
Terras indígenas
Entrevista com Nilmário
Miranda
Governo mostra as
unhas
O ex-presidente da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara vê na mobilização dos indígenas
e da sociedade a chance de dar a volta por cima do decreto
1.775/96 e obrigar o governo a apressar a demarcação das
terras indígenas.
Quem gosta e também quem não
gosta de ouvir falar em direitos humanos conhece o mineiro Nilmário
Miranda, 48 anos, casado com a Stael, professora de Sociologia da
Universidade Federal de Minas Gerais, e pai do Vítor, 14 anos, da
Fernanda, 21, e da Renata, 24.
Deputado estadual de 1986 a 1980
e cumprindo atualmente o segundo mandato como deputado federal
pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Nilmário ocupou durante um
ano, até fevereiro último, o cargo de presidente da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara.
Já antes e também durante esse
período, esteve pessoalmente envolvido na luta pelos direitos
humanos em situações de máxima importância, como nos casos do
massacre de lavradores sem terra em Corumbiara/RO, da escravidão
no trabalho e dos mortos e desaparecidos políticos. Considera uma
das maiores vitórias no campo dos direitos humanos no país a
aprovação da lei que reconhece os mortos e desaparecidos pelo
regime militar.
Há muito tempo Nilmário lida
com os direitos humanos, classificados por ele como uma das
maiores bandeiras mundiais da atualidade, que ultrapassa
fronteiras, partidos e ideologias. Na conversa que se seguiu à
entrevista concedida a SEM FRONTEIRAS,
ele conta que fez dos direitos humanos uma opção de vida desde
que saiu da cadeia, em 1975, onde esteve por três anos e um mês,
como preso político, por causa das idéias que defendia.
O tema da entrevista: o decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996,
que revoga o decreto 22/91 e define novas regras para a demarcação
das terras indígenas. Nilmário lamenta que o presidente Fernando
Henrique Cardoso, no primeiro ato de seu governo referente à
questão indígena, tenha sido tão duro com os próprios indígenas
e tão favorável aos inimigos da demarcação. Mas adverte:
mobilização, pressão e cobrança são fundamentais para impedir
os efeitos perversos do novo decreto e, mais ainda, para agilizar,
e ampliar, o processo demarcatório.
SF - O que o novo decreto traz
de pior em relação à demarcação das terras indígenas?
Nilmário Miranda – Ele estabelece o direito ao contraditório
para os que têm interesse nessas terras: madeireiros,
garimpeiros, mineradoras, latifundiários, empresas... O ministro
da Justiça diz que, numa democracia, todo mundo tem o direito ao
contraditório. Em nome desse direito teórico, o que o decreto
1.775 na verdade faz é aumentar a violência contra os indígenas,
em vez de assegurar a eles o direito, muito maior, às suas
terras.
Um enorme passo atrás,
portanto, em relação à demarcação...
– É. No prazo de 180 dias a partir da edição do decreto,
todas as terras indígenas ainda não registradas no Serviço de
Patrimônio da União e no Cartório de Registro Imobiliário
podem ser requeridas por outros. Já existem centenas de recursos.
Passados os 180 dias, ou seja, a
partir de julho, já não valeria mais fazer uso do princípio do
contraditório?
– Não. Até 8 de julho, a demarcação das terras ainda não
registradas certamente será contestada na Justiça. Vencido esse
prazo, caberá ao governo – ele que é o árbitro – aceitar ou
não a argumentação das madeireiras, mineradoras, latifúndios,
empresas, etc. Vamos ver o que o governo irá decidir. Daí que
manter a denúncia e a pressão é fundamental.
Quais os bastidores desse
decreto?
– Nélson Jobim defendia essa tese antes mesmo de ser nomeado
ministro. Em 1993, na condição de advogado, a pedido do governo
do Pará, ele deu parecer contrário ao decreto 22/91, dizendo que
o mesmo era inconstitucional porque não levava em conta o direito
ao contraditório
Durante o ano passado, a questão
indígena esteve praticamente estagnada no governo Fernando
Henrique, mas o ministro ficou o tempo todo falando que ia revogar
o decreto 22/91 e fazer um outro. É preciso levar em conta que
existe no Congresso um forte movimento antiindígena, por
parte de lobistas das mineradoras, madeireiras, empresas e mesmo
de governos estaduais completamente hostis à causa indígena.
Acham que os indígenas têm terra demais, como é o caso, por
exemplo, dos governadores de Roraima e Amazonas.
Estamos falando de bancadas ligadas ao governo federal. A questão
indígena deve ter feito parte das negociações em torno da
aprovação das reformas propostas pelo governo. Foi objeto de
barganha política.
Quer dizer, o ministro da Justiça
mostra-se um forte aliado dos inimigos dos povos indígenas...
– Com certeza, mesmo que ele se
apóie numa argumentação de tipo jurídico. Ele se aferrou a uma
questão jurídica, mas, na prática, aliou-se aos inimigos da
questão indígena.
O pior é que a situação dos indígenas
do Brasil é muito grave. No ano passado, divulgamos o Mapa da
Fome Indígena, que mostra o seguinte: hoje, temos um total de 311
mil indígenas no Brasil, o que prova que houve um crescimento
dessa população, pela primeira vez nos últimos quinhentos anos,
e isso é um resultado muito positivo dos direitos indígenas
garantidos pela Constituição de 1988. Pois bem, desse total, 117
mil encontram-se em situação de fome/carência alimentar, isto
é, de indigência. O problema número 1 é a terra. São indígenas
do Nordeste, Sul e Sudeste do país cujas terras foram invadidas,
desmatadas, destruídas. O decreto 1.775 agrava muito essa situação,
porque as terras indígenas são hiperdisputadas por grupos que
dispõem de muita força política e econômica.
Que diabo de política
indigenista é essa, a do governo Fernando Henrique?
– Não existe política indigenista. Agora, tem um fato: no
final do ano passado, ele indicou o Márcio Santilli para a Fundação
Nacional do Índio, a Funai. Trata-se de uma pessoa comprometida
com a causa indígena. É um especialista, um dos maiores
formuladores da questão indígena na Constituinte. Como ele
aceitou a nomeação para a presidência da Funai, dentro desse
contexto, eu não sei.
O argumento dele é que o decreto 1.775, a curto prazo, piora a
situação, com a introdução do contraditório, mas que, depois,
irá agilizar as demarcações e homologações das terras indígenas.
Pessoalmente, acredito que o governo, embora não tenha revelado
isso à sociedade, tem uma estratégia para reduzir as terras indígenas.
Em relação à Constituição,
como é que fica com o novo decreto?
– Nós íamos entrar com uma ação direta de
inconstitucionalidade, mas fomos desaconselhados, porque as
chances de vitória no Supremo Tribunal Federal eram praticamente
nulas. Fizemos então um projeto de decreto legislativo para
cancelar os efeitos do decreto 1.775, mas também sem muita
expectativa de ganhar, porque a corrente antiindígena é muito
forte no Congresso.
O deputado está meio
desanimado?
– Veja bem, é um decreto governamental. O próprio governo pode
revogar o decreto. Agora, para anulá-lo, haveria dois caminhos: o
primeiro é através da Justiça, mas achamos que isso é
praticamente impossível, porque eles fizeram o decreto de tal
maneira que torna difícil conseguir qualquer liminar para
suspender a sua aplicação. O segundo caminho é através do
Legislativo, mas, como eu disse, também é praticamente inviável,
por causa da correlação de forças negativa. Realmente, a questão
indígena não conta com amplo apoio no Congresso.
Apesar disso, há pessoas e
entidades argumentando que o novo decreto é inconstitucional...
– É verdade, mas você vê que o próprio Cimi (Conselho
Indigenista Missionário) também decidiu não entrar com a ação
direta de inconstitucionalidade.
Creio que a solução é política. O governo pode reverter o
quadro, mudar o decreto. É preciso, pois, fazer pressão.
Isso, os indígenas estão fazendo, as organizações não-governamentais,
as Igrejas... Está havendo uma enxurrada de protestos e
cobranças, inclusive por parte da comunidade internacional. Essas
pressões têm que aumentar, e não diminuir.
O governo, além de não cumprir
o que diz a Constituição sobre a demarcação das terras indígenas,
baixa um decreto desse teor...
– Não restam dúvidas de que o
decreto é profundamente nefasto para a questão indígena. Porém,
é preciso ver que tudo tem um verso e um reverso. O decreto
acabou provocando uma mobilização muito grande, no país e no
mundo, e uma maior aglutinação dos próprios indígenas.
Esse é o lado positivo. Porque a
questão indígena, durante o primeiro ano do governo Fernando
Henrique, se ressentia da falta de maior mobilização. Era um
momento de expectativa frente ao novo governo. Só que o governo,
quando resolve dizer o que pensa sobre o assunto, vem logo com o
decreto 1.775, com toda a perversidade que ele encarna.
Toda a mobilização e pressão que
está havendo, e que tendem a aumentar com o passar dos dias,
representam algo muito salutar, muito positivo. A esperança é
que essa pressão obrigue o governo a apressar e ampliar as
demarcações, passado o prazo de 180 dias.
Haveria, pois, o que comemorar
na Semana dos Povos Indígenas, neste mês de abril, apesar do
novo decreto...
– Sim. Veja, por exemplo, o
Capoib (Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas
do Brasil) é uma articulação como nunca houve antes. Além da
maior mobilização e articulação, é preciso comemorar também
o crescimento da população indígena. É a primeira vez que
cresce em vez de decrescer.
Estive no Mato Grosso do Sul,
visitando os Guarani-Kaiowá, aqueles que estão se suicidando
(foram 55 suicídios só no ano passado), e vi que indígenas de
todo canto do país estão indo lá para tentar levantar o moral
deles, valorizar suas crenças, fortalecer suas lideranças, sua
luta. Uma coisa muito bonita.
Ou seja, a luta indígena está ganhando muita força. Agora, do
ponto de vista do governo, não há nada para comemorar. Nada,
nada, nada. Só no nível da sociedade civil e dos próprios indígenas.
Então, não é verdade que o
deputado esteja pessimista...
– Repito: o decreto foi muito ruim. É uma lástima que o
primeiro ato do governo em relação aos indígenas tenha sido tão
penoso para esses povos. Mas vejo também o outro lado: a mobilização
indígena, a solidariedade nacional e internacional.
Certo que os indígenas não contam
com um apoio muito forte na opinião pública: foram transformados
em coisa exótica, ou em sinônimo de bêbados, vagabundos. Muita
gente acha que eles têm terra demais, que deveriam ser
aculturados, etc. Mas há muita solidariedade nos setores
organizados da sociedade civil: organizações não-governamentais,
Igrejas, grupos de direitos humanos...
Em relação ao Congresso e ao próprio governo, como eu disse, a
correlação é desfavorável. O que eu não acredito é que,
mesmo com toda essa questão do decreto 1.775, o novo presidente
da Funai, Mário Santilli, vá querer fazer o papel de coveiro da
questão indígena. Acho que ele será um aliado.
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