
As
Naturezas Distintas do Sistema Universal e dos
Sistemas Regionais
Construído
aos poucos, desde a assinatura da Carta de São Francisco, em 1945, o
sistema de proteção aos direitos humanos das Nações Unidas difere
substancialmente dos sistemas regionais na composição, na forma de
operação, no embasamento jurídico, e no tipo de resultados
perseguidos.
Seu
órgão principal é a Comissão dos Direitos Humanos (CDH), criada pela
Resolução 5 (1) do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) em 1946. De
caráter governamental e subordinada ao ECOSOC, a CDH teve,
originalmente, dezoito Estados-membros. A composição foi aumentada
em 1961 para 21; em 1966, para 43; em 1990, para 53. Esse alargamento
reflete o aumento progressivo do número dos Estados-membros das Nações
Unidas desde o final da Segunda Guerra Mundial, tanto em virtude do
processo de descolonização, quanto em consequência da desintegração
de Estados pré-existentes – fenômeno que caracteriza sobretudo estes
tempos pós-Guerra Fria.
Eleitos
pelo ECOSOC para mandatos de três anos, os 53 integrantes da CDH são
distribuídos, com vistas a assegurar representação equilibrada das
diferentes regiões do globo, da seguinte maneira: 15 da África, 12
da Ásia, 11 do “grupo de Estados latino-americanos e caribenhos”,
10 do “grupo de Estados da Europa Ocidental e outros” (em que se
incluem os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia)
e 5 da Europa Central e Oriental (até há pouco, o chamado “grupo
socialista”).
A
CDH se reúne anualmente em sessão ordinária por 40 dias, nos meses de
fevereiro e março, em Genebra. Pode, porém, ser reconvocada
excepcionalmente em sessão extraordinária a qualquer momento, para
tratar de questão gravíssima e urgente. Foi o que ocorreu, em agosto e
dezembro de 1992, em vista das atrocidades cometidas contra civis nas
guerras das repúblicas da ex-Iugoslávia, e, em maio de 1994, por causa
da carnificina entre hutus e tutsis em Ruanda.
A
própria composição governamental evidencia a natureza essencialmente
política da CDH. Para compensar esse dado inescapável num foro
integrado por representantes de governos, seu órgão “técnico”,
criado por ela própria, com a respaldo do ECOSOC na Resolução 9 (11)
de 1946, é composto por pessoas, indicadas pelos governos, mas eleitas
em sua qualidade individual: a Subcomissão de Prevenção da
Discriminação e Proteção das Minorias, que se reúne anualmente no mês
de agosto, também em Genebra.
Com
as incumbências de fazer estudos e recomendações à Comissão
concernentes à prevenção da discriminação de qualquer tipo, bem
como de realizar qualquer outra função a ela atribuída pelo ECOSOC ou
a CDH, a Subcomissão é constituída hoje – após sucessivos aumentos
ao número original de 12 – por 26 peritos, assim distribuídos: sete
africanos, cinco asiáticos, seis do “grupo de Estados da Europa
Ocidental e outros”, cinco latino-americanos e caribenhos e três da
Europa Central e Oriental.
A
CDH tem sua base jurídica nos artigos 55, alínea c, e 56 da Carta das
Nações Unidas, que estabelecem o compromisso dos Estados-membros da
ONU com a cooperação internacional para a implementação do propósito
de promover os direitos humanos em todo o mundo — fixado no Artigo
10, parágrafo 30, do mesmo documento. Fundamentada, assim, na noção
de cooperação, mais adequada do que o conceito de justiça a uma
organização política heterogênea como a ONU, a CDH não tem competência
judicial, nem capacidade de ação compensatória perante casos
individuais — salvo as recomendações de seus diversos relatores
especiais, descritos anteriormente. Lidando com grande diversidade de
culturas, ideologias, sistemas legais e políticos, assim como níveis
de desenvolvimento econômico-social, seus objetivos fundamentais são o
estabelecimento de parâmetros universais e o controle de sua observância
na prática dos Estados.
Os
sistemas regionais, por sua vez, têm por premissas o escopo geográfico
mais reduzido, a maior homogeneidade cultural relativa e a similitude de
formas de organização jurídico-políticas e sócio-econômicas dos
países participantes, como fatores a facilitar o estabelecimento de
normas e mecanismos de proteção de impacto mais direto nas situações
nacionais. Interagindo com o sistema das Nações Unidas, os sistemas
regionais complementam e dão maior eficácia ao sistema global.
Contrariamente
ao que se entendia até recentemente – quando a consideração de um
caso ou situação por um mecanismo excluiria a possibilidade de ação
por outro –, hoje é generalizadamente aceita a idéia da
cumulatividade: os sistemas regionais e o sistema global podem e devem
atuar simultaneamente para reforçar o controle internacional sobre
violações de direitos humanos. E isto é válido precisamente em função
das distintas naturezas de cada um.
5.2.
O SISTEMA EUROPEU
O
sistema europeu – que ora vem passando por ampla reformulação –
tem por base a Convenção Européia dos Direitos Humanos, assinada em
1950 e vigente a partir de 1953. Nos termos em que o sistema tem
funcionado até agora (maio de 1994), seus principais componentes – a
Comissão Européia de Direitos Humanos e a Corte Européia de Direitos
Humanos – são, juntamente com o Comitê de Ministros do Conselho da
Europa, órgãos de implementação da Convenção.
A
Comissão Européia de Direitos Humanos (CEDH) é composta por um número
de membros igual ao dos Estados-partes da Convenção e têm funções
de supervisão quase judiciais, examinando queixas apresentadas a propósito
do cumprimento das obrigações dos Estados com relação aos direitos
por ela protegidos, sem atribuições normativas. Distinta em todos os
aspectos da CDH, e voltada exclusivamente para os direitos civis e políticos,
a CEDH assemelha-se mais, em termos meramente comparativos, ao Comitê
dos Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
nas funções a ele conferidas pelo Artigos 41 e pelo Protocolo
Facultativo do Pacto: respectivamente, o exame de queixas interestatais
e de comunicações individuais, com o consentimento expresso dos
Estados. Não tendo sido prevista na Convenção Européia a apresentação
de relatórios, todo o trabalho da CEDH realiza-se a partir de queixas
interestatais, mandatoriamente aceitas pelos Estados-partes, e petições
individuais, de caráter opcional.
À
CEDH incumbe, em primeiro lugar, a tarefa de filtrar as comunicações
recebidas, de acordo com critérios de admissibilidade bastante rígidos,
entre os quais se destaca o do esgotamento dos recursos internos –
sendo normalmente rejeitadas mais de 90% das petições. Uma vez
acolhida a reclamação, o procedimento prevê uma investigação
preliminar dos fatos, e a tentativa de solução amistosa entre as
partes. Caso esta última não logre resultados, a CEDH elabora relatório
sobre os fatos alegados e emite parecer em que determina a configuração
ou não de violação das obrigações contraídas perante a Convenção
pelo Estado implicado. A partir dai há duas possibilidades de tratamento
da questão: 1) submissão à Corte Européia de Direitos Humanos, se o
Estado envolvido tiver reconhecido sua jurisdição. Caso a Corte
julgue que houve violação de direito, cabe ao Estado acusado sua
reparação, ou, por determinação da Corte, de acordo com o Artigo 50
da Convenção, uma compensação material à parte lesada; 2)
encaminhamento ao Comitê de Ministros, órgão executivo do Conselho
da Europa ao qual incumbe tanto vigiar a execução de sentenças da
Corte Européia de Direitos Humanos, quanto decidir sobre os casos,
oriundos da CEDH, relativos a países que não tenham reconhecido a competência
do órgão judicial do sistema. Quando o Comitê de Ministros, na
qualidade de órgão político, determina que houve violação da Convenção,
é fixado prazo para que o Estado implicado tome as medidas necessárias
à reparação. Diante de eventual omissão do Estado acusado, o Comitê
pode levar o assunto a conhecimento público, Pode, ainda, com base no
Artigo 80 do Estatuto do Conselho da Europa, proceder á expulsão do
Estado-membro que não garanta a todas as pessoas sob sua jurisdição o
gozo dos direitos humanos.
Diferentemente
do sistema das Nações Unidas, o sistema europeu é de natureza jurídica,
convencional, estabelecerão o vínculo direto entre a proteção
internacional e os indivíduos. Conforme observa Cançado Trindade:
Aqui,
quer se trate de parecer da Comissão Européia, de julgamento da Corte
Européia, ou de decisão do Comitê de Ministros - os três órgãos da
Convenção, das petições, sejam elas interestatais ou individuais, são
efetivamente julgadas.
Os
direitos econômicos, sociais e culturais, regidos pela Carta Social
Européia, são supervisionados por um comitê de peritos, com
assessoramento de representante da Organização Internacional do
Trabalho — OIT, que examina, bienalmente, relatórios submetidos
pelos Estados-partes. Os relatórios são também distribuídos ás
organizações patronais e sindicatos, para que apresentem comentários.
Com
a transformação da Comunidade Européia em União Européia pelo
Tratado de Maastricht, em 1992, e as tendências prevalecentes no cenário
europeu no período pós-Guerra Fria, todo o sistema europeu de proteção
aos direitos humanos vem sendo reestudado. Entre as múltiplas propostas
existentes para sua reformulação — que pode ocorrer a qualquer
momento —prevê-se inclusive a fusão da CEDH e da Corte Européia. O
objetivo tendencial predominante é o de aumentar a eficácia do
sistema, fortalecendo-lhe a competência judicial e, assim, seu caráter
supranacional.
5.3.
O SISTEMA INTERAMERICANO
A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), criada por decisão
da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da
Organização dos Estados Americanos, em Santiago, em 1959, teve,
inicialmente, tarefas apenas de promoção em sentido estrito – e não
de proteção – dos direitos humanos, funcionando como órgão autônomo
do sistema da OEA. Suas atribuições e status institucional foram, porém,
sucessivamente fortalecidos.
Desde
1965 a II Conferencia Interamericana Extraordinária, realizada no Rio
de Janeiro, ampliou o mandato da CIDH, transformando-a em instrumento de
controle, com autorização para receber e examinar petições e
comunicações a ela submetidas, e competência para dirigir-se a
qualquer dos Estados americanos a fim de obter informações e
formular recomendações. Pelo Protocolo de Buenos Aires de 1967, que
emendou a Carta da OEA, a CIDH foi elevada á categoria de órgão
principal da OEA (Artigo 51), com a incumbência de “promover o
respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão
consultivo da Organização em tal matéria” (Artigo 150). Passou,
ainda, a partir de 1978, com a entrada em vigor da Convenção Americana
de Direitos Humanos, assinada em São José da Costa Rica em 22 de
novembro de 1969 — daí “Pacto de São José” —, a funcionar
cumulativamente como órgão de supervisão do cumprimento da Convenção,
sem prejuízo de sua competência anterior sobre os países que não são
partes desse instrumento. Graças a essa duplicidade de funções, com
atribuições decorrentes tanto de documento convencional sobre
direitos humanos de caráter obrigatório, quanto de Protocolo
reformador da Carta constitutiva da OEA, a CIDH tem interpretado seu
mandato com grande liberalidade, logrando ampliar significativamente
suas formas de atuação.
A
tendência ao alargamento da competência da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos já se evidenciara ainda antes do fortalecimento
legal de seu mandato e de seu status pelo Protocolo de Buenos Aires.
Durante a crise da República Dominicana de 1965-66, a CIDH
transferiu-se, na prática, para aquele país, onde permaneceu em operação
por mais de um ano. Em 1969, durante o conflito armado entre Honduras e
El Salvador, a Comissão agiu da mesma maneira, mantendo naqueles dois
países alguns de seus membros por cerca de quatro meses.
Consolidava-se, assim, a CIDH não apenas como órgão de estudos e
observação, mas também como órgão de ação.
Integrada
desde o inicio por sete membros, eleitos pela Assembléia Geral da
OEA, a título pessoal, que se reúnem regularmente três vezes ao
ano, a CIDH tem, atualmente, funções extremamente abrangentes,
definidas em seu Estatuto, conforme se trate de países partes ou não
da Convenção Americana de Direitos Humanos — “Pacto de São José”.
Quase todas as funções são comuns para ambas as categorias: a
realização de estudos e relatórios, a avaliação das legislações
nacionais e, até, a realização de missões in loco com a anuência do
governo respectivo. Conforme reza o Artigo 21, alínea b, de seu
Estatuto, a CIDH pode: “examinar as comunicações que lhe forem dirigidas
e qualquer informação disponível; dirigir-se aos Governos dos
Estados-membros (da OEA) que não são partes da Convenção a fim de
obter as informações que considerar pertinentes; formular-lhes
recomendações, quando julgar apropriado, a fim de tornar mais efetiva
a observância dos direitos humanos fundamentais”. Na prática, a
diferença essencial reside apenas nas referências de seu trabalho:
para os Estados-partes do “Pacto de São José”, este constitui a
base jurídica; para os demais membros da OEA, a base jurídica é o
Protocolo de Buenos Aires, e os direitos a serem protegidos, aqueles
definidos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de
1948.
Ao
contrário do que determina a Convenção Européia, a Convenção
Americana estabelece o reconhecimento obrigatório pelos Estados-partes
da competência da CIDH para a consideração de queixas individuais,
enquanto as queixas interestatais, para serem acolhidas, requerem
declaração de aceitação expressa, facultativa. Tal como a Comissão
Européia, na consideração de queixas individuais, por ela própria
filtradas de acordo com os critérios de admissibilidade definidos em
seu Estatuto — mas, no caso americano, interpretados com flexibilidade
—, a CIDH busca primeiramente uma solução amigável entre as partes.
Se o Estado implicado não adotar, em prazo razoável, as medidas
recomendadas, a questão é tornada pública, geralmente na forma de
resolução incluída no relatório anual. Suas decisões na consideração
de queixas são, também, quase judiciais, tanto pela forma adotada nas
resoluções — declaratórias ou não de culpa, com indicação de
medidas concretas de reparação —, quanto pelo procedimento — que
inclui audiências individuais e investigações.
O
sistema interamericano dispõe igualmente de uma Corte Interamericana de
Direitos Humanos, criada e definida pelo “Pacto de São José”.
Composta de sete juizes, nacionais de Estados-membros da OEA, eleitos a
título pessoal pelos Estados-partes da Convenção (Artigo 52), a Corte
tem competências consultiva (Artigo 64) e contenciosa (Artigo 62). A
competência consultiva é ampla, permitindo a todos os membros da OEA
— partes ou não do “Pacto de São José” — e a todos “os órgãos
enumerados no Cap. 10 da Carta da Organização dos Estados Americanos,
reformada pelo Protocolo de Buenos Aires” (a Assembléia Geral, o
Conselho Permanente, a CIDH etc.) consultá-la sobre a interpretação
da Convenção Americana ou de outros tratados sobre a proteção dos
direitos humanos nos Estados americanos, bem como sobre a
compatibilidade entre as leis nacionais e esses instrumentos jurídicos
regionais. A competência contenciosa, para o julgamento de casos a ela
submetidos, é, por sua vez, limitada aos Estados-partes da Convenção
que a reconheçam expressamente. Nessas condições, a maior atividade
da Corte tem-se concentrado na jurisdição consultiva, sendo poucas as
sentenças judiciais já proferidas.
A
Convenção Americana de Direitos Humanos aborda os direitos econômicos,
sociais e culturais apenas em seu Artigo 26, estabelecendo o compromisso
dos Estados-partes de adotarem providências internas, e mediante a
cooperação internacional, “a fim de conseguir progressivamente a
plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas,
sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da
Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de
Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa
ou por outros meios apropriados”. Não foi previsto, porém,
qualquer mecanismo de supervisão para esses direitos. Em 1988, a
Assembléia Geral da OEA adotou um Protocolo Adicional à Convenção
Americana de Direitos Humanos sobre Direitos Econômicos e Sociais, que
complementa a Convenção com ampla enumeração de tais direitos e
estabelece formas de supervisão pelo Comitê Interamericano para
Assuntos Econômicos e Sociais, assim como pelo Conselho Interamericano
para a Educação, Ciência e Cultura, através do exame de relatórios
apresentados pelos Estados-partes. O Protocolo prevê, ainda, a possibilidade
de recurso á CIDH para os casos de direitos de exigibilidade
imediata.
Em
1990, um novo Protocolo adicional á Convenção Americana de Direitos
Humanos, relativo à abolição da pena de morte, foi também adotado
pela Assembléia Geral da OEA. O sistema inclui, ainda, entre seus
instrumentos mais importantes, a Convenção Americana para Prevenir e
Punir a Tortura, adotada em 1985.
Em
junho de 1994, em seu 24º Período Ordinário de Sessões, a Assembléia-Geral
da OEA, reunida em Belém do Pará, aprovou duas novas convenções que,
uma vez ratificadas e vigentes nos Estados-membros, serão de relevância
particular para o sistema: a Convenção Interamericana para Prevenis;
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e a Convenção
Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. O fato de
terem sido adotadas pelo Órgão político competente da esfera
regional, enquanto no âmbito das Nações Unidas o máximo alcançado
sobre essas matérias até agora são Declarações — importantes, mas
sem o caráter jurídico capaz de impor obrigações para os
participantes —, confirma a observação, acima adiantada, de que a
relativa homogeneidade cultural e institucional, apesar das disparidades
de poder e desenvolvimento entre os países americanos, facilita o
estabelecimento de normas e mecanismos mais efetivos nos sistemas
regionais.
A
Convenção sobre a violência contra a mulher, já denominada
“Convenção de Belém do Pará”, vai muito além de tudo o que
existe sob o ângulo jurídico a respeito da mulher no sistema da ONU:
ao contrário da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, descrita no Cap. 4, a “Convenção de
Belém do Pará” prevê, inclusive, a possibilidade de envio de petições
e denúncias contra os Estados-partes á CIDH “por qualquer pessoa,
grupo de pessoas ou entidade não-governamental legalmente
reconhecida” (Artigo 12).
A
convenção sobre desaparecimentos forçados, à luz da experiência
histórica recente, é de interesse extraordinário para a América
Latina. De acordo com esse instrumento2 será considerada
desaparecimento forçado “a privação da liberdade de uma ou mais
pessoas, qualquer que seja a forma, cometida por agentes do Estado ou
por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou
aquiescência do Estado, seguida de falta de informação ou da negativa
de reconhecimento de tal privação de liberdade ou de informação
sobre o paradeiro da pessoa, com o que se impede o exercício dos
recursos legais e das garantias processuais pertinentes” (Artigo II).
O delito será considerado “continuado ou permanente enquanto não se
estabeleça o paradeiro da vítima” (Artigo III). Entre os
dispositivos mais significativos ressaltam o que exclui a isenção de
culpabilidade em função de ordens superiores, declarando a Convenção
que “toda pessoa que receba tais ordens tem o direito e o dever de não
cumpri-las” (Artigo VIII), e o que exige o julgamento dos responsáveis
pelo crime “por jurisdições de direito comum competentes em cada
Estado, com exclusão de toda jurisdição especial, em particular a
militar” (Artigo IX). Segundo o mesmo dispositivo, “Os fatos
constitutivos do desaparecimento forçado não poderão ser considerados
como cometidos no exercício de funções militares”.
Uma
das características mais importantes do funcionamento da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos consiste em sua capacidade de
deslocamento ao território de qualquer Estado americano, com a anuência
ou a convite do respectivo governo, a fim de observar in loco a situação
geral dos direitos humanos. Ao término da visita, a Comissão elabora
relatório e o envia ao governo em questão. Muitos foram os países já
inspecionados dessa forma Em 1979, a CDH realizou missão à Argentina,
onde permaneceu 14 dias e recebeu 5.580 denúncias de violações.
A
missão à Argentina, aqui citada a título meramente exemplificativo,
parece ter tido influência sensível para o fim da prática dos
“desaparecimentos” do regime militar. Ela é descrita pelo ex-Secretário
Geral da Comissão Internacional de Juristas, Niall MacDermot, nos
seguintes termos:
Tivemos
experiência semelhante a propósito do fim dos desaparecimentos maciços
na Argentina sob a ditadura. Numerosas ONGs, a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos enviou uma missão à Argentina, que chegou às
mesmas conclusões e publicou relatório muito corte e bem documentado
condenando os desaparecimentos. Em resposta a essa pressão intergovernamental,
o Governo afinal cedeu e, primeiramente, reduziu e, em seguida encerrou
a prática.
As
missões in loco teriam, igualmente, importantes efeitos preventivos.
Segundo Andrés Aguilar, como consequência das recomendações de caráter
geral endereçadas a governos determinados ou formuladas nos relatórios
anuais da CIDH, “foram derrogadas ou modificadas leis, decretos e
outras disposições que afetavam negativamente a vigência dos direitos
humanos (...) e se estabeleceram ou aperfeiçoaram recursos e
procedimentos para a melhor tutela” desses direitos.
o
sistema interamericano de proteção aos direitos humanos tem, em
resumo, natureza múltipla: jurídica e convencional, para os
Estados-partes do “Pacto de São José”; semijurídica, para os
demais membros da OEA; judicial, para os que reconhecem a competência
contenciosa da Corte Interamericana, e política, por sua capacidade de
ação sobre situações nacionais que extrapolam casos individuais.
O
Brasil ratificou a Convenção para Prevenir e Punir a Tortura em 1989
e aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, sem
reconhecer a competência judicial da Corte Interamericana de Direitos
Humanost4. Quanto aos dois Protocolos adicionais ao
“Pacto de São José”, o Executivo os encaminhou ao Congresso
desde fins de 1992 para a aprovação parlamentar necessária à adesão
brasileira.
5.4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Além
dos sistemas europeu e interamericano, a África conta com um sistema
regional incipiente, cuja pedra fundamental foi a adoção, em 26 de
junho de 1981, pela Conferência de Chefes de Estado da Organização da
Unidade Africana, em Nairóbi, da Carta Africana de Direitos Humanos e
dos Povos. A Carta Africana entrou em vigor em 1987, com a ratificação
por 26 Estados-membros da OUA. O mecanismo de supervisão previsto é
a Comissão Africana de Direitos Humanos.
Algumas
organizações da “família” das Nações Unidas, como a OIT e a
UNESCO, têm, por sua vez, mecanismos próprios de acompanhamento para
direitos específicos, conformando, assim, subsistemas do sistema
universal.
O
sistema interamericano é o mais abrangente, atribuindo à CIDH funções
que, no sistema das Nações Unidas, vão além daquelas da CDH ou do próprio
Comitê dos Direitos Humanos, que monitora o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos. Suas deficiências advêm muito menos de
lacunas institucionais do que das disparidades entre os Estados
americanos, tanto em níveis de desenvolvimento econômico, quanto em
termos de estabilidade política e peso especifico internacional.
No
que tange a resultados imediatos no tratamento de casos, o mais
eficiente é o sistema europeu, que se assemelha ao sistema judiciário
de um pais, estabelecendo proteção direta aos indivíduos, numa instância
que se afirma cada vez mais como supranacional. O fato não chega a
surpreender, pois, como observa John Gerard Ruggie:
...a
tessitura política da região tem-se tornado de tal forma
internacionalizada e supranacionalizada que a preocupação comunitária
com os direitos e o bem-estar do indivíduo é simplesmente um elemento
a mais num processo mais amplo de transformação política.
Se
é fato que todas as relações intersociais são políticas, é claro
que todo trabalho em prol dos direitos humanos a fortiori também o é.
Os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, inclusive
os de natureza judicial, têm embasamento e conotações políticas. O
mais “politizado” será, contudo, o das Nações Unidas, construído
inteiramente em negociações políticas por representantes de
governos.
Foi
muito comum, no período da Guerra Fria, a acusação feita por
delegados e ativistas contra alguns dos Estados-membros de
“politizarem” a CDH. Segundo essas alegações, os Estados
acusados estariam sempre menos preocupados com as consequências de
suas iniciativas e posturas sobre a efetiva situação dos direitos
humanos no mundo e em seus países, do que na obtenção de vitórias
parlamentares ou na proteção de suas soberanias.
Na
verdade, “politizada” seria sempre a atuação do adversário:
para os Estados Unidos, na década de 80, a URSS “politizava” a
Comissão ao propor projetos de resolução sobre a paz, condenando, por
exemplo, o programa estratégico do Governo Reagan conhecido como
“Guerra nas Estrelas”; para a URSS os Estados Unidos
“politizavam” a CDH ao criticarem a falta de autodeterminação dos
Estados bálticos. Nas palavras de Tom J. Farer, em 1987:
É
justo dizer que, exceto durante os anos de Carter, nenhuma das grandes
democracias ocidentais (em contraposição aos holandeses e suecos)
tem liderado as Nações Unidas ou os foros regionais em esforços para
fortalecer a maquinaria de proteção aos direitos humanos ou para
dirigir pressões centra vilões nâo-comunistas
Nos
tempos atuais, pós-Guerra Fria, a “politização” prossegue,
naturalmente, com outros atores e destinatários, ou por outros
enfoques.
Aos
que protestam contra a “politização” da CDH é importante
lembrar que foi através de um tratamento político bem articulado que
os países em desenvolvimento, sobretudo os recém-egressos do regime
colonial, lograram o reconhecimento do direito dos povos à
autodeterminação no Artigo 1º dos dois Pactos Internacionais de
direitos humanos. Foi por meio da “politização” que o grupo
africano, com apoios múltiplos, conseguiu singularizar o caso da África
do Sul no âmbito da CDH, abrindo o caminho ao monitoramento
internacional dos direitos humanos pela ONU em qualquer parte do
mundo. E é pela “politização” que se selecionam situações
particulares para serem objeto de acompanhamento por relatores
especiais. O que pode ser nefasto é a diluição das preocupações
humanitárias na busca de ganhos políticos, externos ou internos (para
satisfazer preocupações de uma parcela do eleitorado nacional, por
exemplo), e que se traduz na adoção de posturas dúplices (os chamados
double-standards), sempre lenientes com os aliados e sempre incisivas
com os adversários ou parceiros menos prioritários. Exemplos desse
tipo de atitude abundam, inclusive quando se trata de denunciar a
criminalidade e o tratamento a ela dado por diferentes governos democráticos.
O
fato de os direitos humanos receberem na ONU tratamento político não
é, necessariamente, prejudicial à causa. A motivação estritamente
humanitária, que informa a atuação de acadêmicos e ONGs, tende a ser
inócua, caso não seja respaldada por decisões coletivas de caráter
governamental. Até mesmo idealistas apaixonados como Robert Drinan
reconhecem que:
É
verdade inegável que as agencias privadas provavelmente nunca terão o
prestígio e o poder de que necessitam, se suas posições não forem
apoiadas pela lei e pelas agencias públicas (public agencies).
Em
vista desse dados, a “politização” da CDH, ao invés de conotar
somente aspectos negativos, no sentido que lhe atribuem os críticos
do sistema universal de proteção aos direitos humanos, corresponderia
mais adequadamente à acepção oferecida por Aurélio Buarque de
Hollanda Ferreira no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa para o anglicismo politizar:
Inculcar
a certas classes ou categorias sociais a consciência dos direitos e
deveres políticos atribuídos aos cidadãos que as compõem,
habilitando-os ao livre exercício deles.
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