
O
mapa do poder
Oscar Vilhena Vieira
As constituições são
verdadeiros mapas do poder. Quem analisar nosso texto
constitucional com cuidado perceberá que vivemos sob um
regime mais constitucional do que democrático, de caráter
majoritário. Isto explica a irritação e indignação cada
vez maior de alguns políticos com o Supremo Tribunal Federal
e com o Judiciário em geral. Como o Supremo tem por missão
proteger a Constituição, se necessário contra a vontade da
maioria do Parlamento, ele se torna o principal alvo do
Congresso, cada vez que declara inconstitucional um ato
normativo por este produzido, ou mesmo quando concede habeas
corpus a elegantes réus da República.
Das trinta e seis mais antigas democracias hoje existentes,
apenas quatro, Inglaterra, Nova Zelândia, Israel e Islândia,
dispensam uma Constituição rígida, que estabeleça limites
às decisões tomadas pela maioria parlamentar. Nessas
democracias majoritárias o legislativo tudo pode, não
havendo qualquer espaço para que os tribunais bloqueiem a
vontade da maioria dos parlamentares. De acordo com uma clássica
passagem dos Commentaries, de Blackstone, sobre o
sistema político inglês, “o poder e a jurisdição do
Parlamento são tão absolutos e transcendentes, que não
podem ser confinados, por qualquer razão ou pessoa, dentro de
qualquer fronteira”, ou numa expressão menos erudita, mas
igualmente notória na Inglaterra “o Parlamento pode fazer
qualquer coisa, menos transformar mulher em homem e homem em
mulher.” Portanto, o parlamento é soberano.
Na grande maioria das democracias contemporâneas, no entanto,
o parlamento não merece tanta confiança, e suas decisões
devem respeitar a Constituição, que coloca determinados
direitos e princípios acima do jogo político cotidiano, das
maiorias circunstanciais. A importância de mecanismos
institucionais de controle das maiorias parece estar
diretamente relacionada com os níveis de submissão voluntária
de cada sociedade, aos valores da tolerância e da democracia.
Em muitos sistemas as regras de sociabilidade ou o consenso são
tão fortes, que dispensam-se instituições artificiais
voltadas a restringir a vontade da maioria. Porém, para países
onde os confrontos entre maiorias e minorias são muito
intensos ou com fortes tradições autoritárias, como é o
nosso caso, a rigidez constitucional parece essencial para
preservar direitos e garantir a regra democrática.
Nesses países de constituições rígidas, cabe a todo o
Judiciário, ou a uma Corte Constitucional em particular,
contrastar os atos do parlamento face à Constituição. Em
caso de conflito, prevalece a norma constitucional. Assim, o
único remédio para derrubar a decisão judicial que declarou
inconstitucional uma decisão parlamentar é emendar a
Constituição. Para o que é necessário um quorum
diferenciado, variando o grau de dificuldade de país a país.
Quanto mais difícil for alterar a Constituição, mais
constitucionais e menos majoritários serão esses regimes.
A Constituição brasileira, embora exija apenas três quintos
dos parlamentares para que seja alterada, podendo ser
considerada uma constituição pouco rígida, impôs limitações
quase intransponíveis ao Congresso Nacional, por intermédio
do que se convencionou chamar de cláusulas pétreas. Quanto
à federação, à separação de poderes, ao voto e aos
direitos, não é autorizado sequer propor emenda tendente a
aboli-los. Ao impor estas limitações às gerações futuras
o constituinte demonstrou a sua mais absoluta desconfiança no
sistema político que estava sendo produzido.
Assim, além de ter que se defrontar com o Supremo Tribunal
Federal cada vez que um dos seus atos é declarado
inconstitucional, o que tem ocorrido com certa freqüência, o
Congresso percebe agora que em algumas circunstâncias não
terá como reagir. Em face desta situação as perguntas
inevitáveis são: o que justifica, dentro de uma perspectiva
democrática, que o passado possa bloquear o futuro, por
intermédio das cláusulas pétreas? E mais, em que medida a
função de custodiar as gerações futuras deve ser entregue
a um órgão, sem legitimidade democrática, como o Supremo
Tribunal Federal?
Ao meu ver as cláusulas pétreas, quando bem compreendidas e
interpretadas, não constituem uma ameaça a democracia ou uma
pretensão autoritária das gerações passadas buscando
governar as futuras, mas uma limitação paradoxalmente
habilitadora e emancipatória. Ao proibir que o sistema político
restrinja direitos e princípios fundamentais do Estado democrático
de direito, as cláusulas pétreas estarão apenas habilitando
cada geração a escolher o seu próprio caminho, sem, no
entanto, estar constitucionalmente autorizada a furtar esse
mesmo direito aos que virão; limitando-nos minimamente, para
que não possamos limitar a nós mesmos e aos nossos filhos
maximamente.
Quanto ao Supremo Tribunal Federal, a sua legitimidade derivará
de sua própria habilidade. Se buscar defender do poder de
reforma, mais do que aqueles elementos essenciais a perpetuação
do sistema democrático, do Estado de direito e da dignidade
humana, conformadas pelas cláusulas pétreas, poderá estar
iniciando um processo de erosão da obra que pretende
preservar. Caso abstenha-se de defender estes valores, no
entanto, estará permitindo que se abandone os caminhos traçados
pela Constituição. Acertar, portanto, é o ônus de quem tem
a responsabilidade de falar por último. [12 agosto 2000]
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