
Fábio Konder
Comparato
por Eugênio
Bucci, Fernando Haddad e Maria Paula Dallari Bucci*
Fábio Konder Comparato é
professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. Partindo de sua área de especialidade no Direito
Comercial, cujo estudo o levou a publicar O
Poder de Controle na Sociedade Anônima, mais recentemente
passou a dedicar cursos a outras áreas jurídicas, como
Fundamentos de Direitos Humanos e Direito do Desenvolvimento.
Foi um dos advogados de acusação no processo de impeachment do
ex-presidente Fernando Collor e autor de ação contra a
privatização da Companhia Vale do Rio Doce movida por um grupo
de advogados de São Paulo.
Publicou, entre outros livros, Para viver a democracia e um
projeto de Constituição para o Brasil, intitulado Muda Brasil.
Como se deu sua formação
intelectual?
Há dois momentos importantes na
minha formação intelectual e moral. O primeiro foi a formação
religiosa. Na Faculdade de Direito, onde estudei, havia uma
organização da Ação Católica universitária, da qual nunca
quis fazer parte porque achava as pessoas que dela participavam
muito intelectualizadas. Como o grande problema que eu começava a
sentir candentemente era o da miséria, resolvi fundar, junto com
outros companheiros, uma conferência de São Vicente de Paula,
que tem um caráter passadista, mas que representou para nós na
época uma verdadeira escola de formação quanto aos problemas
sociais do Brasil. O objetivo de cada núcleo dessa conferência
é visitar regularmente pessoas que estão em situação de
necessidade, seja material, seja de conforto moral, como, por
exemplo, doentes terminais. Para mim, que vinha de uma família de
classe média alta e que como quase todos nós fui preservado do
contato com a miséria e com a desgraça humanas, isso foi uma
grande escola de formação que marcou muito as minhas
preocupações políticas e até mesmo intelectuais. Ou seja, era
preciso dar uma resposta política geral a essa situação que me
parecia inaceitável.
O segundo momento da minha
formação foi o doutoramento em Paris. O contato com a cultura
francesa me abriu para a perspectiva da verdade como um fator de
libertação e ao mesmo tempo para a necessidade de um
aperfeiçoamento das faculdades de crítica e de análise. Hoje,
as coisas mudaram um pouco, mas na minha época a cultura francesa
era muito precisa, muito cartesiana e isso representava uma
excelente formação para nós que vínhamos de um país onde as
coisas se embrulham com muita facilidade. Essa necessidade de
clareza, de raciocínio direto e capacidade de investigação foi
para mim uma grande revelação. Junto a isso o fato de estar
longe do Brasil, que é um dos conselhos que dou a todo jovem que
quer fazer alguma coisa por seu país. É preciso um certo momento
de consideração do país à distância. É uma das melhores
maneiras de nos reencontrarmos e exercermos o grande princípio
filosófico: "Conhece-te a ti mesmo". Nós não somos
apenas indivíduos, somos membros de uma coletividade que tem
espírito, que tem alma, costumes, cultura e uma maneira de ser
bem caracterizada. Esses foram os dois grandes momentos.
Em que medida o pensamento
liberal clássico e o pensamento socialista também influenciaram
na sua formação?
É difícil precisar. A
influência do liberalismo clássico é importante, porque sempre
vi o liberalismo maltratado e incompreendido no Brasil. Diria
aliás que, como advogado e estudioso de Direito, sempre me
impressionei com a ligeireza com que nesse país se tomavam e se
tomam ainda as liberdades individuais. Elas são consideradas como
algo supérfluo, um luxo, quando na verdade isso é da essência
da democracia. A afirmação do indivíduo, de sua autonomia, da
liberdade e da igualdade, ambas formando um todo, é que
desencadeou todo o movimento dos Direitos Humanos no mundo. Isso
precisa ser marcado profundamente porque o verdadeiro socialismo
nada mais é do que uma complementação do liberalismo
autêntico. A rigor, nós tivemos nesse país raríssimos
social-democratas. O socialismo representa o coroamento desse
início de movimento em favor da dignidade humana, acrescentando,
à liberdade e à igualdade iniciais, a solidariedade. Eu acho que
seria o caso de se fazer um reexame dessas idéias no Brasil no
momento em que a confusão ideológica é geral.
Eu não tive nenhuma influência
forte do pensamento marxista ou comunista e acho que realmente os
marxistas aprenderam muito tarde o que é democracia e até hoje
têm certas dificuldades para entender os constrangimentos do
exercício do poder quando chegam ao mesmo, no sentido de que numa
democracia todo poder é limitado justamente pelos direitos
humanos.
O senhor ainda insiste no tema do
desenvolvimentismo. Em que momento esse tema lhe pareceu
importante?
Eu adotei as idéias
desenvolvimentistas não por uma moda, mas como verdadeira
iluminação, quando começava o meu curso na Faculdade de
Direito. Eu fui para a França estudar Ciência Política e
Direito Constitucional e acabei escolhendo Direito Comercial
porque, na época, não havia nenhuma matéria jurídica mais
ligada à questão do desenvolvimento, que era o que me
interessava. Eu sempre fui um admirador incondicional do Celso
Furtado, não apenas pelo que ele escreveu, mas pelo entusiasmo
que pôde dar à minha geração. Entendo que a idéia de
desenvolvimento, na sua essência, é a tradução moderna do
conceito fundamental que está em Aristóteles, ou seja, o homem
em toda sua pluridimensionalidade. Mas, na época em que eu me
abri para essas idéias, o desenvolvimento era sobretudo
econômico.
Hoje, o desenvolvimentismo não
estaria ultrapassado pelo fenômeno da globalização?
Eu não vejo nenhuma dificuldade
em pensar o desenvolvimento nacional numa época de
globalização, como não vejo nenhuma dificuldade, ao contrário,
vejo absoluta necessidade de se pensar no desenvolvimento regional
a âmbito nacional. Aliás, a idéia de desenvolvimento no Brasil
partiu de uma análise das carências regionais, especificamente
do Nordeste. Para Celso Furtado, era fundamental encontrar
parâmetros de análise e solução para o problema nordestino, e
a partir daí ele extrapolou para o plano nacional.
Essas preocupações de certa
forma o aproximam do atual presidente da República?
O Fernando Henrique se interessou
por esses problemas mas não numa perspectiva desenvolvimentista.
Ele teve uma formação marxista que lhe deu instrumentos para
fazer uma análise crítica da vida econômica nacional e
internacional. Muitos dos seus trabalhos estão moldados por essa
fórmula de análise. Porém, ele nunca esteve preocupado em
primeiro lugar com as políticas de desenvolvimento. Tudo que se
refere à economia, por parte do presidente, me parece um conjunto
de fórmulas e idéias que ele aceitou sem crítica, sem
aprofundamento, sem reflexão. Eu não creio que ele esteja
convencido das vantagens do neoliberalismo. A meu ver, ele aceitou
essas idéias porque lhe pareceram operacionais no plano
político. E, portanto, a crítica que fazemos a essa política
talvez não seja dirigida ao Fernando Henrique. Talvez ele não
esteja absolutamente convencido das excelências do
neoliberalismo, mas ele aceita que tudo se faça de acordo com
esse padrão.
Quais seriam os principais
problemas do neoliberalismo?
O erro mais flagrante dessa
interpretação é a desconsideração de um fato que hoje é
incontestável entre todos os economistas e analistas da economia
internacional: o fator fundamental do crescimento econômico é a
poupança interna. Portanto, é inútil esperar que um maior ou
menor fluxo de capitais vindos do exterior possa provocar um
movimento contínuo e permanente de desenvolvimento econômico,
sem falar em distribuição de renda. Por sua vez, é necessário
levar-se em conta – ao contrário do que uma certa esquerda
ingênua admitiu no passado – que sem crescimento econômico
não há distribuição de renda. O fato é que a continuidade
dessa política me parece um fato gravíssimo.
A que o senhor atribui o
prestígio recente das idéias neoliberais entre nós?
É preciso distinguir as
ideologias das opiniões da moda. A ideologia é algo muito
sério, uma orientação profunda e definitiva de vida. A moda
intelectual é algo superficial e passageiro. Eu sustento, sem
receio de exagerar, que não somos um povo ideológico, mas sim
grandes consumidores da moda intelectual. A meu ver, a razão
disso é histórica. Nós somos herdeiros de uma certa
mentalidade. Não se trata de uma posição meramente intelectual,
é uma posição perante a vida, feita de costumes, automatismos
de valores que não são contestados e muitas vezes não são nem
conscientes. Eu entendo que a mentalidade lusitana – ao
contrário da hispânica – sempre foi avessa às grandes
profundidades e às grandes especulações metafísicas. Uma das
coisas mais impressionantes da história da cultura portuguesa é
que Portugal não deu nenhum metafísico, nenhum filósofo que se
preocupasse profundamente a ponto de ficar abismado com o problema
do ser, ao contrário dos espanhóis, que têm uma tendência
incoercível para um misticismo avassalador. Alguns dos maiores
místicos da história foram espanhóis. O português sempre foi
um homem prático, realista, que vive com os pés na terra. Daí,
para o português, de um modo geral, a ciência e a cultura não
são oceanos onde se possa mergulhar para desaparecer nessa
intimidade. São fontes de onde se pode extrair fórmulas quase
mecânicas para a solução de problemas. O português não está
tão interessado na essência, no ser, na verdade, quanto na
maneira de fazer, de resolver. Eu entendo que o português, ao
contrário do espanhol, sempre considerou a formação intelectual
do indivíduo como uma espécie de luxo – prezado, sem dúvida
– mas, como todo luxo, um acessório. A cultura para o
português é um ornamento que calha bem, mas não é a cultura
intelectual que dá peso à existência. O português admira o
homem de ciência, o homem de cultura. Ele acha que são atores
interessantes, mas não são eles os grandes autores da vida.
As conseqüências disso são
muito claras: as idéias dominantes do momento são aceitas no
Brasil sem o menor espírito crítico. Não temos essa espécie de
reflexo condicionado que tem o francês, de nunca aceitar uma
idéia na moda sem colocar um mas. Sempre aceitamos,
mergulhamos de cabeça naquilo que parece ser a fórmula salvadora
do momento, sem nenhum espírito crítico, que é sempre fruto se
não de um aperfeiçoamento intelectual de análise, pelo menos de
uma certa desconfiança. Nós aceitamos com muita complacência e
com muita ingenuidade.
O senhor
acha que o presidente Fernando Henrique incorre nesse erro?
É justamente esse ponto que me
parece muito grave quando o país é dirigido por um intelectual.
O que se esperava de um intelectual é um mínimo de espírito
crítico, de capacidade de discernimento, de precaução com as
idéias. Todos nós, da universidade, esperávamos isso do
presidente Fernando Henrique. Achávamos que ele era capaz de
fazer esse discernimento e ficamos nós, opositores, sinceramente
chocados. Eu, pessoalmente, não tanto com o fato dele estar
adotando posições de direita, mas com o fato de proceder
levianamente. Essa leviandade, no intelectual, é inadmissível.
É inadmissível que um intelectual, com a formação do professor
Fernando Henrique Cardoso, não tenha percebido a importância
desses problemas. Afinal de contas, ele não é um político
boçal, ignorante, malformado. Não é uma impertinência exigir
dele um mínimo de coerência e capacidade de análise!
Além disso, esse entusiasmo cego
pela moda intelectual da época, no plano político, pode e tem
provocado conseqüências alarmantes, porque a ação política
tem efeitos que não são momentâneos e a decisão política
deixa sempre uma marca. O tempo, em política, não é o tempo
físico, de modo que não é possível apagar completamente uma
decisão política. Coisa que os nossos políticos não sabem: o
político pode e deve voltar atrás quando se convence de que
errou. Ele volta atrás, muitas vezes, porque acha que precisa
conquistar novos aliados ou se desembaraçar de aliados
incômodos. O que ele não sabe, em geral, é que as decisões
anteriores produzem efeitos permanentes. Quando esse entusiasmo
por uma moda intelectual corresponde aos interesses muito
concretos da oligarquia, então os efeitos nocivos dessa adesão
entusiástica são praticamente imbatíveis. É o que vemos agora
com o neoliberalismo!
Uma das coisas mais claras para
mim é que nunca aceitamos a essência da democracia, sobretudo da
democracia liberal. O verdadeiro liberalismo é uma ideologia que
tem valores muito positivos, a começar pelo princípio da
igualdade perante a lei. Numa sociedade profundamente desigual
como a brasileira, marcada desde as origens pela dominação
oligárquica, nunca se aceitou esse princípio para além da
retórica. E nunca aceitamos porque para nós a lei não tem
majestade. Ela é uma fórmula ornamental considerada conveniente.
Nunca aceitamos essa idéia fundamental de que a lei está acima
de nossas vontades e que todos nós igualmente devemos nos
submeter a ela. Para nós, essa história no fundo sempre pareceu
um embuste. Sempre estamos convencidos de que a lei favorece
alguns em detrimento de outros, portanto há sempre pessoas mais
iguais do que as outras perante a lei. Daí porque quando vem a
moda do neoliberalismo – nunca tendo havido verdadeira
convicção liberal no país –, isso pode ser catastrófico
porque significa reforçar a tendência de descartar a maioria da
população carente.
Por outro lado, é necessário
levar em conta que a concorrência entre as pessoas não é um
fator de civilização; ao contrário, o fator de civilização é
a busca constante da solidariedade. Fazendo uma análise do tipo
dos filósofos jusnaturalistas do século XVIII, o homem da
barbárie é essencialmente um homem da rivalidade, da
concorrência. Ele não tem nenhum sentimento de ligação com o
outro e não procura ajudar, mas sim superar, esmagar. Todo
trabalho civilizatório é de superação da rivalidade. A
concorrência só é admitida como uma espécie de estímulo ao
aperfeiçoamento técnico, mas isso não pode ser colocado como
princípio fundamental de uma sociedade.
O senhor acha que esta moda
neoliberal tem fôlego?
A idéia de espírito do século
(que veio também do século XVIII) marcou muito uma certa parte
dos intelectuais. T.H Marshall explicava esta evolução, nos
últimos 300 anos, dizendo que o século XVIII era o da descoberta
dos direitos civis, ou seja dos direitos individuais. O século
XIX foi o século da ampliação do sufrágio político, portanto
muito mais um século de igualdade. E o nosso século é marcado
pela supremacia do valor da solidariedade. Ele o afirmava depois
da Segunda Guerra Mundial, quando parecia que o Estado do
bem-estar social tinha vindo para ficar eternamente. Mal sabia ele
que, menos de trinta anos depois, o Estado e o bem-estar social
iam ser sucateados! Mas o fato é que, com a aceleração da
história, não podemos falar em espírito do século, porque
existem vários espíritos que se sucedem. Podemos falar em
espírito da década. Eu acho que o neoliberalismo não vai
completar duas décadas e o que se vê hoje em todo o mundo é uma
procura desesperada por uma solução. Em toda a Europa Ocidental
há hoje vinte milhões de desempregados, que custam às nações,
cada um deles, dois mil dólares por mês. Isso dá uma idéia da
grandeza do que estamos gastando para que as pessoas não
trabalhem! Quer dizer, até sob o aspecto econômico é de uma
ineficiência colossal! Isso é insuportável até mesmo para os
empresários! Chegará o momento em que eles vão tentar
desesperadamente encontrar uma solução.
Hoje, a lógica chamada
neoliberalismo é a ditadura do capital, ou seja, o que importa é
uma eficiência meramente financeira. George Soros, o maior
especulador do mundo, mostra claramente que organizar o mundo
empresarial exclusivamente sob o aspecto financeiro é um
suicídio, porque as finanças são meio, não finalidade. Ora,
transpor essa lógica suicida para o plano nacional é um crime
hediondo!
Qual seria a alternativa?
Não se percebeu que há uma
função estatal da maior importância, que é a de previsão e
planejamento. Isso já existe em toda grande empresa. Não há
mais empresa que não tenha um setor de previsão e planejamento.
E no campo político isso aparece em vários países. O Japão
teve o desenvolvimento que todos conhecemos em grande parte
graças à organização dessa função de previsão e
planejamento, que estava localizada no Ministério da Indústria e
Comércio Exterior. Na Coréia do Sul há um setor subordinado ao
Poder Executivo. Essa função, ao contrário do que diz o
neoliberalismo, é fundamental para os países do Primeiro Mundo.
Apenas ela não tem o necessário peso constitucional, dentro de
um princípio de especialização que se chama divisão de poder.
Estou querendo trazer isso ao
debate dos constitucionalistas. O princípio da divisão de poder
tem várias aplicações, uma no sistema parlamentar de governo,
outra no sistema presidencial. Por que não usá-las para absorver
e desenvolver a idéia de que a previsão e o planejamento são
funções que devem ser exercidas autonomamente dentro do Estado?
O Executivo é o grande centro de conflito de problemas
conjunturais da política. Tudo desemboca aí. É ele quem paga,
nomeia, contrata. O sistema presidencial brasileiro está na
origem de 80% ou 90% das leis promulgadas, portanto até mesmo o
impulso da função do Legislativo parte do Executivo. Ora, todos
sabemos que é impossível fazer conviver a conjuntura com grandes
ciclos de longo prazo. Toda vez que a mesma pessoa é encarregada
de resolver problemas do dia-a- dia e de longo prazo, deixa esses
últimos para um segundo plano, porque os problemas do dia-a-dia
não esperam. Eles vão afogando as grandes preocupações de
longo prazo. No Japão não é assim. Oficialmente, o Ministério
da Indústria e Comércio Exterior está subordinado ao
primeiro-ministro, é um órgão do Poder Executivo, mas na
verdade está totalmente separado dos problemas conjunturais. Há
quinze anos o Japão vem pensando em como resolver o problema do
alargamento do Canal do Panamá, porque para eles parece evidente
que o transporte de petróleo vai exigir navios muito mais largos
do que os usados atualmente. E se perguntar a algum funcionário
do Ministério sobre os problemas do dia-a-dia, ele é capaz de
ignorar completamente, porque não é a sua função.
Mas isso não coloca em questão
a própria organização do Estado?
Claro! Há muitos anos tenho
insistido na possibilidade de se rever a organização do Estado.
O Estado contemporâneo é um produtor de políticas, não é um
produtor de normas jurídicas, e quando se pensou na organização
do Estado moderno, a idéia era bem diferente. O Estado era, por
assim dizer, estático e a sua expressão maior era a lei, como de
certa forma a declaração de Direitos inerentes à pessoa humana,
portanto imutáveis. Hoje, não há nenhum país moderno que não
se organize praticamente para a produção de políticas, mas como
o modelo constitucional não está adaptado a isso, a
conseqüência óbvia é o inchaço do Executivo. Ele assume a
responsabilidade de elaborar, executar políticas e, com base
nisso – como está se vendo no Brasil –, ele monopoliza a
função do Legislativo e procura neutralizar a função do
Judiciário.
Como o senhor vê a democracia
brasileira num momento em que é recorde o número de Medidas
Provisórias, em que se enfraquecem os partidos, em que o
Executivo desrespeita a divisão de poderes etc.?
Trata-se de um cenário novo para
uma peça de teatro que foi representada desde as origens do
Brasil. Nunca fomos democratas e temos muita dificuldade de
entender o que é democracia. A onipotência do poder Executivo,
como já havia observado Joaquim Nabuco, é uma constante na vida
pública brasileira. Nós não entendemos o poder sem dominação
ilimitada e no fundo isso talvez seja uma reminiscência da época
falsamente iluminista de Pombal em Portugal. Nós entendemos
eficiência de poder com a turbulência: o poder faz as coisas e
portanto é eficiente!.
É claro que para enfrentar essa
situação é preciso avançar em dois registros. O fundamental é
o da educação cívica. Tudo isso representa a vivência de
antivalores e é preciso criar no povo brasileiro o etos da
liberdade, da igualdade e da solidariedade. O outro registro
fundamental é o institucional. A Constituição brasileira tem
pontos muito falhos no que diz respeito à limitação do poder. E
é preciso entender ainda, nesse particular, que a limitação de
poder estabelecida na Constituição deve se dirigir não apenas
aos órgãos de Estado, mas também àquelas instituições da
sociedade civil que exercem um poder social efetivo sob a
proteção do Estado.
Que instituições seriam essas?
Quero me referir especificamente
aos meios de comunicação de massa. A política hoje se faz no
espaço dos meios de comunicação de massa. A própria propaganda
política mudou radicalmente. Até bem pouco tempo atrás ainda
era importante fazer comício e mostrar o povo nas ruas. Hoje, é
indispensável ter o monopólio da comunicação, através da
televisão e do rádio sobretudo, e nesse particular as classes
dominantes do Brasil revelam eficiência e talento realmente
incomuns. Conseguiu-se sem maiores percalços colocar em prática
o sistema democrático formal de realização periódica de
eleições com a manutenção imutável do sistema de dominação
oligárquico. Isso hoje é obtido sobretudo pelo pacto
estabelecido entre os donos de órgãos de imprensa, rádio e
televisão, e os governantes. Ambos colhem benefícios, não só
econômicos mas também políticos e de prestígio social. Se a
esquerda quiser começar a modificar essa situação, ela tem que
colocar como ponto principal da sua atuação a democratização
dos meios de comunicação. Isso é muito mais importante para
começar a mudar o sistema de dominação política, social e
econômica do Brasil do que, por exemplo, a reforma agrária. Não
que a reforma agrária não seja importante mas, no campo das
prioridades de modificação do sistema oligárquico, a
democratização dos meios de comunicação de massa passa em
primeiro lugar.
Qual seria a maneira de
democratizá-los?
É justamente quebrar essa
sociedade entre os empresários, os políticos e os altos
funcionários governamentais. Passa portanto por uma inserção da
sociedade civil no mecanismo de criação e funcionamento dos
órgãos de comunicação de massa. Não apenas nas concessões
– que só existem para rádio e televisão –, mas também e
principalmente pelo estabelecimento de um espaço de comunicação
social, ou seja, de livre acesso das parcelas mais representativas
da população ao rádio e à televisão. Eles são concessões
públicas, que não devem ser entendidas como concessões
governamentais, mas sim como concessões do povo. Portanto, é
preciso que na própria concessão haja uma interferência de
representantes do povo que não sejam os políticos tradicionais
que estão no Congresso Nacional. É preciso que, no funcionamento
do rádio e da televisão, haja o que já se denominou no exterior
"direito de antena", ou seja, o direito efetivo,
inarredável, de acesso regular a esses meios de comunicação por
movimentos políticos, sindicatos, universidades, Igrejas, ONGs,
para que se estabeleça um verdadeiro espaço público e portanto
se deixe de fazer a manipulação constante da opinião pública.
Os autores clássicos sempre
entenderam que a opinião pública é uma espécie de juiz dos
governantes e partiram sempre do pressuposto de que ela não pode
ser fabricada. O século XX veio demonstrar, em larga medida, a
possibilidade de fabricação da opinião pública. Isso começou
nos Estados totalitários, comunistas e fascistas, mas logo depois
da Segunda Guerra Mundial, fundados na sua secular experiência de
propaganda comercial, os líderes capitalistas estabeleceram um
sistema eficientíssimo de fabricação da opinião pública. Isso
falseia completamente o jogo democrático. Podemos continuar
fazendo eleições indefinidamente que ganhará sempre a minoria
rica e poderosa.
Mas, não há um certo paradoxo
no seu raciocínio, porque para modificar a ordem das coisas na
mídia é necessário chegar ao poder e, para chegar ao poder, se
pressupõe uma modificação prévia da gestão da mídia?
É verdade! Esse paradoxo é
típico de toda mudança política, mas ele começa a ser rompido
quando se faz a propaganda por baixo, ou seja, quando os
movimentos políticos conseguem convencer o povo de que uma
determinada solução é importante para ele. E uma das coisas
mais lamentáveis nos últimos tempos é a incapacidade dos
movimentos políticos – notadamente do partido político mais
autêntico, que é o Partido dos Trabalhadores – em fazer a
verdadeira educação popular. O PT, lamentavelmente, vai cada vez
mais se afastando dessa tarefa. Os sindicatos, quando surgiram,
faziam muito proselitismo, no sentido de convencer a classe
operária de que era preciso lutar por certos direitos. O Partido
dos Trabalhadores tinha também, quando surgiu, o mesmo impulso
apostolar. Hoje isso secou e eu não vejo saída. Mas teoricamente
isso passa por um largo movimento de educação popular.
Nas poucas ocasiões em que a
esquerda foi alçada ao poder, ela não soube utilizar os
mecanismos do poder para educar o povo. Ela tentou, de maneira
desastrosa, usar o mesmo tipo de propaganda política artificial e
manipuladora que os capitalistas usam. Não acredito que, nas
prefeituras e poucos governos de estado em que o PT chegou ao
poder, ele tenha entendido que é preciso fazer outro tipo de
política, pedagógica, e não simplesmente defender a atuação
dos seus governantes com dinheiro público, usando a televisão.
O senhor vem desenvolvendo, há
alguns anos, a experiência da Escola de Governo. Evidentemente,
ela não tem a pretensão de fazer o papel do partido, do
sindicato, das instituições. Mas ela faz parte de uma idéia de
educação, não propriamente da população, mas de quem tem
pretensões de governar?
Ela de fato é uma experiência
que se insere num contexto amplo de educação cívica. A
educação cívica começa praticamente desde a infância. A
criança é educada, é civilizada, na medida em que aprende a
respeitar os outros. Portanto, é um trabalho constante de luta
contra o egoísmo. Devemos prosseguir nesse trabalho de educação
incessante do povo até a fase de preparação para o exercício
do poder, que é justamente a fase das escolas de governo. Mas é
claro que a nossa experiência de Escola de Governo é muito
modesta, humilde mesmo! Apesar disso, ela tem se ampliado, porque
agora temos "filiais" em Florianópolis, Fortaleza, Belo
Horizonte, Uberaba e acabou de ser criada uma Escola de Governo em
Porto Alegre. Nós temos mantido essa experiência como uma
espécie de desafio para mostrar que é possível exercer um
trabalho de educação política no nível mais elevado e que esse
trabalho tem que ser feito pela sociedade como um todo e portanto
pelo Estado, como seu representante.
As universidades deveriam ter
como uma de suas metas principais a formação da chamada
"elite governante". Elite no sentido da qualificação
evidentemente, não no sentido da fortuna. E a esse respeito
aliás eu devo dizer que alguns de nossos melhores alunos em São
Paulo foram pessoas que tinham uma formação escolar muito
limitada, mas que revelaram um grande sentido do interesse
público e uma capacidade de apreensão das técnicas de
macroeconomia ou de exercício de funções públicas, de direito
público, muito maior que vários outros formados pela
Universidade.
Essas filiais têm seguido o
mesmo padrão da matriz?
Nós procuramos manter os mesmos
princípios. A Escola de Governo não é partidária, não defende
uma ideologia política determinada, mas nós insistimos muito no
método de ação política, que no fundo é um velho método que
foi aplicado pela Ação Católica, quando ainda existia, que é:
"ver, julgar e decidir", ou "ver, julgar e
agir". E, sobretudo, a nossa ênfase cada vez mais se
concentra nesse etos da vida pública, ou seja, na superioridade
dos Direitos Humanos e na necessidade de uma reorganização
institucional para a sua promoção.
Nós temos tido como alunos gente
de vários partidos. No ano passado, tínhamos quatro ou cinco
partidos representados em São Paulo na turma da Escola de
Governo. Um dos resultados mais sensíveis é o fato de que as
pessoas entram na Escola de Governo com uma determinada visão,
muito parcial – se não sectária –, de mundo e acabam
aprendendo a conviver com os outros e a abrir seu horizonte. Não
que percam totalmente sua visão inicial; quem entra comunista,
continua comunista, mas aprende a enxergar a realidade, o que é o
primeiro passo. Nós não estamos sós no mundo político com os
companheiros de partido. É preciso enxergar a sociedade, perceber
quais são seus valores e costumes e perceber também que toda
ação política tende a essa solidariedade. Nós formamos um todo
sólido, em latim. Portanto, não podemos dizer que há partes
dispensáveis, que podem ser tiradas da sociedade porque são
imprestáveis. Isso é uma concepção totalitária que não é
absolutamente privilégio da esquerda. Ao contrário, ela é muito
de direita!
*Eugênio Bucci é
jornalista. Fernando Haddad é professor de Ciência
Política na USP. Maria Paula Dallari Bucci é advogada.
A Escola de
Governo
(Maria Paula
Dallari Bucci)
A Escola de Governo
foi criada por iniciativa dos professores Fábio Comparato e Maria
Victoria Benevides, titulares da USP, além de outros professores
e profissionais. No seminário de inauguração, em dezembro de
1991, participaram figuras de todas as posições do espectro
partidário, entre as quais o então ministro da Fazenda Fernando
Henrique Cardoso, o professor Adib Jatene e o deputado José
Serra.
A Escola mantém cursos
regulares, com duração de um ano, para turmas de 60 alunos,
desde março de 1992. As aulas são dadas numa sala cedida pela
Fiesp, no centro de São Paulo, onde atualmente está em formação
a sexta turma.
Dos sessenta alunos anuais, dez são
bolsistas, subvencionados pela Associação Brasileira da Formação
de Governantes, entidade sob a qual se congregam as Escolas de
Governo abertas pelo Brasil, todas originadas na experiência
paulista. Atualmente, há Escolas de Governo em funcionamento com
alguma ligação com universidades públicas locais (exceto a de
Belo Horizonte, que tem maior ligação com a Universidade Católica
de Minas Gerais). Estão em processo de organização mais duas
Escolas, em Recife e no Rio de Janeiro.
A Escola de Governo tem uma vocação
essencialmente pluripartidária, assim definida no seu estatuto e
na composição das turmas. No curso de 1996, havia integrantes de
onze partidos diferentes, do PPB ao PT, passando pelo PFL, PSDB e
outros. Em carteiras vizinhas sentavam-se um representante do
Movimento Sem-Terra e outro do Sindicato dos Produtores Rurais.
A admissão à Escola se faz por
exame de currículo, numa seleção em que preponderam como critérios
ter "vida pública em andamento" ou "explícita
vocação pública". Segundo esse critério, são admitidos
integrantes de governos, do Poder Legislativo, juízes e
promotores, membros de forças de segurança, como delegados e
policiais. Também têm participação importante na Escola alunos
que integram os meios de comunicação.
|