
As Garantias Institucionais
dos Direitos Humanos*
Fábio Konder
Comparato
A instituição-matriz dos direitos
humanos, na História, foi a limitação institucional do poder
político.
A experiência histórica, com
efeito, tem demonstrado que a proteção da dignidade humana
depende, fundamentalmente, da solução de um problema, cuja
magnitude representa um perpétuo desafio à argúcia dos
governantes de todos os tempos: como pôr o direito acima da
vontade dos homens.
A causa primeira da desordem ética
é, geralmente, o abuso de poder, individual ou coletivo. Por isso
mesmo, a função primordial da ordem jurídica, como sustentaram
com inteira razão os defensores da idéia de contrato social,
consiste em refrear a liberdade natural, que conduz ao conflito e
ao senhorio dos mais fracos pelos mais fortes, a fim de se
instaurar a liberdade política, fundada no mútuo respeito da
pessoa humana, em todas as suas múltiplas diferenças biológicas
e culturais.
O princípio da
separação de poderes como garantia institucional
É nessa perspectiva que se deve
apreciar a importância da tese de-fendida por Montesquieu.
Na preservação da liberdade
humana, dois extremos de desordem ética devem ser cuidadosamente
evitados pela estrutura constitucional dos regimes políticos: a
instituição de um só poder, absoluto e irresponsável - é a
proposta bem conhecida de Hobbes -, ou a supressão de todo poder
insti-tucional, com a volta ao hipotético estado da natureza.
A solução, como percebeu
Montesquieu, consiste em criar um meca-nismo de equilíbrio
gravitacional de poderes, uma espécie de adaptação, para as
sociedades humanas, das leis da mecânica celeste expostas por
Newton. "Para que se não possa abusar do poder, é preciso
que, pela dispo-sição das coisas, o poder refreie o poder";
da mesma forma que os corpos celestes, atraindo-se e contendo-se
uns aos outros, impedem a desordem entrópica do universo.
Note-se: "pela disposição das coisas", vale dizer,
pela organização das instituições políticas, não pela
vontade dos homens.
Nesse sentido, pode-se dizer que a
proto-história dos direitos huma-nos começa nos séculos VI e V
antes de Cristo, com a fundação da demo-cracia ateniense e da
república romana. Em ambos os casos, o objetivo maior era o
mesmo: a garantia da liberdade dos cidadãos, após a dura experiência
do poder arbitrário, que ambos os povos haviam sofrido. Mas os
caminhos para a consecução desse resultado foram diversos: em
Atenas, a limitação do poder político realizou-se por meio de
mecanismos verticais, com a instituição da democracia direta, ao
passo que em Roma preferiu-se criar um equilíbrio horizontal, com
a separação de poderes.
Na verdade, as duas espécies de
instituições devem combinar-se, a fim de que se possa proteger
mais eficazmente a pessoa humana contra o arbítrio dos poderosos.
Escrevendo no segundo século antes
de Cristo, o historiador grego Políbio não hesitou em atribuir
ao refinado mecanismo republicano de checks and balances a
grandeza de Roma, que em menos de cinqüenta e três anos logrou
estender a sua dominação "à quase totalidade da terra
habitada, fato sem precedentes".
Três eram, com efeito, as espécies
tradicionais de regimes políticos, citados por Platão e Aristóteles:
a monarquia, a aristocracia e a democracia. Para Políbio, o gênio
inventivo romano consistiu em combinar esses três regimes numa
mesma constituição, de natureza mista: o poder dos cônsules,
segundo ele, seria tipicamente monárquico; o do Senado, aristocrático;
e o do povo, democrático. Assim é que o processo legislativo
ordinário (para a edição das leges latae, também chamadas
leges rogatae) era de iniciativa dos cônsules, que redigiam o
projeto. Este passava em seguida ao e-xame do Senado, que o
aprovava com ou sem emendas, para ser finalmente submetido à votação
do povo, reunido nos comícios.
Tanto os cônsules, quanto os
tribunos, nunca exerciam isoladamente as suas funções, mas eram
sempre nomeadas duas pessoas para o mesmo cargo. Se um desses
altos funcionários não concordava com um ato praticado pelo
outro, podia vetá-lo (intercessio). O mesmo poder de veto foi
atribuído aos tribunos da plebe, em relação às decisões
tomadas pelos cônsules.
Foi esse "governo
moderado" da república romana, muito mais do que a Constituição
(puramente idealizada) da Inglaterra, que inspirou de fato
Montesquieu na composição do Livro XI de sua obra famosa.
A partir das três grandes revoluções
que instituíram o mundo político moderno - a inglesa de 1688, a
americana de 1776 e a francesa de 1789 -, o sistema de proteção
da dignidade humana contra o poder arbitrário fundou-se,
concomitantemente, na declaração de direitos subjetivos e na
organização de instituições estatais, como a supremacia do
Parlamento, ou a distribuição equilibrada dos poderes políticos,
segundo a proposta de Montesquieu. O art. 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia
Nacional Francesa no início da Revolução, sin-tetizou a grande
mudança, em forma lapidar: "Toda sociedade, em que a
garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos
poderes determinada, não têm constituição".
Acontece que, durante todo o século
XIX, a doutrina jurídica, sobre-tudo nos países do sistema
romano-germânico (ou seja, grosso modo, na Europa continental e
na América Latina), preocupou-se muito mais em analisar os
direitos humanos sob o aspecto subjetivo, do que em teorizar sobre
as instituições de organização estatal, destinadas a garantir
o respeito a es-ses direitos. Foi somente após o grande abalo sísmico
provocado pela guerra de 1914 a 1918 e pela revolução
bolchevique no antigo império russo, que a separação de poderes
passou a ser considerada, não como simples forma de organização
do governo, mas como garantia institucional dos direitos
fundamentais da pessoa humana, declarados na Constituição.
Essa nova construção teórica foi
obra da doutrina publicista germânica, durante a República de
Weimar. Para tanto, muito contribuiu a experiência negativa
vivida pelos alemães, com a monarquia Hohenzollern. Com efeito,
durante todo o período bismarckiano do império alemão, fundado
em 1871, os poderes do monarca foram contrabalançados pelos do
chanceler do Reich. Com a subida ao trono do novo Kaiser em 1888 e
o afastamento de Bismarck da chancelaria, instaurou-se na Alemanha
um re-gime de monarquia absoluta, que acabou levando o país à
desastrosa guerra de 1914. Aos constituintes de Weimar, em 1919,
pareceu, pois, indispensável estabelecer mecanismos de limitação
dos poderes governamentais, na República a ser criada.
Eles o fizeram pela instituição
de um sistema, que poderia ser deno-minado, indiferentemente,
semipresidencial ou semiparlamentar de governo. É, de fato, na
Constituição de Weimar que se encontra o modelo original da
organização política que o General de Gaulle deu à França, em
1958, e que foi depois adotado em Portugal. O Presidente da República
é eleito diretamente pelo povo, para um mandato de sete anos. Ele
nomeia os Ministros que compõem o gabinete governamental, responsável
perante o Parlamento, o qual pode ser por ele dissolvido a
qualquer tempo. Mas, sobre-tudo, a Constituição alemã de 1919
atribuiu ao Presidente da República a competência excepcional
para editar medidas necessárias de cunho legislativo (nötige
Massnahmen), em caso de perturbação ou de riscos de perturbação
da segurança coletiva e da ordem pública, medidas essas que
entravam imediatamente em vigor, embora pudessem ser revogadas
pelo Parlamento. Aí está, em sua essência, o instituto dos
"provimentos provisórios com força de lei", adotado
pela Constituição italiana de 1947, e que os nossos
constituintes de 1988 copiaram sob a denominação de medida
provisória.
O fato é que, não obstante a sua
inegável orientação no sentido da separação de poderes, a
Constituição de Weimar, seja pelo extremo fracionamento partidário,
criado pelo sistema eleitoral, seja pelo excesso de poderes atribuídos
ao Presidente da República, permitiu ou, pelo menos, não impediu
o suicídio da república e o assassínio coletivo das liberdades,
com a ascensão de Adolfo Hitler à chancelaria em 1933.
À doutrina publicista alemã da época,
não passou despercebida a im-portância do estabelecimento de
mecanismos objetivos de organização do Estado, para a garantia
dos direitos humanos, pois do funcionamento desses mecanismos
depende, afinal, a aplicação das próprias garantias judiciais.
Esse esforço doutrinário foi retomado com a reconstitucionalização
do país, após a derrocada do regime nazista, embora ainda careça,
a meu ver, de maior aprofundamento e precisão de conceitos.
De modo geral, pode-se conceituar
as garantias institucionais como formas de organização do
Estado, ou institutos da vida social, cuja função é assegurar o
respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na
Constituição; não apenas das liberdades individuais (Freiheitsrechte),
como pareceu aos autores alemães, mas de todas as demais espécies
de direitos humanos. Na primeira classe de garantias
institucionais, situa-se, por exemplo, a separação de poderes.
Na segunda, também exemplificativamente, os institutos
componentes da seguridade social, ou o sistema público de ensino.
Em qualquer das hipóteses, trata-se de instituições que, pela
sua própria natureza, fazem parte das disposições
constitucionais insuprimíveis, não só pela lei, mas até mesmo
pela via do processo de emenda à Constituição.
De minha parte, penso que as
garantias institucionais podem e de-vem, hoje, ser analisadas como
princípios fundamentais do ordenamento constitucional. Nessa
condição, apresentam elas as três características essenciais
de todo princípio jurídico: 1) supremacia normativa; 2)
ilimitado âmbito de aplicação e 3) ilimitado grau de aplicação.
Vejamos como essas características
essenciais se encontram no instituto da separação de poderes.
Em razão de sua supremacia
normativa, o princípio da separação de poderes situa-se no ápice
do ordenamento jurídico nacional, sobrelevando todas as regras,
até mesmo de natureza constitucional, que não tenham o valor de
princípios. Na hipótese de uma eventual colisão da separação
de poderes com outro princípio fundamental, em determinado caso
concreto, o intérprete deve escolher a solução que melhor
assegure a proteção dos direitos fundamentais, segundo a técnica
de sopesamento, que os alemães denominam Güterabwägung, e os
anglo-saxônicos balancing.
Quanto à segunda característica
da separação de poderes enquanto princípio jurídico - a
ilimitação do seu âmbito de aplicação -, temos que os centros
de poder político abrangidos não são apenas os três ramos clássicos
do Estado: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Entra, também,
no âmbito de aplicação do princípio, o Ministério Público,
na medida em que este é um poder orgânico de defesa judicial do
interesse público, em seu sentido próprio, isto é, o interesse
do povo, titular da soberania.
A ilimitação do grau de
aplicabilidade de um princípio significa que ele nunca pode ser
tido como integralmente cumprido, mas conduz sempre à ampliação
continuada de seus efeitos. Uma norma ordinária - por exemplo, a
de que o devedor deve cumprir a obrigação no lugar, tempo e modo
convencionados (Código Civil, art. 955) - não só pode como deve
ser integralmente cumprida. Não assim, quando se trata de um
princípio, na medida em que este se vincula a um valor humano,
que é por definição inexaurível. Nunca se poderá dizer que a
dignidade de uma pessoa já foi integralmente respeitada, ou que
uma sociedade é totalmente democrática.
Ora, sob o aspecto da ilimitação
do seu grau de aplicabilidade, en-quanto princípio jurídico, a
separação de poderes não se reduz a determinados efeitos,
taxativamente declarados ou não no texto constitucional. Na
Constituição de 1946, bem como na do regime militar, por
exemplo, vedava-se a qualquer dos poderes delegar atribuições,
determinando-se que o cidadão investido na função de um deles não
poderia exercer a de outro. A Constituição de 1988 não
reproduziu essas proibições. Mas é evidente que elas continuam
em vigor, como corolários do princípio, a par de vários outros
de vigência implícita, e que a experiência histórica vai
revelando, dian-te de novas modalidades de concentração abusiva
de poder.
A supremacia
incontrastável do poder governamental na experiência política
brasileira
Desde que iniciamos a nossa vida de
nação independente, há um da-do que permanece constante na
realidade política, indiferente às sucessivas formas de organização
constitucional que adotamos no correr dos tempos: todo poder
estatal tende a concentrar-se no cargo de chefe do Estado.
Raymundo Faoro, em estudo já clássico, enxerga nas origens do
reino de Portugal, forjado que fora pelo rei, muito mais um chefe
político do que um senhor feudal, a raiz primeira desse traço típico
de nosso ethos político.
No império, a centralização e
personalização do mando encontrava uma certa justificativa no
chamado Poder Moderador, que a Constituição de 1824 instituiu,
sob a inspiração de Benjamin Constant. Mas os redatores daquela
Carta Política, assim como os seus mais insignes comentadores e
intérpretes, não reproduziram com fidelidade a idéia original
do pensador franco-suíço. Enquanto este sustentava que a chave
de toda organização política é a distinção entre o poder
ministerial e o poder do rei, a nossa Constituição imperial
preferiu declarar, sintomaticamente, que "o Poder Moderador
é a chave de toda a organização Política", sem acentuar a
sua necessária separação do Poder Executivo dos ministros de
Estado. Para Benjamin Constant, o poder do chefe de Estado é
neutro, isto é, simplesmente arbitral ou mediador, enquanto o dos
ministros é ativo, no sentido de que estes não atuam como meros
agentes delegados do chefe de Estado. Daí a diferença
fundamental e essencial, como ele frisou, entre a responsabilidade
ministerial e a inviolabilidade do rei.
Entre nós, no entanto, José
Antonio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente) não hesitou em
afirmar que a prerrogativa conferida pelo art. 98 da Constituição
de 1824 ao Imperador era "a mais elevada força social, o órgão
político mais ativo, o mais influente, de todas as instituições
fundamentais da nação". No mesmo diapasão, o Visconde de
Uruguai, o primeiro grande cultor do direito administrativo entre
nós, sustentou que "o Imperador não é o Poder Executivo, não
constitui por si só o Poder Executivo. É simplesmente (sic) o
Chefe do Poder Executivo." Analogamente, o Poder Judicial
"é uma mola da máquina administrativa, mas não é a máquina"
(tal seria!). Em conclusão, "a máxima - o Rei reina e não
governa - é completamente vazia de sentido para nós, pela nossa
Constituição." Ao que o Marquês de Itaboraí (Rodrigues
Torres) arrematou: "o Imperador reina, governa e
administra."
Com isto, estava aberto o caminho
à inevitável absorção das funções governamentais pelo
monarca, declarado constitucionalmente imune de toda
responsabilidade, com a inevitável conseqüência do
avassalamento permanente dos demais órgãos constitucionais.
O parlamentarismo no império, como
todos reconhecem, sempre foi uma ficção retórica. O velho
Nabuco de Araújo em famoso discurso pronunciado no Senado em 17
de julho de 1868, logo após o Imperador despedir inopinadamente o
Gabinete Zacarias de Góis, desnudou-a sob a forma de um sorites,
ou silogismo encadeado:
"O Poder Moderador pode chamar
a quem quiser para organizar mi-nistérios; esta pessoa faz a eleição,
porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está
o sistema representativo do nosso país!"
Instituído o regime republicano,
essa concentração abusiva de pode-res, de direito e de fato, na
pessoa do chefe de Estado não recrudesceu; pelo contrário.
Os primeiros governos presidenciais
não passaram de ditaduras mili-tares, sob a justificativa teórica
da ideologia positivista. Imaginava-se que o sistema federativo
viesse quebrar, de algum modo, a onipotência do Presidente da República.
Mas a solerte "política dos Governadores", instituída
por Campos Sales, afastou desde logo qualquer ilusão a esse
respeito. Os Governadores - na verdade, apenas dois, de São Paulo
e Minas Gerais - fazem o Presidente, e este os apóia em retorno,
na reprodução, em plano federal, do esquema coronelista instituído
em cada Estado.
Discursando no Instituto dos
Advogados, ao tomar posse no cargo de Presidente desse sodalício
em 19 de novembro de 1914, Rui Barbosa não usou meias palavras
para qualificar o sistema de governo instaurado com o regime
republicano. "O presidencialismo brasileiro", disse ele,
"não é senão a ditadura em estado crônico, a
irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a
irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". Vinte
anos depois, um diplomata inglês, que aqui vivera durante um
quarto de século, corroborou essa análise sem concessões do
nosso sistema de governo, ao publicar um opúsculo com título
sugestivo: "Sua Majestade o Presidente do Brasil". A
ousadia valeu-lhe a imediata expulsão do território nacional.
O fato é que, após os dois períodos
de governo de exceção, chefiados por Getúlio Vargas - antes e
depois da Constituição de 1934 - e após os vinte anos de regime
militar, tínhamos ingenuamente a esperança de que, com a
reconstitucionalização do País, o nosso sistema político se
encaminhasse, afinal, para um estado de maior equilíbrio de
poderes.
Pura ilusão! Já em fins da década
de 80 faziam-se sentir por aqui as pressões internacionais para o
nosso ingresso forçado no sistema de capitalismo globalizado. E
este, como se viu em toda a América Latina, exige cada vez maior
concentração de poderes na chefia do Executivo, com o
avassalamento de todos os demais órgãos estatais. A análise dos
"custos de transação", como dizem os economistas, tem
aconselhado os centros de poder econômico e financeiro - as
empresas transnacionais e as organizações internacionais de caráter
econômico - a simplificar, ao máximo, os canais de interlocução
com os países periféricos.
O Presidente da República já detém,
em suas mãos, não só o poder legislativo, pela via da proliferação
de medidas provisórias, como, até mesmo, o poder de reforma
constitucional. Até meados de 2001, ou seja, em menos de treze
anos de vigência, a Constituição de 1988 foi remendada 37
(trinta e sete) vezes, sempre por iniciativa direta, ou com o
consentimento expresso do chefe do Poder Executivo.
A par disso, permanece a mesma
subserviência do Congresso Nacional às determinações do chefe
do Executivo. A eleição dos Presidentes das duas Casas
Legislativas é rigorosamente controlada por ele. Demais,
continuamos a assistir, impotentes, à mesma negociação
indecorosa de liberação de verbas orçamentárias, quando não
ao suborno puro e simples de parlamentares, no interesse privado
do governo ou do próprio Presidente da República, como se viu
recentemente, ao se impedir a instalação de comissão
parlamentar de inquérito sobre atos de corrupção.
O que assusta, porém, nesse
processo de subordinação de todos os órgãos estatais à Presidência
da República, é a facilidade com que o Judiciário e o Ministério
Público deixam-se aniquilar sem resistência. O Executivo vem
criando múltiplos embaraços à judiciabilidade dos seus próprios
atos, por meio de medidas provisórias, na consolidação de uma
irresponsabilidade da qual Rui Barbosa nem chegara a cogitar, em
suas mais ferinas objurgatórias. O chefe de Estado, de um só
golpe, legisla em sustentação de suas políticas, ou mesmo em
proveito próprio, e impede a censura de seus atos pelo Judiciário.
Este, na verdade, em nome da previsão
e certeza das decisões em matéria econômica, como exigem os
centros de dominação capitalista internacional, notadamente o
Banco Mundial em seu anteprojeto-padrão de reforma do Judiciário
na América Latina, vai se concentrando sempre mais nos tribunais
superiores, de forma a coarctar, sem maiores escrúpulos, a
jurisdição dos juízes de primeira instância e dos tribunais de
segundo grau.
É nesse quadro de completo
aviltamento da Justiça que se insere o despautério da chamada ação
declaratória de constitucionalidade, criada pela emenda nº 3, de
1993. Longe de ser uma defesa da cidadania contra o abuso
governamental, segundo a boa tradição do judicial review que
herdamos dos norte-americanos, aquela ação judicial foi criada
como medida de proteção antecipada do governo contra as demandas
que os cidadãos possam ajuizar contra ele, em defesa de seus
direitos fundamentais. Trata-se de um verdadeiro bill de
indenidade que o Supremo Tribunal outorga ao governo,
habilitando-o a espezinhar impunemente a Constituição, com a
imediata suspensão da jurisdição de todos os demais órgãos
judicantes. Foi o que se acabou de ver, vergonhosamente, com a
recente decisão do Supremo Tribunal, ao julgar compatível com a
Constituição a medida provisória instituidora do racionamento
de energia elétrica. Como previsível, o Procurador-Geral da República
pronunciou-se pela sua constitucionalidade.
Na verdade, se essa desmoralização
toda se abate sobre os órgãos encarregados de dizer o direito e
fazer justiça em última instância, não é melhor a sorte
reservada ao Ministério Público, nesta fase de recrudescimento
da macrocefalia presidencialista.
A Constituição de 1988 deu
ensejo, em matéria de nomeação do che-fe do Ministério Público
Federal, a uma situação de permanente desvio de poder. O
Presidente da República, com a simples observância das
formalidades extrínsecas, nomeia e renomeia, para aquele alto
cargo, não um guardião do interesse público, mas um indisfarçável
defensor do governo, quando não dele próprio, Presidente. E o
Senado - fato inédito nos anais de nossa história republicana -
decide abrir mão de seu poder de controle constitucional sobre o
ato de nomeação, para se transformar em lobby do candidato
oficial.
Perante essa situação de completa
ruína das instituições republicanas, pondo ao desamparo todo o
sistema de direitos fundamentais arquitetado na Constituição,
parece óbvia a urgente necessidade de se elaborar um programa de
regeneração institucional, com base nos veneráveis modelos que
nos legaram a Atenas democrática e a Roma republicana. Para lutar
com êxito contra o abuso de poder, é indispensável combinar as
instituições da democracia participativa com o mecanismo da
separação de poderes.
A instituição de um regime de
efetivo governo do povo pelo povo compreende, antes de mais nada,
a necessária participação popular na ela-boração e reforma da
Constituição, bem como a colaboração do povo, quando
convocado, no desempenho da tarefa legislativa. Ela compreende,
também, como é óbvio, a indispensável decisão popular para a
aprovação de tratados internacionais, ou de políticas públicas,
que determinem o futuro da nação. Ela deve se estender, da mesma
forma, ao processo de votação dos orçamentos, por meio da
aprovação popular das leis de diretrizes orça-mentárias.
Não só isso, na verdade. Se os
governantes, a começar pelos princi-pais deles - os chefes do
Executivo - devem ser sempre tidos como manda-tários ou delegados
do povo soberano, nada mais lógico do que permitir a revogação
popular de seus mandatos - o recall -, por iniciativa de uma
minoria qualificada de parlamentares, ou do próprio povo.
Já no tocante ao equilíbrio autônomo
dos poderes estatais, a futura Constituição republicana deverá
incorporar, explicitamente, várias regras específicas, de modo a
evitar que esse princípio fundamental não degenere em mero
enunciado decorativo.
Assim é que a autonomia de
funcionamento do Congresso Nacional seria singularmente favorecida
por uma disposição muito simples: somente as bancadas partidárias
teriam competência para oferecer emendas ao projeto de lei orçamentária,
e tais só poderiam contemplar rubricas globais do orçamento.
No que tange à autonomia do Judiciário
e do Ministério Público, a renovação institucional deve ser
ampla e profunda.
Importa, em primeiro lugar,
eliminar o poder dos chefes de Executi-vo para nomear os
integrantes desses órgãos. Se, na lógica do regime
presi-dencial de governo, não pode haver interferência do
Legislativo na compo-sição do Executivo, e vice-versa, com que
fundamento a composição do Judiciário e do Ministério Público
- tal como nas monarquias do ancien régime - há de depender de
uma decisão do chefe de governo?
É preciso ir além, todavia. Cabe
dar ao Judiciário e ao Ministério Pú-blico uma organização
coesa, a fim de que eles possam realmente atuar, unitariamente,
como poderes estatais, autônomos e independentes. Tal co-mo
presentemente organizados, eles não dispõem de condições
estruturais de manifestação de uma vontade coletiva, contraposta
à dos demais órgãos do Estado.
O Executivo atua unitariamente, com
base no critério hierárquico. O Legislativo manifesta a sua
vontade, a partir de decisões coletivas. Não assim com o Judiciário
e o Ministério Público, cujo funcionamento não obe-dece a
nenhum desses critérios. A independência funcional dos
magistrados e membros do Ministério Público impede que entre
eles exista, mesmo de uma instância para outra, uma relação, mínima
que seja, de hierarquia. Em sua atuação funcional, ninguém,
nesses órgãos, pode dar ou receber ordens. Por outro lado,
nenhum deles é estruturado, globalmente, para tomar decisões
coletivas, que manifestem uma vontade comum. Com isto, tanto o
Judiciário, quanto o Ministério Público vêem-se singularmente
enfraquecidos, em seu relacionamento com os demais poderes do
Estado. Não se entende, assim, por que razão a proposta de lei
complementar sobre o estatuto da magistratura, ou sobre o estatuto
do Ministério Público, deva ser da iniciativa exclusiva,
respectivamente, do Supremo Tribunal Fe-deral e dos
Procuradores-Gerais, na União e nos Estados (arts. 93 e 128, § 5º
da Constituição), sem refletir a opinião comum entre todos os
magistrados. Tampouco se entende por que razão a propostas
mencionadas no art. 96 - II devam competir ao Supremo Tribunal
Federal, aos Tribunais Su-periores e aos Tribunais de Justiça nos
Estados (art. 96 - II). Essas disposi-ções constitucionais
acentuam a fratura interna do Judiciário e do Ministério Público,
tornando-os órgãos menos aptos à vigorosa defesa de sua
independência, como garantia institucional dos direitos humanos.
Também não se compreende como as
emendas constitucionais, ou as leis - sem falar na aberração das
medidas provisórias -, que alterem a ju-risdição e a competência
de juízes e tribunais, possam ser aprovadas sem a concordância
do Poder Judiciário respectivo, como um todo, nele englobados juízes
e tribunais.
Como se vê, a solução para os
nossos males crônicos não está na mudança, pura e simples, de
governos. Ela exige muito mais. O dever pú-blico que nos cabe,
neste momento crucial de nossa história, no qual se decide,
efetivamente, o futuro do Brasil como nação independente, é a
re-constitucionalização substancial do país, com o objetivo de
substituir a regime oligárquico e o sistema capitalista, pela
democracia radical e a economia humanista, no respeito integral da
dignidade do povo brasileiro.
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