
DICOTOMIA
ESTRUTURAL E VIOLÊNCIA POLICIAL
Folha
de São Paulo, 24.9.1997
Benedito Domingos Mariano
O debate nacional
sobre modificações das polícias no Brasil foi motivado muito
mais pelos episódios que chocaram a opinião pública do que pela
real vontade política de mudar regras e estruturas.
Governadores –
até aqueles de partidos de esquerda, como Cristovam Buarque –
foram a público dizer que casos graves envolvendo policiais
militares eram isolados.
É evidente que
numa instituição com mais de 400 mil homens, como as Polícias
Militares, casos como Eldorado do Carajás, Corumbiara, Cidade de
Deus, Vigário Geral, Favela Naval, fazenda da Junta e os
sequestros de Brasília e São Paulo (esse último seguido da
morte de um menino de oito anos) são uma minoria em relação aos
efetivos. Mas dar um caráter isolado a eles é não querer
enfrentar a questão de que é necessário e urgente repensar as
estruturas das polícias.
Exigir mecanismos
que impeçam os agentes do Estado de se brutalizar e de cometer
crimes tão cruéis e covardes (com agravante de fazer isso sob o
manto do poder de polícia) quanto aqueles praticados pelos próprios
marginais é imperativo.
A polícia da
democracia será construída na formação para a cidadania, na
fiscalização e na apuração rigorosa de delitos cometidos por
agentes do Estado, mas sobretudo nas mudanças estruturais. A
sonhada polícia única de caráter civil está longe da agenda
política do governo federal e do Congresso.
A proposta
enviada pelo governador Mário Covas ao presidente Fernando
Henrique Cardoso, que unifica as funções de polícia (judiciária,
investigativa, preventiva e ostensiva), não foi nem sequer
discutida profundamente na comissão criada no Ministério da
Justiça para prioritariamente avaliá-la.
O que propôs o
governo federal foi enviar ao Congresso a desconstitucionalização
do artigo 144, passando para os Estados a responsabilidade de
reestruturar as polícias estaduais. Nos Estados do Nordeste do país,
as Polícias Militares têm efetivo quatro ou cinco vezes maiores
que os da Polícia Civil; no Sudeste, no mínimo, a dobro.
Sabedores do
lobby das Polícias Militares, qual polícia as Assembléias
Legislativas iriam priorizar? É bem possível que as Polícias
Civis dos Estados percam funções e as Polícias Militares, além
do policiamento ostensivo e preventivo, façam também polícia
judiciária e investigativa, como já acontece em determinadas
localidades de vários Estados. Se a desconstitucionalização das
polícias passar no Congresso, as mudanças podem se dar na
contramão das exigências da sociedade civil e da perspectiva da
comunidade internacional.
O que o governo
federal, os estaduais e o Congresso têm de definir é se querem
ou não quebrar uma dicotomia estrutural nas Polícias Militares:
uma função de natureza civil e uma estrutura de natureza
militar.
Essa dicotomia da
organização trouxe, entre outros problemas, uma Polícia Militar
que não demonstra nas funções de natureza civil o mesmo vigor
na disciplina e na hierarquia observado “interna corporis”.
Soma-se a isso a criação de uma Justiça especial para julgar os
crimes cometidos por policiais militares, não só os
“propriamente militares” como também aqueles cometidos na função
de natureza civil.
Os regulamentos
disciplinares das PMs reproduzem o do Exército brasileiro. As
transgressões disciplinares previstas (o regulamento da PM de São
Paulo é de 1943, quando existia só a Força Pública, uma espécie
de “exército regional paulista” que não tinha função de
polícia preventiva e ostensiva), na sua maioria, dizem respeito a
problemas de caserna, tais como: a) necessidade de autorização
para casar-se; b) vagar ou passear pelas ruas após as 22h, sem
permissão escrita da autoridade competente; c) deixar, quando
estiver sentado, de oferecer seu lugar a um superior em qualquer
situação, etc.
Muitas das
transgressões têm como punição prisões administrativas, que vão
de 5 a 30 dias de detenção e que, muitas vezes, podem
caracterizar abuso de autoridade – além de ser
inconstitucionais, na medida em que a exceção prevista na
Constituição federal diz respeito às Forças Armadas e não às
polícias estaduais, com funções civis e regulamentos
disciplinares determinados por decreto.
Os efeitos dessa
dicotomia atingem de forma perversa a população. Punidos por
questões internas a partir de regulamentos arcaicos, que se
preocupam mais com o policial quando ele está no quartel do que
quando está na rua, os policiais “descontam” na população a
pressão sofrida.
É verdade que
medidas como o Proar (Programa de Acompanhamento de Operações de
Alto Risco), implantado em São Paulo, diminuem em muito a violência
policial, mas 80% dos casos de homicídio registrados na Ouvidoria
da Polícia envolvem policiais militares.
Rever os
regulamentos disciplinares, tratando como transgressões graves
aquelas cometidas quando o policial estiver exercendo sua função
civil (com punição de suspensão, e não prisões
administrativas) além de elevar a auto-estima dos policiais,
poderá contribuir para diminuir a violência.
Não foi por
outro motivo que o recente Plano Estadual de Direitos Humanos
destacou que “rever os regulamentos disciplinares das polícias,
notadamente o da Polícia Militar, compatibilizando-os à ordem
constitucional vigente” é uma prioridade.
Se os crimes
cometidos por policiais em função de polícia não têm natureza
militar, as transgressões disciplinares são medidas que visam
quebrar uma dicotomia estrutural herdade dos períodos autoritários
e reforçam o princípio de que disciplina e hierarquia não são
pressupostos somente da organização militar, mas constituem a
base de instituições policiais sólidas e democráticas.
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