntesis irritante:
Abramos
um parêntesis...
A
mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos,
prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda
quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça
superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A
mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu,
o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios
evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre
obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um
estimulante à revivescência dos atributos primitivos
dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união
entre as raças, breve existência individual em que se
comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um
desequilibrado. (...)
Como
nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que
se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou destróem-se
segundo os caracteres positivos e negativos em presença.
E o mestiço — mulato, mameluco ou cafuz — menos que
um intermediário, é um decaído, sem a energia física
dos ascendentes selvagens, sem a atitude intelectual dos
ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade
que o acaso possua, ele revela casos de hibridez moral
extraordinários. (...) O mulato despreza, então,
irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade
ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua prole o
estigma da fronte escurecida; o mameluco faz-se o
bandeirante inexorável, precipitando-se, ferozmente,
sobre as cabildas aterradas...”
Fim
do parêntesis.
Estamos
ainda no início de Os Sertões, na segunda
parte, O homem, e só o que se lê são ofensas
à qualquer indivíduo que não seja de uma raça pura.
Branca, de preferência. Algumas páginas mais adiante,
porém, Euclides da Cunha escreveria a sua frase célebre:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Assim,
concederia um histórico elogio àquele que é produto
de uma intensa miscigenação. Interessante é que o
elogio vem seguido de uma ressalva: “Não tem o
raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do
litoral.” Euclides detectou no sertanejo, apesar de
todas as “conclusões do evolucionismo”, uma
subcategoria étnica dotada de uma originalidade
surpreendente. Mas quis destacar que o caso constituía
uma exceção à mestiçagem.
Os
Sertões
é um clássico, uma obra magnífica sem paralelos na
cultura brasileira. Não obstante, está repleto de
frases e pensamentos racistas, terrivelmente racistas.
Preconceituosos, como dizemos hoje. É verdade que o próprio
autor registrou, nas notas que preparou para a terceira
edição, de 1905, que se encontram em seu livro
“coisas disparatadas”. Explica-se: apesar dos
impropérios
contra a mestiçagem, ele mesmo escreveu, quase
quinhentas páginas adiante, que o sertanejo era “o
cerne da nacionalidade”, “a rocha viva da
nossa raça”. Mais ainda, Os Sertões,
para além dos trechos que possamos hoje chamar de
racismo, é a defesa eloqüente do sertanejo. Euclides
descreve, denuncia e condena o crime que contra o
sertanejo foi cometido. Em Canudos, “a rocha viva da
nossa raça” foi em parte destruída por um poder que
não o admitia como interlocutor, como igual, como cidadão.
Para conforto daquele poder e de seu exército, era
preciso varrer da terra árida o Antônio Conselheiro e
sua gente (que não era para ser tratada como gente).
Quero
insistir nessa idéia de “coisas disparatadas”. Eu
poria da seguinte forma essa contradição: um
pensamento filiado a uma ciência racista, de fins do século
XIX, que acreditava em raça superior e outras coisas
assim, serve para erguer uma obra-prima do humanismo,
uma obra contra a prepotência, a intolerância e a
matança. Retomo a contradição para alertar que, em
matéria de preconceitos, as “coisas disparatadas”
fazem parte do nosso dia-a-dia. Em matéria de
preconceitos, não há pecadores e santos, não há
preconceituosos nojentos e não-preconceituosos puros.
Entre os dois, há uma bagunça imensa. E é dela que eu
gostaria de tratar.
O
meu tema é a sociedade de consumo. Não vou aqui tratar
dos preconceitos já exaustivamente apontados na
publicidade, que dá preferência às mulheres jovens e
esguias de olhos claros; não vou reclamar dos shopping
centers que não têm rampas para as cadeiras de
rodas, nem pretendo denunciar a inexistência de xampus
para negros no mercado brasileiro. Isso tudo já foi
mais do que registrado, denunciado, e até já começa a
ser corrigido. Creio que o debate será mais produtivo
se buscarmos contradições e preconceitos menos
comentados do que aqueles. Daí eu ter recuperado o
trecho de Os Sertões. Ele nos obriga a
raciocinar a partir do contraditório. Se podemos
encontrar e, com os olhos de hoje, delimitar claramente
as “coisas disparatadas” no livro de Euclides, na
atual sociedade de consumo há coisas ainda muito mais
disparatadas, das quais nós mal tomamos consciência.
Percebê-las é muito mais difícil. O que pretendo
expor aqui é de que modo o ato de consumir mercadorias
nos leva a consumir preconceitos inadvertidamente; em
muitas ocasiões o desejo de consumir pode nos conduzir
a posturas preconceituosas e nós nem percebemos. Para
aumentar a confusão, nem sempre esses preconceitos se
mostram como tal.
A
minha hipótese é que a intensa propaganda, a celebração
permanente e reiterada do consumo nos meios de comunicação
e mesmo o gesto de consumir como via de afirmação e de
realização pessoal, para além da simples satisfação
de necessidades materiais objetivas, são processos que
a um só tempo produzem e ocultam preconceitos de uns
homens em relação a outros. Não pretendo cair em
generalizações e nem condenar as relações de consumo
de um modo dogmático (em princípio, não há nada de
errado em consumir mercadorias; trata-se, aliás, de um
direito das pessoas), mas a busca obstinada de cada um
em saciar desejos, desejos erotizados pela publicidade,
a procura do prazer individual como orientação para o
consumo, embora possa apresentar-se como um caminho para
algum tipo de felicidade, talvez seja o agravamento do
egoísmo (e do egocentrismo) numa sociedade em que a
autoestima depende da desvalorização do outro, isto é,
uma sociedade em que o indivíduo, para afirmar-se,
precisa se imaginar melhor, ou maior, ou mais poderoso,
ou mais rico, ou mais afortunado, ou mais atraente, ou
capaz de ter mais prazer que os seus semelhantes.
Sei
bem que não se trata de uma hipótese de fácil aceitação.
Como eu disse, no início, vamos lidar aqui com
“coisas disparatadas”. Há preconceitos onde há
satisfação de necessidades, assim como há racismo
numa obra clássica, vocacionada a combater a prática
da exclusão social e, portanto, a combater o racismo e
o próprio preconceito.
A
ambição da reflexão que proponho não é convencer a
todos. A mim bastaria que admitíssemos as ambigüidade
das situações, ou melhor, a sua polaridade, bastaria
que não nos
pretendêssemos
libertos de todo preconceito acusando a multidão à
nossa volta de preconceituosa. A ambição, aqui, é
encarar as polaridades e pensar alguma coisa
(“disparatada”) a partir delas.
* * *
Muitos
têm preconceito contra filmes brasileiros. Ou têm
mesmo uma birra justificada: sentiram-se desconfortáveis
vendo filmes nacionais e não querem mais repetir a
dose. Assim, dá-se o “não vi e não gostei” a cada
novo longa metragem brasileiro que aparece. Quanto a
mim, tenho um preconceito ao contrário. De filme
brasileiro eu gosto por princípio. Gostei especialmente
de um (na verdade uma co-produção entre Brasil e
Estados Unidos), lançado em 1995: Jenipapo,
dirigido por Monique Gardenberg. É um bom ponto de
partida para a nossa discussão.
O
filme conta a história de um padre estrangeiro no
Brasil, o fictício padre Stephen (interpretado por
Patrick Bauchau), que apóia o movimento dos
trabalhadores rurais sem-terra. Padre Stephen,
reconhecido internacionalmente por seu trabalho humanitário,
tem sua paróquia numa região marcada por conflitos agrários.
O que intriga o espectador é que, enquanto as tensões
políticas se agravam no país, e exatamente no momento
em que uma importante lei agrária será votada no
Congresso Nacional, o padre Stephen se recusa a dar
entrevistas. Uma palavra dele poderia influenciar os
deputados a adotar uma posição favorável aos
sem-terra mas, mesmo assim, ele se recusa a falar. Justo
ele que era tão falante. Antes, em seus pronunciamentos
dentro e fora do Brasil, ele demonstrava que sobre os
sem-terra pesava não apenas a pobreza, mas um certo
desprezo da opinião pública. Eles não eram vistos
como pessoas no exercício de seus direitos, ou melhor,
pessoas que buscam o atendimento de um direito. Eram
retratados como baderneiros, não como cidadãos. Antes,
as declarações do Padre deixavam claro que os
sem-terra, além da violência física, sofriam a violência
de um preconceito de classe. Agora, a razão de seu silêncio
é um mistério.
Um
repórter americano, Michael (Henry Czerny), decidido a
entrevistar o padre, não se rende àquela resistência.
Homem de muita ambição e pouco caráter, Michael
resolve inventar uma entrevista. Profundo conhecedor das
idéias e da biografia do líder religioso, forja
declarações que soam como se fossem verdadeiras. E sua
entrevista repercute decisivamente. Graças àquelas
falsas declarações, a maioria do Congresso vota
favoravelmente aos sem-terra.
Surge
aí uma primeira contradição. Uma mentira (a
entrevista forjada) leva a realização de uma justiça.
Em função dela, os excluídos sociais obtém uma vitória
legislativa. Uma falsificação jornalística contribui
para o não agravamento de um preconceito de classe,
para atenuar uma iniqüidade. Vendo isso, o padre
Stephen não desmente o repórter sem escrúpulos. Quer
dizer: alia-se a um mentiroso. Com sua anuência, torna
verdadeiras as falsas declarações.
É
só então que vem a tona o motivo do silêncio do padre
Stephen. Ele vinha sendo chantageado pelos latifundiários.
Nunca mais poderia dizer nada à imprensa. Seus inimigos
conseguiram contra ele um argumento incontornável:
fotos íntimas em que o sacerdote aparece fazendo amor.
Caso ele se manifeste, as fotos serão divulgadas.
Portanto, após a publicação da entrevista, o
religioso se encontra na iminência de sua completa
desmoralização diante do país e do mundo.
O
desfecho será trágico. Se o preconceito contra os
despossuídos não bastou para imobilizar o trabalho
daquele homem, que dedicou a vida a combater a injustiça
no campo, o preconceito sexual terá sido bastante para
emudecê-lo. Tivesse ele um romance com uma mulher e a
situação poderia até ser vencida de alguma maneira,
mas o caso de amor do padre Stephen é um caso de amor
homossexual. Isso nem mesmo os trabalhadores sem-terra
aceitariam. Vem daí, do preconceito que os excluídos
sociais compartilham com os fazendeiros mais reacionários,
a grande força da
chantagem
armada contra o padre. Se ele não perdeu a guerra
contra os latifundiários, arrisca-se a perder a honra
(e a própria vida) para o preconceito sexual.
Por
isso lembro aqui a história de Jenipapo. O filme
nos ajuda a perceber que, em matéria de preconceitos, não
existem apenas dois lados: um absolutamente compreensivo
e generoso e outro perverso e inteiramente intolerante.
Os dois pólos se confundem e se entrelaçam, num
complexo difícil de ser repartido de modo maniqueísta.
É ingênua, ou é pretensiosa, a postura dos que se
imaginam livres de preconceitos. Entender os mecanismos
pelos quais preconceitos e não-preconceitos se misturam
é uma tarefa árdua mas indispensável aos que procuram
um mundo mais fraterno e de mais respeito entre os
homens. Antes de tudo, temos de assumir que existimos em
meio às “coisas disparatadas” que Euclides da Cunha
identificou dentro de sua própria obra-prima. Essas
“coisas disparatadas” fazem parte da rotina de cada
um de nós.
* * *
Quando
se vai definir o que seja preconceito, diz-se que
preconceito é um pré-julgamento. Mas isso é pouco. Os
pré-julgamentos são inevitáveis — ainda que suas
conseqüências não sejam necessariamente drásticas.
Todo mundo, de um jeito ou de outro, acaba pré-julgando
e, com base nisso, orienta um pouco de sua conduta
individual. É triste: um pré-julgamento pode ser
limitante, mesmo sem ferir outra pessoa, pode impedir a
expansão cultural e existencial de cada um. É triste
mas é assim. Tem gente que nunca vai comer pratos
orientais porque se recusa a prová-los. Resolveu assim
e ninguém tem nada a ver com isso. Tem gente que não
ouve música de um ou de outro gênero porque sequer
admite a possibilidade de conhecê-los. Tem gente não
quer saber de filme alemão. Ou brasileiro.
O
que mais importa aqui, no entanto, não é esse pré-julgamento
para consumo individual — é a conseqüência do
preconceito no campo dos direitos. Em função de
preconceitos, muitas vezes, pessoas são excluídas,
humilhadas, prejudicadas. Em função do preconceito,
muitos vêem cassada a sua possibilidade de felicidade.
Nesses termos, é preciso tratar do preconceito como
algo associado ao poder — o preconceito nos importa à
medida que produz efeitos na vida prática e impõe
sofrimentos às suas vítimas.
Devemos
observar também como os preconceitos são a um tempo
causa e conseqüência de realidades perversas. Muitos
imaginam que mentes preconceituosas fabricam situações
injustas. Outros acreditam que a sociedade de classes é
quem gera todos os preconceitos. O fato é que as duas
alternativas são verdadeiras. Os negros da África do
Sul, para ficarmos num dos exemplos mais recorrentes, não
tinham os mesmos direitos dos brancos (e, em certa
medida, não os têm até hoje). Isso era (ou é)
resultado de preconceito e também era (ou é) origem de
mais preconceito. Nessa matéria, não basta mudar a
situação concreta. Também não basta mudar as
mentalidades. É preciso atuar nas duas frentes.
São
muitos os meandros, as sutilezas, os fios delicados,
quase imperceptíveis, que atam essas duas frentes uma
à outra. É muito comum que o preconceito de cor, ou de
classe, não se manifeste como tal, mas se expresse,
quando não se esconde por completo, como um preconceito
cultural. Até o início deste século era bastante
generalizada a recusa da sociedade branca à
musicalidade da cultura negra. Era o tempo do “madame
não gosta que ninguém sambe”.
Hoje, não é difícil perceber que, no fundamento
daquela recusa, havia um preconceito de cor e de classe.
Um preconceito que, bem adiante, ia dar na recusa de
democratizar a sociedade. A mesma “madame” que
andava “dizendo que o samba é vexame” não queria
saber de “mistura de raça, mistura de cor”.
Por isso, descaracterizava a produção da cultura
negra: “o samba brasileiro, democrata, é música
barata sem nenhum valor”. Atualmente, quase como antítese
(como negação da “madame” implicante cantada com
afinada ironia por João Gilberto), a “música de
preto”, no dizer de Djavan, entrou definitivamente na
moda. Paul Simon gravou com o Olodum, Caetano Veloso
proclamou “eu sou neguinha” e o grupo Raça Negra é
o grande fenômeno de vendas de discos em 1996. Podemos
identificar aí um desejo mais difundido de democracia,
inclusive de uma democracia racial. Mas a pergunta que
temos que fazer aqui é: será mesmo? Será que isso nos
garante que estamos na direção do final do
preconceito?
A
nova abertura do mercado cultural para as produções de
antigas minorias políticas, de povos antes oprimidos,
de etnias antes desprezadas, ganhou até um rótulo. No
campo musical, vivemos hoje um tempo em que se fala em música
do gênero étnico. Mas o que significa dizer que uma
determinada sonoridade pertence ao gênero étnico? As
respostas são bem variadas. Recentemente, folheando um
livro francês sobre história da música, em que os
compositores são classificados segundo estilos e
escolas, vi que Villa-Lobos mereceu um destaque de
algumas linhas por seu “valor étnico”.
Ora, argumentaria o leitor, mas se Villa-Lobos é étnico,
todo mundo é étnico. Temos aí um gênero que pode ser
“qualquer nota”.
Para
fugir da conclusão “qualquer nota”, talvez devêssemos
achar um outro caminho para chegar a uma definição.
Poderíamos tentar definir, por eliminatória, o que são
sonoridades “não-étnicas”. Novamente, porém,
corremos o risco de bater no vazio pois, ainda que
indireta e remotamente, qualquer som se refere à
cultura de alguma etnia, ou de algumas delas. Sim:
direta ou indiretamente, qualquer obra humana é étnica.
Até Villa-Lobos.
Resta-nos
então apenas um recurso. Voltando os olhos para os critérios
com que são dispostos os discos nas lojas, encontramos
um conceito mais aceito: étnico é um tipo de música
mais puro, ainda não contaminado pela civilização, um
tipo que conserva suas características originais
ancestrais.
Indo
além, é possível supor que étnico seja um termo
adotado de forma generalizada a partir das preocupações
e da vigilância do movimento conhecido como
“politicamente correto”. O termo étnico, nessa
perspectiva, pode ser entendido como uma tentativa de
superar outros termos, como “primitivo” ou
“selvagem”, hoje tidos como depreciativos. Mais ou
menos como o termo “afro-americano” substituiu “black”.
Assim, o termo étnico não apenas procura revogar uma
abordagem antes preconceituosa, que menosprezava expressões
culturais de etnias e povos da periferia do capitalismo,
como representa um esforço para transformar em
mercadoria cultural o que teria sido excluído pelo
modelo social globalizado.
Claro
que, entre a existência e a não existência dos discos
étnicos nas prateleiras de lojas de todos os
continentes, a existência é moralmente preferível à
inexistência. Garante-se, ao menos, o direito de
visibilidade (ou audibilidade) às culturas minoritárias.
Mas, como o objetivo aqui é problematizar, é útil
verificar em que bases o gênero étnico se apóia.
Uma
hipótese que não deve ser descartada é a de que,
sendo um eufemismo, ele seja um mecanismo para aliviar o
peso da consciência daqueles que usufruem da riqueza.
Comprando o étnico, os consumidores estão sustentando,
mesmo que marginalmente, produções culturais que o
modelo econômico (quase) matou.
Vejamos
o que acontece com a entrega do Oscar, todo ano. Ali não
são premiados os produtores, os atores, os diretores,
mas os valores que eles defenderam com
seus filmes: as vítimas da guerra, as vítimas do
racismo, das agressões sexuais, os explorados, os
deficientes físicos, os aidéticos. Na premiação do
Oscar, um ritual e uma celebração que unificam a indústria
do entretenimento da América e, por extensão, do mundo
inteiro, podemos entender ou, no mínimo, vislumbrar um
pouco do mecanismo da má consciência que alimenta o próprio
mercado cultural. Aplaudindo e premiando a tragédia dos
injustiçados, os astros e os administradores da indústria
do entretenimento se sentem aliviados.
Assim
há de se dar com os consumidores. Mas, se trata mesmo
de má consciência, devemos então presumir que ela não
se empenha em corrigir as barbaridades: a ela basta
bater palmas para o sofrimento de suas vítimas, ou
talvez comprar um disco de suas culturas minoritárias,
étnicas, que isso serviria para aplacar-lhe a culpa.
Aparentemente, o gênero “étnico” desponta como
reação ao preconceito contra sonoridades
“primitivas” ou “selvagens” e, por decorrência,
busca atenuar, pelo mercado cultural, os efeitos
nefastos da exclusão social e da pobreza econômica
que se encontram, com enorme freqüência, nas
localidades produtoras das sonoridades étnicas.
O
problema é que, se isso é verdade, as próprias leis
de mercado (que produzem a valorização mercantil do
étnico) nos põe diante de uma outra ordem de
preconceito, um preconceito reciclado, moderno.
Trata-se de um preconceito que reduz uma identidade
cultural a um tipo qualquer de exotismo, uma beleza em
estado bruto, em estado virginal — mas política e
economicamente indefesa. Esta beleza, por não ter
meios próprios para se defender e se preservar, por não
representar uma cultura soberana, chega ao mercado
precisando de proteção e compreensão, carente de
caridade — ela só pode sobreviver da indulgência
dos mais ricos. Ao ser vista assim, essa beleza foi
envolvida por um novo tipo de preconceito. Trata-se de
um preconceito que reduz o outro a um estereótipo e,
logo, torna-o de mais fácil consumo. Esse preconceito
que se apresenta como a negação do velho
preconceito, ou esse preconceito disfarçado pelo
manto do politicamente correto, consome o diferente
como quem consome o exótico porque o exótico é
inofensivo, inócuo, superficial, decorativo,
bonitinho mas impotente. Com isso, a vítima desse
preconceito não encontra no mundo seu lugar de
sujeito. Tem que se contentar com o seu lugar de
objeto. Objeto de consumo. Ou, pior ainda, objeto
desnaturado de consumo. Objeto desinfectado,
esterilizado, pasteurizado e plastificado para o
consumo.
Outra
vez, dentro do que aparece como um não-preconceito,
temos uma nova forma de preconceito. A “música de
preto” não é mais rechaçada como antigamente, mas
aplaudida pela “madame”. As conseqüências do
velho preconceito, no entanto, que são a exclusão, a
injustiça, a ausência de direitos iguais, não
necessariamente estão revogadas. Ao contrário,
muitas vezes são reforçadas pelo novo preconceito e
pela mercantilização do gênero étnico: étnico,
afinal, é aquilo que não foi tocado pela civilização
e assim deve permanecer, intocado, sob pena de perder
o fetiche que lhe dá o valor de troca.
* * *
Na
base desse novo preconceito (um preconceito cínico
que consome e aplaude o oprimido sem resgatá-lo da
opressão) está o funcionamento de um mercado
obstinado por traficar intimidades, prazeres e
caprichos. Seduzida pela esfera privada, a sociedade
de consumo esvazia o debate das soluções políticas
próprias da esfera pública. Richard Sennet, em O
declínio do homem público, identifica a
falência dos espaços públicos, da esfera pública e
do domínio público no mundo contemporâneo. Segundo
ele, estaríamos hoje fascinados pelos processos
intimistas, e só podemos ter uma visão e uma
compreensão da esfera pública a partir de modelos
dados pela psicologia, pela desenfreada busca do
“eu” (uma busca necessariamente egocêntrica).
Sennet afirma que “vemos a
sociedade
como uma coisa significativa somente quando a
convertemos num grande sistema psíquico”. É assim
que, no nosso tempo, os debates políticos são
permeados e até formatados pelos códigos da
publicidade, que personalizam, sentimentalizam e
dramatizam todos os temas públicos. Quer dizer: os
temas públicos são tratados como assuntos da
intimidade feito os namoros, as intrigas pessoais e as
fofocas.
Nesse
contexto, o mercado cultural cuida da absorção
sentimental —fútil — das realidades alheias como
se fossem elas meros bens descartáveis, retratos num
álbum de figurinhas ou acessórios de decoração da
sala de estar. É por isso que ele, mercado cultural,
apresenta-se como um exercício inconseqüente:
transforma até mesmo a miséria alheia num bem de
consumo (em fotos caríssimas, filmes de gigantesca
bilheteria, documentários laureados) mas nada reverte
de substantivo para sanar a miséria original. O
consumidor do Primeiro Mundo, nos países
desenvolvidos, vê-se convidado a contemplar com certo
encantamento a produção rítmica de povos esquecidos
e excluídos. Isso lhe dá uma doce sensação de
indignação, um gozo humanitário, um prazer
existencial. Mas dessa contemplação não resulta uma
alteração das injustiças. Diz Richard Sennet: “A
crença nas relações humanas diretas em escala
intimista nos seduz e nos desvia da conversão de
nossa compreensão das realidades do poder em guias
para nosso próprio comportamento político. O
resultado disso é que as forças de dominação ou a
iniqüidade permanecem inatacadas”.
Assim,
o que vemos hoje é o consumo do exótico, do único,
daquele que está ameaçado de extinção e que,
portanto, adquire valor (de mercado) cultural. A
mercadoria étnica parece portar algum resquício de
aura sagrada, vindo intacta de um estágio anterior à
era da reprodutibilidade técnica da obra de arte.
Temos assistido à distribuição em escala planetária
de mercadorias culturais étnicas, primitivas,
intocadas no melhor estilo “pegue antes que
acabe”. O vendedor promete: diretamente da barbárie
para você. E você compra.
* * *
Se
a loja de discos promete “diretamente da barbárie
para você”, nas agências de turismo mais
“modernas” o vendedor promete levar você
diretamente para a barbárie. Desenvolve-se no turismo
um novo fetiche: ver de perto, ver in loco,
olhar e consumir com os olhos, os ouvidos, o olfato, o
tato, o paladar e o sexo o primitivo, o “étnico”,
o produto genuíno da barbárie que viceja nos subúrbios
da civilização. Recentemente, ficamos sabendo no
Brasil da empresa que faz citytour nas
favelas cariocas.
Sim, há um lado positivo na iniciativa. Há gente
interessada em conhecer como moram, quem são, como
vivem os favelados — e isso é bom. Melhor conhecê-los
que ignorá-los. Mas, novamente, há o que
problematizar nesse ecoturismo que passeia por
paisagens humanas.
Nós,
que já sabemos da violência que o preconceito de
classe produz contra os necessitados — os recusados
no mundo do conforto, da cidadania e mesmo no mundo do
consumo —, agora somos apresentados, de novo, a um
outro preconceito invertido. É o caso de perguntarmos
aos visitantes o que é que eles achariam de ônibus
lotados de favelados visitando seus condomínios em
Paris, em Hamburgo, em Amsterdã, em Londres. Será
que eles abririam a esses viajantes os seus espaços
privativos? Como é que eles reagiriam ao ver turistas
de terras longínquas olhando com olhos cobiçosos as
suas filhas, verificando suas salas, fotografando suas
roupas a secar, comentando em línguas incompreensíveis
o vai-e-vem pelas portas de suas casas?
São
perguntas que talvez pareçam forçadas, mas devem ser
consideradas. A favela é um espaço compartilhado de
moradia: a casa, o domínio particular de cada um ali
não começa da porta para dentro, pois às vezes nem
porta existe direito. Na favela, o domínio da
privacidade se confunde com o espaço coletivo em
reentrâncias, em limites permeáveis, porosos, onde o
que é íntimo atinge o que é público e o que é público
abriga o que é pessoal de um modo improvisado,
singular, mutante. Os turistas que adentram as favelas
em cima de jipes estão passeando dentro da intimidade
de cada um habitantes. É mesmo provável que
pressintam isso, que saibam disso, mas se julgam no
direito de fazê-lo. Com sua consciência antenada
para as desigualdades sociais, ficam à vontade para
observar de perto a miséria alheia, embora não
permitissem intromissões iguais em suas próprias
vidas.
Eis
aí uma outra face do preconceito produzido pela má
consciência do mercado. Talvez os turistas e as
empresas desse tipo de turismo nem se dêem conta de
que a exposição das intimidades nas favelas não é
uma opção, não é uma realidade voluntária, mas é
uma condenação social que vitima gerações inteiras
sem que lhes tenha sido dada alguma escolha. Eles
sobrevivem daquela forma porque aquela forma de
sobreviver é a única que lhes restou — e não os
dignifica fazer deles atração turística. Quem
consome o favelado como atração, por mais que as
intenções sejam boas, está reforçando o
preconceito que exclui o favelado. Quem consome o
favelado como atração turística, e se delicia em
seu city tour pelas ruelas da miséria,
está reforçando a violência que o atinge.
* * *
O
público adquire os bens (culturais, turísticos e vários
outros) e, junto com os bens, consome os preconceitos
que eles carregam. Esses preconceitos, que nunca se
apresentam como preconceitos (preferencialmente,
apresentam-se como a negação de qualquer
preconceito), penetram a existência de quem consome
acabando por lhe dar, a ela própria, existência do
consumidor, uma significação mais coerente com a
ordem que está posta no mundo. Consumindo, o indivíduo
se situa. Num tempo em que a esfera e os espaços públicos
estão enquadrados pelos meios de comunicação e pela
linguagem publicitária, o homem se contextualiza pelo
consumo.
Com
a indústria cultural refeita em indústria do
entretenimento, a linguagem publicitária, amplificada
meios de comunicação e seus desdobramentos tecnológicos,
globalizou-se. No mesmo movimento, globalizou seus
valores próprios, mundializou-os, dando o contexto
em que a sociedade de consumo está posta. Como
veremos, as relações de consumo, mediadas pelos
valores da linguagem publicitária, proporcionam ao
homem, em grande medida, o seu sentimento de estar no
mundo — e mesmo o seu sentimento de cidadania. Já
no início da década de 60, Habermas detectava: “A
cultura integracionista preparada e difundida pelos
meios de comunicação de massa, embora pretenda ser
apolítica, representa ela mesma uma ideologia política.”
Agora, na era da globalização, podemos dizer que a
categoria de cidadão foi englobada pela categoria de
consumidor, o que nos leva a uma potencialização
jamais vista dos preconceitos próprios do consumo.
Em
Consumidores e Cidadãos, Nestor García
Canclini, é preciso ao afirmar: “Homens e mulheres
percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos
— a que lugar pertenço e que direitos isso me dá,
como posso me informar, quem representa meus
interesses — recebem suas respostas mais através do
consumo privado de bens e dos meios de comunicação
de massa do que das regras abstratas da democracia ou
pela participação coletiva em espaços públicos.”
De fato, como veremos a seguir, em inúmeros aspectos
o consumo como conceito e como prática expandiu-
se
demais e deixou de ser um dos direitos próprio da
cidadania. Em conseqüência, foi a cidadania que se
tornou um dos vários atributos do consumidor. É
exercendo a sua condição de consumidor que o homem
se reconhece cidadão.
Todos
os dias, em comícios de políticos, em programas de rádio
e televisão, em artigos de jornais e revistas e em
conversas informais, todos os dias alguém reclama do
poder público invocando a sua condição de
contribuinte. Por pagar impostos, homens e mulheres se
sentem cidadãos e, como cidadãos que são
contribuintes, cobram ruidosamente providências dos
governantes. (A verdade, como sabemos, é que nem
cobram tanto assim. Mas fazem lá sua encenação cívica.)
Ninguém aqui pretende contestar o direito de reclamar
que tem o contribuinte. Não se vai recusar a ele o
direito de exigir, de cobrar, de contestar as providências
da administração pública. Ao contrário, o
contribuinte até que poderia exercer com mais eficácia
e mais método esse direito. O que se perde de vista,
no entanto, é que o imposto de renda é também (ou
deveria ser principalmente) um mecanismo de distribuição
de renda. Perde-se de vista que o contribuinte paga não
porque ele, contribuinte, tem prerrogativas: ele paga
porque aqueles que se encontram abaixo da linha de
pobreza, que não ganham o suficiente para recolher
impostos, têm direitos sociais a ser satisfeitos. Ele
está pagando não a sua própria cidadania, mas a do
outro — o outro que ele despreza.
É
preciso dizer, aliás, que o direito de fiscalizar o
que se faz com a arrecadação fiscal não é
exclusivo de quem é contribuinte, mas pertence ao
cidadão (mesmo daquele cidadão que não paga um
centavo de imposto). Infelizmente, a noção de que
cidadãos também são os que não pagam imposto e que
devem receber benefícios sociais é algo que
contraria o senso comum da nossa época. Segundo esse
senso comum que eleva o conceito de contribuinte acima
do conceito de cidadão, a cidadania é uma mercadoria
que se compra do Estado. E dentro desse senso comum
mora um preconceito (uma variante do preconceito de
classe). Muitas vezes, quando alguém vocifera algo
como “o contribuinte exige” está excluindo
aqueles que não são contribuintes do direito de
exigir. Como se a sociedade fosse um condomínio. Quem
não paga está fora.
Mas
não é somente aí que podemos flagrar a cidadania
sendo vista como mercadoria, como um incremento a mais
na vida do consumidor. É comum em quase toda a
propaganda anti-socialista da segunda metade deste século:
ela sempre ignorou o esforço dos modelos e ideais
socialistas pelo atendimento dos direitos sociais,
direitos próprios da cidadania, e sempre criticou
neles a ausência dos paraísos consumistas das
grifes, dos brinquedos eletrônicos, da televisão
comercial e do entretenimento. Segundo essa ideologia,
fazer parte dos paraísos do consumo seria mais
importante que garantir os direitos sociais. Os próprios
regimes socialistas, por outro lado, ao negligenciar
os direitos políticos dos cidadãos, atrofiaram a noção
de cidadania: conceberam o homem como um ser que
apenas “consome” a satisfação de
seus direitos sociais diversos (saúde, escola, habitação,
emprego etc), mas que não tem o direito fundamental
de interferir politicamente nos rumos da sociedade.
Sob muitos pontos de vista, veremos que a cidadania
plena tem sido postergada, adiada, desprezada.
Não
surpreende que, em nosso tempo, até mesmo as
propostas políticas passaram a se apresentar como
mercadorias. O discurso político, à direita e à
esquerda, passou a ser totalmente organizado segundo
as regras da linguagem publicitária. A argumentação
política não é racional, não busca convencer o
cidadão com argumentos lógicos, próprios dos
debates públicos, mas o que vemos é a tentativa
(muitas vezes bem sucedida) de seduzir o consumidor
com abordagens próprias da vida privada. O
consumidor-eleitor é assediado pela propaganda política
individualmente (e não coletivamente), ele é
seduzido, convidado a comprar com seu voto, isto é,
com seus direitos (votos e direitos, nessa
perspectiva, equivalem-se, são moedas), aquela
determinada proposta, aquele postulante a um cargo
eletivo. Votando naquele candidato, ele se sentirá
alguém menos arcaico, ou
mais
avançado, ou mais vitorioso. (Da mesma forma, quando
é abordado por propagandas de refrigerantes, cigarros
ou automóveis, o consumidor recebe aqueles bens como
benefícios que poderão lhe melhorar o status
individual, seja diante dos filhos, seja diante da
mulher (ou das mulheres), ou diante de si mesmo.)
A
política, os direitos e a própria cidadania,
transformadas em mercadorias dentro da linguagem
publicitária, não são mais a política, os direitos
ou a cidadania, mas são versões mercadológicas da
política, dos direitos e da cidadania. Essas versões
mercadológicas, a exemplo que qualquer outra
mercadoria, vendem-se a partir do desejo do consumidor
de se tornar melhor que os outros. O consumo toma
impulso pela competitividade que a sociedade de
consumo estimula entre os indivíduos. Assim como a
mensagem política tenta garantir que votar em tal
candidato significa ser mais bonito, mais moderno
(quem vota no outro candidato é menos bonito, menos
moderno), um refrigerante se anuncia a partir da
diminuição daquele que não o consome. E assim por
diante: uma marca de cigarro é vendida zombando do
homem que não fuma aquele cigarro e que, por isso, não
consegue seduzir as mulheres; um automóvel se promove
à medida que humilha quem anda de carro velho. É
essa ordem extensa de fomentos para a competição que
organiza a sociedade de consumo — e, a cada dia
mais, é ela quem organiza a significação da vida
humana. É sintomático que, quando alguém se
descreve, quando alguém busca traduzir em palavras
sua própria identidade, descreve normalmente as
mercadorias de sua preferência. Nas palavras de
Canclini, “consumir é tornar mais inteligível um
mundo onde o sólido se evapora.”
Há
muito tempo já deixamos para trás a cultura do
ser. Agora, o que vai se formando é uma
cultura um grau acima da tão denunciada cultura
do ter. Forma-se a cultura do ter o que
o outro não tem. Os bens de consumo retiram
seu valor de um sentimento de exclusividade: é o cartão
de crédito que dá uma identidade especial, sobretudo
quando no hotel de Nova York já não pedem o
passaporte, mas aquele cartão superespecial; o automóvel
é tanto melhor quanto menos mortais possam comprá-lo;
a roupa tem uma grife exclusiva. É bom pensar no que
significa a palavra “exclusiva”: ela significa
exclusão, significa excluir o outro. Na raiz mesma do
ato de consumir, dentro desse modelo, há um desejo de
excluir o outro.
Há,
portanto, na lógica da competitividade encorajada (e
forjada) pela socidade de consumo, uma visão
preconceituosa do outro. Se o desejo de consumir é
comum a todos (os homens se identificam entre si à
medida que consomem), o exercício do consumo existe
para diferenciar os homens uns dos outros dentro da
competição individualista e narcisista. O que
interessa é ser melhor que o outro. O outro precisa
ser necessariamente pior do que eu. Pois se o consumo
dá sentido, e um sentido ritualizado, às vidas de
todos, é por meio dele que o indivíduo se sente
pertencente a um círculo de privilegiados. Nem que
sejam os privilegiados por algumas migalhas: um carnê
do baú, uma sandália, o retrato de um ídolo afixado
do lado de dentro da porta do guarda-roupa.
O
estímulo a tanta competitividade pode ser fatal. Em
nossos dias, o desejo de possuir grifes (de tênis,
jeans ou bonés) tem sido a motivação de assaltos e
de latrocínios. Jovens que se vêem expulsos do paraíso
do consumo, segregados daquela “cidadania” que
pode ser comprada pelo consumo, insurgem-se de forma
violenta contra os privilegiados. Tomam à força o
que o mercado não lhes permite adquirir dentro da
lei. Depois do assalto, desfilam realizados, passeando
com um par de tênis americano (made in Taiwan). A
mesma publicidade que reforça a visão preconceituosa
dos que podem consumir contra os que não podem,
acentua também a humilhação (ou o ódio) dos que não
podem comprar em relação aos que esbanjam dinheiro.
É por isso que, num artigo recente, o escritor
uruguaio Eduardo Galeano aponta a publicidade nos
meios de comunicação, e na TV de modo especial, como
uma dos principais causas da violência nas grandes
cidades. Ele também
observa
que todo o discurso da televisão é perpassado pela
visão preconceituosa do outro. O paraíso do consumo
é a única perspectiva de salvação:
“Automóveis
imbatíveis, sabonetes prodigiosos, perfumes
excitantes, analgésicos mágicos: através da
telinha, o mercado hipnotiza o público consumidor.
Mas, às vezes, entre anúncios e anúncios, a televisão
cola imagens de fome e de guerra. Esse horrores, essas
fatalidades, vêm do ‘outro’ mundo, onde o inferno
acontece, e não fazem mais do que destacar o caráter
paradisíaco das ofertas da sociedade de consumo. Com
freqüência essas imagens vêm da África. A fome
africana se exibe como uma catástrofe ‘natural’,
e nas guerras africanas não se enfrentam etnias,
povos ou religiões, mas ‘tribos’, e não são
mais que ‘coisas de negros’.”
Os
preconceitos traficados pela sociedade de consumo
traduzem uma visão de mundo que, se não for recebida
criticamente, converte-se na visão de mundo dos próprios
consumidores. Ai dos negros africanos, ai dos pobres,
ai dos que não podem comprar: eles jamais serão
vistos como cidadãos, jamais serão vistos como seres
humanos iguais aos seres humanos que usufruem das delícias
do consumo.
* * *
Na
opinião de Roger Garaudy, o mercado virou uma religião.
Ou melhor: ele fala em “monoteísmo do mercado”.
É uma idéia a ser levada a sério. Pois se consumir
dá sentido ritual a um mundo desencontrado, e se
consumir é uma (ou a) via de acesso à
cidadania e torna compreensível a cada um o seu estar
no mundo, e se não se pensa em outra coisa, estamos
mesmo diante de algo bem parecido com uma religião.
Tanto assim que podemos sentir os valores dessa religião
intermediando (e mediando) as nossas próprias relações
pessoais mais próximas. Elas são também relações
consumistas. Basta observar. O relacionamento íntimo
entre duas ou mais pessoas já não mais é mediado
pelo sagrado das religiões convencionais; não é
mediado por um código moral ou ético (pois esses
valores andam confusos, embaralhados); ele é mediado
pela cultura que foi organizada segundo a linguagem da
publicidade e os meios de comunicação. O modo de
beijar, de conversar, de se apresentar, de sorrir, de
amar são disciplinados segundo essa cultura. Somos os
consumidores uns dos outros. Somos os consumidores de
nós mesmos. Nós nos desejamos e nos repelimos
segundo os parâmetros (preconceituosos) que
absorvemos através de nossos desejos (realizados ou não)
pelos bens de consumo.
É
então que nós nos consumimos — e nos consumimos
— como vitrines recíprocas uns dos outros. O
problema é que as relações de consumo nunca podem
nos saciar plenamente e é assim que, esgotada a
curiosidade, as relações humanas tendem a se
dissipar. Podemos usar aqui as palavras de Richard
Sennet: “Quando duas pessoas já não têm revelações
a fazer, e a troca comercial chegou ao fim, quase
sempre o relacionamento se acaba. Esgota-se porque
‘não há mais nada a dizer’, cada um acaba
aceitando o outro ‘como um fato dado’. O tédio é
a conseqüência lógica da intimidade nessa relação
de troca.”
Eu não descarto a perspectiva espiritualista adotada
por Garaudy porque há, sim, um vazio dentro de cada
homem que o consumo é incapaz de preencher. Há um tédio
que o consumo produz e não consegue matar.
Como
eu disse no início, não há como superar o mundo
profundamente preconceituoso em que existimos a não
ser pela perspectiva dos direitos humanos e da
cidadania. É preciso que saibamos pôr a noção de
cidadania acima da noção de consumidor, invertendo o
que tem sido natural nessa nova ordem globalizada. Mas
talvez eu devesse acrescentar que é preciso também
deixar de odiar os outros homens, ou seja, deixar de
odiar as diferenças. O que se põe para todos é a
necessidade de reeducação, e daí o grande valor
deste seminário. Para finalizar a minha participação
aqui eu gostaria de tomar emprestadas as palavras de
Renato da Silva Queiroz, em seu livro Não vi e não
gostei o fenômeno do preconceito, dedicado a essa
causa essencial da reeducação: “Da mesma forma que
aprendemos a atribuir valores negativos às diferenças,
podemos se educados para perceber que a variabilidade
humana não constitui uma monstruosidade, mas sim a
expressão da nossa própria natureza.”
Eu
penso de novo no exemplo de Euclides da Cunha. As idéias
e os modelos teóricos aos quais ele se aferrava eram,
sabemos hoje, modelos racistas. Mas o que o movia não
era o impulso de excluir o outro e sim de respeitá-lo
em sua diferença. O que o moveu foi o
amor pela humanidade. Parece patético dizer
isso a essa altura dos tempos, mas o que faz falta
neste mundo é um pouco de amor. Penso nisso,
experimento uma certeza profunda, que no entanto logo
se desfaz. Até o amor a linguagem publicitária
absorveu e deteriorou. Hoje o “amor” é um tempero
que se adiciona dentro da panela de sopa numa
propaganda de televisão. O marido olha para a patroa
e ela diz que pôs “amor” na comida dele. E todos
nós achamos uma graça danada.
Aldeia
Global?...
P:
Daqui a três semanas será que os jornais ainda
estarão falando dos sem-terra, ou estarão esperando
a notícia de um novo massacre? Os assassinatos no
campo não ocorrem o ano todo?
Esse
é o ponto que eu acho importante. Sábado passado
escrevi exatamente sobre isso. De que forma os meios
de comunicação, ao não noticiarem a realidade do
campo, contribuem para que as situações violentas
ocorram ainda mais, porque não há uma preocupação
generalizada sobre isso no país. Isso é produto de
um preconceito. O que acontece? Na hora de elaborar o
telejornal, são trinta e quatro milhões de lares com
televisão no Brasil, o jornal de maior circulação
tem em média um milhão, que já é uma grande coisa,
mas na hora de elaborar um telejornal, a discussão é
a discussão do espetáculo, para ficar um produto que
atraia a atenção e mexa com o desejo do
telespectador, porque o telejornal é um produto de
entretenimento também, e sem-terra é feio, é sujo,
fala mal, não é romântico, não tem "sex
appeal", é um problema. É um problema, por
isso, no telejornal. O massacre entrou porque ele
tinha imagens espetaculares, acho que todos vocês
viram, e o espetáculo no telejornal se confunde com o
massacre dos turistas gregos no Egito. As imagens
chocantes fazem o telejornal e garantem que o
telespectador não vai desligar, não vai mudar o
canal, porque aquilo é impressionante. Todos os dias
o telejornal tem que ter coisa impressionante. Esse é
o problema. Então eu duvido que isso seja assunto
importante ao longo do ano, embora essas situações
continuem acontecendo. Aquilo é novidade, aquilo vai
ser um espetáculo, aquilo vai proporcionar um choque
nunca antes experimentado pelos telespectadores? Se a
resposta é negativa, é mais difícil que aquilo
entre.
Isso
tem conexão com essa lógica do grande espetáculo,
com essa lógica do consumo que nos chega como espetáculo,
com a lógica da linguagem publicitaria, enfim
a função é menos
informar
e mais emocionar. O que eu quero acreditar é que o
escândalo foi muito grande, foi uma coisa horrorosa.
Então é muito possível que os dirigentes do país
estejam tentando tomar uma providência e que a situação
não seja tão ruim como era antes. Mas o lamentável
é que foi necessário que vinte pessoas morressem
para que isso merecesse atenção do telejornalismo.
Existe uma postura preconceituosa em relação a quem
é feio, sujo, quem não sabe falar direito na hora de
elaborar o telejornal. A gente precisa prestar atenção
nisto.
P:
Por qual razão quando se fala em preconceito
muitas vezes o negro é mencionado e não se cita o
caso dos nordestinos?
Toda
a temática dos "Sertões" que a gente
estava falando aqui trata disso. Os Sertões é um
livro que descreve o abandono. O Euclides
considera que o abandono em que ficou o nordestino
durante tanto tempo propiciou o aparecimento dessa
subcategoria, que ele chama uma subcategoria étnica,
que fez, que produziu o sertanejo, que é antes de
tudo o forte. E ele fala muito do nordestino. Hoje nós
temos o problema de que o abandono continua, é claro
que eu não compartilho das idéias racistas que
existem no livro, mas o abandono continua, e continua
mais intenso nas grandes cidades, porque hoje nós
vemos a todo momento a rejeição aos nordestinos nas
grandes cidades. Eu acho que pelo menos hoje, aqui, nós
tocamos um pouco nesse assunto, pelo menos um pouco. O
problema da rejeição ao nordestino é um problema
candente hoje na nossa democracia e nas grandes
cidades, não tem dúvida.
P:
Como reverter a situação propícia ao
preconceito?
A
situação não é própria do nosso país, mas ela
tem muito a ver com a globalização e a maneira como
a globalização chega excluindo, chega dizimando
culturas, chega dizimando o diferente, porque ela
precisa de canais próprios e canais universais. Essa
resposta binária do Você Decide é a própria
linguagem dos computadores da Internet, e não é por
acaso que essa linguagem binária é a linguagem dos
computadores, então para escapar disso e para
procurar refletir criticamente sobre isso, e mais ou
menos se proteger contra os horrores que isso tem
produzido, eu acho importante sair de cena, fazer um
exercício que não tem nada a ver com a sociedade de
consumo e com a linguagem dos meios de comunicação
de massa, e procurar disseminar, procurar difundir o
espírito crítico. Por isso eu queria cumprimentar
muito, e acho muito, muito importante isso que está
acontecendo aqui, talvez seja essa a atividade mais
importante daqueles que hoje se preocupam com os
direitos humanos,
discutir com as pessoas, demonstrar, fazer com
que elas olhem criticamente as coisas.
O que eu queria dizer é viva, que legal, parabéns,
acho que é por aí que e gente vai conseguir alguma
coisa, muito obrigado pelo convite, espero ter
contribuído com alguma coisa aí. É isso.
Belisário:
Duas palavras que entendo pertinentes neste momento
final dos debates. A primeira diz respeito ao valor
solidariedade que, entendemos todos, deve informar uma
nova ética. Essa nova dimensão da solidariedade,
antes que alternativa jurídica, se impõe como uma
nova opção ético-política. É uma luta contra o
individualismo, contra o "jeitinho", contra
a "lei de Gerson". É uma luta que não
perde de vista a utopia, mas inicia no presente uma ação
transformadora. É um processo educativo individual e
coletivo. No entanto, é preciso dizer uma coisa e
viver de acordo com o que se diz. Um levantamento
feito em Pernambuco, por entidades de direitos
humanos, mostra que das cinqüenta histórias
infantis, que contamos às nossas crianças, quarenta
e nove apontam saídas individuais e apenas uma
apresenta saída coletiva. Aí há uma pista
reveladora para reflexão sobre a nossa coerência do
dia a dia.
Em
segundo lugar, aproveitando as recomendações de
livros e filmes muito bem lançados pelos
conferencistas, arrisco uma sugestão. É o filme
"The thin blue line", a estreita linha azul,
literalmente, numa referência à identificação da
viatura da polícia americana. Está à disposição
nas locadoras de vídeo. Morto um oficial de polícia,
a polícia americana, movida por preconceito,
"escolheu" o suspeito entre as pessoas que
estavam próximas. O filme conta a história do
processo e da condenação à morte sofrido por um
migrante hispânico, notória vítima de
discriminação. Anos depois, em atividade da Anistia
Internacional, encontrei seu diretor. Ele me disse
algo lapidar sobre o sistema judiciário americano:
"Nos Estados Unidos, quando não há pena de
morte requerida, a Justiça decide se o réu é
culpado. Quando o caso envolve a pena de morte,
decide-se se o réu deve ou não morrer...".
Com
mais esta pista de reflexão sobre a questão do
preconceito, agradeço a presença de todos
convidando-os para a próxima sessão deste evento.
Artigo “A escola do crime”, de Eduardo Galeano,
na revista Chasqui (Revista Latinoamericana de
Comunicación), Quito, Equador, número 53, de março
de 1996, página 56.
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