
ASPAS
Fábio Konder Comparato
"1984", copyright Folha de S. Paulo, 14/6/00
"No romance com este mesmo título,
George Orwell imaginou que o reino do absurdo, representado pelo
Estado totalitário, seria um fato extraordinário na História.
Pobre visionário! Mal podia ele supor que, no final do século, a
técnica do absurdo seria banalizada no expediente do dia-a-dia
burocrático.
Na Oceânia tenebrosa de Orwell,
todos os sinais haviam sido trocados e as palavras significavam
exatamente o contrário do que sempre se entendera. O Ministério
da Verdade ocupava-se de reescrever o passado, segundo a
conjuntura política do momento; o Ministério da Paz administrava
a Guerra; o Ministério do Amor chefiava a Polícia e o da Abundância
dirigia o racionamento.
Hoje, já não precisamos recorrer
à imaginação para descrever o absurdo. Aqui mesmo, talvez pela
fatalidade da numeração oficial, a Medida Provisória 1984, cuja
18ª edição saiu no Diário Oficial de 2 de junho último, nos
fornece um bom exemplo da institucionalização do equívoco semântico
como técnica de governo.
No Estado de Direito, a lei é
votada pelo povo ou seus representantes legítimos e não pode ser
feita pelo Governo, porque ela é justamente uma garantia do povo
contra o arbítrio dos governantes. Mas a Medida Provisória 1984
foi feita pelo Governo, exatamente para garanti-lo contra o exercício
de direitos pelo povo.
Desde os remotos tempos da Grécia
clássica, a lei sempre foi entendida, em contraposição ao
decreto, como uma norma de caráter geral e impessoal, inaplicável
para solução de casos particulares. Mas a Medida Provisória
1984 acaba de ser modificada ‘ad hoc’, para resolver o caso do
Banespa.
O Poder Judiciário do Estado
moderno tem por função principal proteger o povo contra os atos
inconstitucionais e ilegais dos governantes. Mas a Medida Provisória
1984, baixada pelo Chefe do Executivo, restringe o poder judicial
de anular ou suspender os efeitos de atos do próprio Executivo
que a editou.
Os recursos judiciais não podem
anular os efeitos já produzidos das decisões recorridas. Mas a
Medida Provisória 1984, em sua última versão revista e piorada,
permite que, em grau de recurso, o Presidente do Tribunal anule
retroativamente os efeitos já produzidos da decisão recorrida.
????t???c??¾p>font face="Arial" size="2">A ação civil pública foi criada
entre nós para facilitar a proteção de direitos, que não
podem, razoavelmente, ser defendidos por iniciativa individual.
Mas a Medida Provisória 1984, na reedição de 2 de junho, proibe
a utilização dessa ação ‘para veicular pretensões que
envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de
natureza institucional cujos beneficiários podem ser
individualmente determinados’. Quem tem o mais superficial
conhecimento da realidade brasileira sabe que isto significa
deixar milhões de cidadãos sem condições de fazer valer
individualmente seus direitos em juízo.
Na Oceânia de Orwell, Big Brother
decide inventar uma língua nova, a NovLíngua, de modo a tornar
‘literalmente impossível o crime de pensamento, pois já não
haverá palavras para exprimi-lo’. Em nossa Oceânia tropical, o
governo não precisa chegar a esses extremos inventivos: basta
pedir ao Dr. Gilmar Ferreira Mendes que use os velhos e
consagrados termos técnicos do Direito com inversão de sentido.
A experiência indica que os tribunais superiores saberão ler, no
artigo 1º, parágrafo único da Constituição, que ‘todo poder
emana do Governo, que o exerce por meio de medidas provisórias’.
O que surpreende e choca nesse
grotesco episódio de legislação executiva em causa própria não
é a reiteração do abuso. Quanto a isto, infelizmente, já
estamos todos calejados. O que realmente dói é ler, abaixo do
texto desse estrupício normativo denominado Medida Provisória
1984, o nome honrado do atual Ministro da Justiça, cuja dedicação
à causa da democracia e dos direitos humanos nunca foi posta em dúvida."
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