
Direitos
Humanos e Estado
FÁBIO
KONDER COMPARATO
Desde as
primeiras formulações teóricas modernas, na Europa Ocidental do
século XVIII, os direitos humanos apareceram estreitamente
vinculados ao Estado. Mas uma vinculação, contraditoriamente,
positiva e negativa ao mesmo tempo.
A concepção
de direitos naturais do homem, anteriores e superiores à organização
institucional dos Poderes Públicos (ou seja, aquilo que se
convencionou denominar Estado), foi sem dúvida a grande arma de
combate contra a monarquia absoluta da época. Diante da concentração
de todos os poderes num só indivíduo, sustentou-se a necessidade
de se criarem instituições impessoais para o exercício do
mando: ou seja, a necessidade de se erigir um Estado, em lugar de
se entronizar um monarca. No entanto, a Revolução Francesa, ao
final do século, veio demonstrar que a concentração de poderes
incontroláveis, nesse organismo impessoal, acarretava abusos
iguais ou superiores aos do ancién régime. O Estado moderno
aparece assim, concomitantemente, desde o seu nascimento, como o
protetor e o principal adversário dos direitos humanos.
Essa contradição,
aliás, estava ínscia no famoso teorema de Rousseau, o qual
constitui, como disse ele: “O problema fundamental” do
Contrato social: “encontrar uma forma de associação que
defenda e proteja, de toda a força comum, a pessoa e os bens de
cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça
no entanto a si mesmo e continue tão livre quanto antes”.
Rousseau reconhecia que a sociedade política implica a necessária
submissão dos homens uns aos outros, e que isto representa a negação
de uma liberdade natural. Mas entendia que era possível encontrar
uma fórmula social que preservasse a superioridade dos direitos
inatos do homem, com a transformação de força em poder e da
liberdade em liberdade civil. Não escondeu, toda via, seu
ceticismo quanto à generalização desse tipo de associação política,
fundada no consenso geral. Pôr a lei acima da vontade dos homens,
dizia, equivale à quadratura do círculo em geometria.
Seja como for, a
concepção política de Rousseau fundava-se no postulado de que o
Estado só se legitima quando existe para proteger os direitos
naturais do homem. Qualquer desvio dessa finalidade última, por
menor que fosse, transformaria a livre associação em intolerável
opressão e justificaria a ruptura do vínculo associativo.
Ora, a humanidade
veio a conhecer, neste século, organizações estatais cuja
capacidade de opressão superou, de longe, tudo o que se havia
experimentado, até então, ao longo da história. Alguns desses
Estados absolutíssimos filiaram-se a uma ideologia que, nos seus
albores, manifestou as mais expressas reservas quanto ao poder
estatal e propugnou mesmo a supressão, pura e simples, do Estado.
Como sabido, todos os primeiros socialistas, inclusive o jovem
Marx, vaticinaram o desaparecimento do Estado com o advento
irrelutável do socialismo. Este, ao realizar plenamente a
liberdade e a igualdade de todos, sem divisões de classes,
dispensaria definitivamente a opressão estatal. O Marx provecto,
no entanto, seguido e aperfeiçoado por Lênin, pregou a instalação
da ditadura do proletariado, como condição indispensável da
passagem do socialismo para o comunismo. E o que isto significou,
como supressão efetiva das liberdades para todos os cidadãos,
trabalhadores ou não, a crônica dos últimos 70 anos tem
ilustrado com cores dramáticas.
Tudo isso ilumina
o caráter essencialmente ambíguo da relação entre Estado e
direitos humanos e justifica a divisão desta exposição em duas
partes, que se completam ao se contraporem: 1) a realização dos
direitos humanos pelo Estado e 2) o controle do abuso do poder
estatal como condição de proteção dos direitos humanos.
Ora, a humanidade
veio a conhecer, neste século, organizações estatais cuja
capacidade de opressão superou, de longe, tudo o que se havia
experimentado, até então, ao longo da história.
A realização dos direitos
humanos pelo Estado
Se a primeira
geração dos direitos humanos consistiu na definição e preservação
das liberdades fundamentais – de locomoção, de religião, de
pensamento e opinião, de docência e aprendizado, de correspondência,
de voto etc., a segunda, inaugurada no início deste século,
correspondeu à montagem de um mecanismo estatal que dispensasse,
a todos, certas prestações sociais consideradas básicas, como a
educação, a saúde, as oportunidades de trabalho, a moradia, o
transporte, a previdência social. A diferença específica entre
essas duas gerações de direitos humanos é de primeira intuição:
enquanto o respeito à liberdade supõe a não-interferência
estatal na esfera de vida própria do ser humano, seja
individualmente, seja em grupos sociais, a realização daquelas
prestações sociais implica, ao contrário, uma sistemática
intervenção do Estado nas relações privadas, limitando a
liberdade individual ou grupal. Assim as liberdades são,
basicamente, direitos humanos contra a ação estatal, ao passo
que a exigência de prestações sociais se dirige contra a omissão
do Estado.
De qualquer
forma, tanto num campo quanto no outro, os direitos fundamentais
da pessoa humana só se realizam graças à boa organização dos
Poderes Públicos.
Quanto às
liberdades
No que tange à
liberdades, como já foi assinalado, a proteção estatal passa
pela eficiente atuação do Poder Judiciário. Não farei o elenco
de todos os remédios judiciais aptos à defesa das liberdades,
mas vou deter-me nos principais e, ainda assim, de modo a chamar a
atenção unicamente sobre os aperfeiçoamentos jurídicos que se
impõem.
Comecemos pelo
primeiro, cronologicamente, dos remédios judiciais de defesa das
liberdades: o habeas corpus. Ele se destina, como se sabe, a
proteger a livre locomoção, a liberdade de ir e vir e, portanto,
a de não ser preso, exilado ou confinado, fora das hipóteses
delituosas ou dos casos excepcionais (estado de sítio), definidos
na Constituição e nas leis.
A respeito do
habeas corpus, gostaria de lembrar que se trata de um provimento
judicial criado no direito inglês, com as peculiaridades próprias
desse sistema jurídico. No direito anglo-saxônico, com efeito,
os tribunais do rei sempre ostentaram uma supremacia sobre todas
as demais autoridades, inclusive eclesiásticas, como manifestações
institucionais da própria soberania da Coroa. O habeas corpus faz
parte do gênero dos writs ou ordens judiciais que não podem ser
descumpridas, sob pena do cometimento do delito gravíssimo de
contempt of court, equivalente ao crime de lesa-majestade.
Ora, a
especialidade do habeas corpus, na classe do writs, parece ter se
perdido, ou não se ter jamais realizado, fora do ambiente
anglo-saxônico. Na tradição inglesa, a ordem judicial, que
consiste na imediata apresentação do detido ao magistrado, a fim
de que este possa se informar, direta e pessoalmente, da existência
individual do paciente.
Entre nós, no
entanto, essa providência utilíssima foi desde o início
substituída pelo pedido de informações judiciais à autoridade
coatora. Não é difícil imaginar o que significa isso, em termos
de demora na solução judicial, de possibilidade de ocultação
do tratamento desumano infligido ao paciente nesse meio tempo, ou
mesmo de transferência abusiva do preso de uma autoridade para
outra, para nos darmos conta de como pode ser frustrada, na prática,
essa garantia judiciária da liberdade de locomoção. Pense-se,
por exemplo, no caso mais banal de pedido de habeas corpus numa
imensa comarca como São Paulo: a necessidade de distribuição do
feito entre as diferentes varas competentes, a autuação do
pedido em cartório, a expedição do mandado judicial de informações
à autoridade coatora, o cumprimento do mandado pelo oficial de
justiça, a redação das informações pela autoridade que detém
o paciente, a entrega dessas informações em cartório e,
finalmente, a sua apreciação pelo juiz. Tudo isso, antes que
possa ser prestado alívio à pessoa privada de sua liberdade e,
em não raros casos, sujeita à tortura ou mesmo a ser morta em
detenção.
Tal situação é
tanto mais aberrante, quando se pensa que em matéria de mandado
de segurança as medidas liminares são normalmente concedidas sem
audiência de autoridade coatora. Seria a liberdade de ir e vir
menos importante, como valor jurídico, que as demais liberdades e
direitos protegidos pelo mandado de segurança?
Não vejo,
portanto, como se possa manter inalterado o procedimento do habeas
corpus, entre nós, sem abandonarmos toda esperança de evitar a
institucionalização de detenções arbitrárias, sobretudo dos
mais pobres e carentes, por todo este imenso país.
No tocante ao
mandado de segurança, que é outra garantia fundamental das
liberdades, o necessário aperfeiçoamento deveria ser feito em
outra direção. Pelo mandado de segurança, podem ser defendidos
os chamados direitos líquidos e certos, distintos da liberdade de
locomoção, contra atos ou omissões abusivas do Poder Público.
São considerados líquidos e certos os direitos cujo
reconhecimento independe de uma instituição probatória no
processo (testemunhas ou vistorias, por exemplo). O mandado de
segurança tem sido sempre, no entanto, uma ação judicial movida
pelo próprio titular do direito violado. A lei reconhece a
legitimidade de mandado de segurança impetrado por alguém, em
nome próprio, no interesse alheio. Assim, se o ato abusivo do
Poder Público atingir toda uma categoria de pessoas – um
conjunto de funcionários públicos, por exemplo – cada indivíduo
deve constituir advogado e figurar no processo, explicitamente,
como autor.
Essa condição
de legitimidade processual tornou-se indefensável numa sociedade
de massas, em que a ação das autoridades estatais costuma
produzir efeitos sobre grupos e categorias sociais, e não apenas
sobre determinados administrados, isoladamente considerados. Daí
o movimento, largamente difundido entre os especialistas, para a
criação de um mandado de segurança coletivo, que poderia
funcionar tal como a class action do direito norte-americano (o
integrante de uma categoria social age judicialmente em prol de
todos os que a integram), ou então segundo a estrutura das ações
populares, isto é, qualquer do povo atua em juízo no interesse
coletivo. Uma medida desse tipo seria entre nós da maior importância
para a defesa, por exemplo, dos direitos e liberdades das nações
indígenas, que vivem dispersas em nosso território.
O Estado
contemporâneo, no entanto, não se limitou a atender contra a
liberdade física e a esfera jurídica, sigamos assim, exterior da
pessoa humana. Foi mais além, ao organizar a invasão sistemática
da vida íntima e a manipulação da imagem pessoal, com apoio nas
técnicas eletrônicas mais avançadas. Contra isso, os remédios
tradicionais do habeas corpus e do mandado de segurança
revelaram-se inadequados. É que ambos pressupõe uma violação
patente, isto é, pública e aberta das liberdades e direitos
subjetivos; ao passo que aquelas práticas de invasão da
intimidade e da manipulação da imagem pessoal se desenvolvem no
segredo dos arquivos e das fitas magnéticas dos computadores.
A esse respeito,
tive oportunidade de propor, em anteprojeto de Constituição de
fevereiro de 1986, duas medidas, a meu ver fundamentais, de proteção
da dignidade da pessoa humana. De um lado, a proibição de o
Estado operar serviços de informação sobre a vida particular
das pessoas, exceto na esfera estritamente policial ou militar,
determinando-se portanto a imediata dissolução do Serviço
Nacional de Informações. De outro lado, o direito reconhecido de
qualquer pessoa de tomar conhecimento do que constar a seu
respeito nos registros oficiais, ainda que policiais ou militares,
e de exigir a retificação de dados incorretos ou inverídicos.
É o que passou a ser denominado entre nós, com o acolhimento da
sugestão de um jurista estrangeiro, habeas data.
Quanto aos
direitos a prestações sociais pelo Estado
Neste capítulo,
está em causa não a liberdade da pessoa humana, mas a
fundamental igualdade de todos os homens. A função do Estado já
não é de abstenção, mas sim de transformação social, pela
eliminação progressiva das desigualdades. Função ativa,
portanto, de decidida interferência no jogo dos interesses
privados.
Estabelecem-se,
nos últimos tempos, um razoável consenso a respeito da
necessidade de igualdade básica, de todos os homens, quanto a
determinadas situações sociais concernentes à educação, à saúde,
à habitação, ao transporte coletivo, ao trabalho e à previdência
social. Ainda não se firmou, universalmente, a consciência do
direito essencial de todos à informação e à comunicação
social, mas o movimento em prol dessa reivindicação fundamental
ganha corpo em vários países.
É preciso
reconhecer que, em sociedades subdesenvolvidas, onde as condições
de desigualdade tendem a acelerar-se, provocando a desintegração
social pelo aviltamento crescente das massas, o estabelecimento de
mecanismos aptos a realizar essas prestações sociais configura a
instituição não propriamente do estado do bem-estar, característico
das sociedades desenvolvidas, mas simplesmente do estado da
dignidade social.
Esses mecanismos
jurídicos de realização dos direitos humanos a prestações
sociais podem ser classificados, de modo um tanto impreciso mas
significativo, em coletivos e individuais.
A condição
maior para a transformação da sociedade por via da ação
estatal é a instituição de um planejamento global e vinculante.
O Estado brasileiro encontra-se, hoje, em momento histórico
decisivo: ou seremos capazes de transformá-los, instituindo
poderes incumbidos de dirigir, de modo racional e democrático, as
transformações sociais, ou sucumbiremos na desintegração
social, da que a presente crise aguda de anomia (desrespeito
generalizado às normas de vida em comum) é o sintoma mais
alarmante. Sem planejamento, atribuído como função proveniente
do Estado a órgãos independentes do Congresso e do Executivo,
absolutamente nada será feito de duradouro e profundo em matéria
de desenvolvimento neste país.
Isto posto e
reafirmado, diante da insensatez da classe política e da incompetência
arrogante do meio universitário, é preciso dizer que a realização
dos direitos humanos a essas prestações sociais fundamentais
poderá ser reforçada com a instituição de meios judiciários
adequados. Nesse particular, tirando a ação popular, ressente-se
o nosso sistema jurídico da inexistência de ações judiciais de
defesa individual dos interesses coletivos. Nos Estados Unidos,
por exemplo, tem sido muito útil o recurso às chamadas class
actions, pelas quais o indivíduo, membro de um grupo social
qualquer, tem qualidade para agir judicialmente na defesa dos
interesses grupais, esteja ou não o grupo organizado como pessoa
jurídica. Enfim, a problemática aqui é idêntica àquela a que
me referi há pouco, a respeito da mandado de segurança.
Por outro lado,
ressentimo-nos também da falta de provimentos judiciais específicos
para impor ao Estado o cumprimento de deveres positivos. Em geral,
os remédios jurídicos utilizáveis – como mandado de segurança
e a ação popular – objetivam anular ou desconstituir atos
praticados por agentes estaduais. Ainda nos Estados Unidos, é das
mais largas a utilização da injunction, pela qual o judiciário
manda à Administração Pública que pratique certo ato ou
desenvolva certa atividade, sob as penas de lei.
O controle do abuso de poder
estatal
Até
aqui, vimos os meios e os modos de realização dos direitos
humanos por via do aparelho estatal. Observamos, então, que se o
poder do Estado serve, utilmente, para a defesa da pessoa humana,
notadamente pela ação do judiciário, não é menos exato que a
violação desses direitos tem sido praticada, largamente, também
por agentes estatais. De onde a necessidade de estabelecer
mecanismos eficazes de controle do poder do Estado, em todos os níveis.
Essa foi a idéia
central de outro grande pensador francês, Montesquieu. Para ele,
o único antídoto eficaz ao abuso do poder é a instituição de
contrapoderes adequados. Só o poder controla o poder, não a
moral nem o direito. Mas é evidente a necessidade moral, isto é,
jurídica; como não é menos evidente a necessidade moral,
assinalada também por Montesquieu, de se desenvolver no povo a
virtude, ou seja, o espírito de comunhão social. O que
Montesquieu quis sublinhar, no entanto, é que a simples regra jurídica,
despida de poder, é ineficaz para impedir o abuso. E isto, tanto
no plano interno, quanto no plano internacional.
Ora, esses
contrapoderes, suscetíveis de deter o abuso – isto é, capazes
de evitar que o poder se transforme em força bruta -, são de vários
tipos. O próprio Montesquieu apontou a diferença importante
entre o que ele chamava faculdade de estatuir e a faculdade de
impedir. É justamente da sábia combinação desses diferentes
tipos de poder – e não de uma arquitetura triangular entre
Executivo, Legislativo e Judiciário, considerados como trindade
natural e imutável – que se podem extrair todas as esplêndidas
virtualidades da teoria da separação de poderes. A faculdade de
estatuir corresponde ao poder de ditar normas ou de dar ordens. A
faculdade de impedir, ao poder de aprovar ou vetar normas ou
ordens dadas.
Vejamos então,
separadamente, os controles internos e os controles internacionais
do abuso de poder estatal.
No plano interno
Para facilidade
da exposição, tomemos os três órgãos ou Poderes da teoria clássica,
tal como eles aparecem constitucionalmente estruturados: o
Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
O Executivo é
sempre apontado como o grande fator de abuso, sem dúvida, porque
ele, muito mais do que os outros órgãos do Estado, é dotado de
poder ativo, ou seja, das prerrogativas constitucionais de
impelir, comandar e tomar as iniciativas. Justamente por isso,
convém assinalar o fato de que os grandes abusos do Executivo não
são apenas os comissivos, como prender, comandar ou destruir,
contra a lei e a razão jurídica. Na civilização contemporânea,
em que as exigências de igualdade e bem-estar social tendem à
universalidade, as omissões estatais tornam-se verdadeiros crimes
coletivos. A falta de escolas, de saúde pública, de controle
ecológico, por exemplo, aparecem sempre mais como violações
caracterizadas dos direitos humanos.
Ora, em relação
a esses abusos omissivos, o direito tradicional é singularmente
carente de remédios adequados. No Brasil, foi só recentemente,
isto é, em 1985, que se editou a primeira lei atribuidora de um
direito de ação pública, ao Ministério Público e às associações
de consumidores, para suprir a falta de medidas governamentais
adequadas na proteção ao consumidor. Ainda assim, esse
suprimento das omissões do Governo não é feito com a ação
propriamente dita, que visa à reparação de danos, mas com as
medidas cautelares, que são provimentos judiciais preliminares ao
processo principal. De qualquer modo, foi graças a esse novo remédio
judicial, consubstanciado na Lei nº 7.347, que um competente e
denodado representante do Ministério Público paulista logrou
obter do Judiciário, malgrado a escandalosa resistência do
Governo federal, a apreensão, nos estabelecimentos comerciais e
centros distribuidores, do leite irradiado pela catástrofe de
Chernobyl e que havia sido criminosamente importado da Europa.
Uma lição a
tirar-se do episódio é a de que, se o Ministério Público pôde
agir no caso, foi graças ao fato de que o órgão não pertencia
à unidade da Federação responsável pelo abuso. Na verdade, o
verdadeiro fiscal do Poder deve ser sempre o cidadão, ou o
conjunto dos cidadãos organizados em associações. Sob esse
aspecto, a Lei nº 7.347 representa um marco de progresso, na história
da defesa dos direitos humanos entre nós, ao atribuir às associações
de consumidores a legitimidade para agir em juízo em defesa do
interesse geral dos consumidores e não apenas do de seus membros
associados.
No tocante aos
abusos comissivos, essa legitimidade dos cidadão para propor ações
judiciais no interesse coletivo já existe, felizmente, há muito.
É a ação popular, pela qual qualquer eleitor pode pedir em juízo
o desfazimento de atos da Administração Pública lesivos ao Erário,
ou ao patrimônio artístico e cultural do país.
O controle mais
enérgico dos abusos governamentais, porém realiza-se por meio de
ações penais. No entanto, a persistência da atribuição, ao
Ministério Público, do monopólio da persecução criminal tem
sido, entre nós, um fator de larga impunidade dos agentes públicos.
É que, apesar de alguns progressos institucionais, o Ministério
Público continua submetido à suserania do Executivo, sendo
portanto praticamente impossível que o vassalo controle
adequadamente os atos de seu senhor. É por isso que incluí,
entre as medidas inovadoras constantes de meu anteprojeto de
Constituição, a ação penal privada subsidiária, como direito
subjetivo público de qualquer pessoa, nas hipóteses em que o
Ministério Público deixa de oferecer denúncia contra os agentes
públicos (chefe do Poder Executivo, Ministros ou Secretários de
Estado, por exemplo). Essa medida, completada pela definição
legal do crime genérico de violação dos direitos humanos
inscritos na Constituição – proposta também incluída em meu
anteprojeto -, reforçaria sobremaneira a proteção da pessoa
humana contra os abusos governamentais.
No que se refere,
agora, aos abusos do Poder Legislativo contra os direitos humanos,
deve-se assinalar que eles se cingem à sua função precípua,
que é a votação de leis. O controle das leis abusivas faz-se
pela sua referência às normas e princípios constitucionais.
Nesse particular, além do veto oposto pelo chefe do Executivo,
caracterizados daquele poder impediente de que falava Montesquieu,
há também a ação judicial de declaração de
inconstitucionalidade da lei. O direito brasileiro, a par da
declaração de inconstitucionalidade incidente em qualquer
processo judicial, criou uma ação direta desse tipo, proposta
por certas autoridades públicas e também por qualquer cidadão.
Mas a jurisprudência do Suprema Tribunal Federal interpretou essa
lei no sentido de atribuir, ao Procurador Geral da República,
chefe do Ministério Público Federal, o arbítrio de dar
seguimento ou não a essa ação direta, transformando-a,
portanto, em mera iniciativa particular, não vinculante para o
Ministério Público. A correção desse defeito, no texto
constitucional, é uma das medidas saneadoras que contam com o
mais largo consenso, atualmente.
Até aqui,
examinamos formas de controle de abuso de poder estatal por via
judiciária. Tem-se, pois, a impressão de que a defesa dos
direitos humanos repousa, em última instância, no poder dos
juizes de dizer o direito de modo definitivo e no geral
acatamento, pelos outros órgãos estatais, das decisões
proferidas pelos magistrados. Mas se estes últimos prevaricarem,
por ação ou omissão, na correção dos abusos ou desvios de
poder, quem atuará contra os juizes? É a indagação capital,
formulada pelos romanos, com o seu agudo senso da coisa pública:
Qui custodiet custodes? Quem controlará o controlador?
É preciso
reconhecer que, na teoria constitucional clássica, os magistrados
são os grandes irresponsáveis, no conjunto dos agentes estatais.
Essa irresponsabilidade constitui uma falha grave na arquitetura
do chamado estado de direito, no qual todos os que exercem o poder
público são sujeitos ao império impessoal da lei. Se a vida, a
liberdade e a honra de cada um de nós dependem de uma ordem de
habeas corpus ou da concessão de um mandado de segurança, e se o
magistrado encarregado de proferir essa decisão salvadora
descumpre o seu dever, por desídia, corrupção, ou
acumpliciamento com os fatores do abuso, quem chamará o
magistrado prevaricador à ordem, punindo-o se necessário? O próprio
Poder Judiciário. Aqui, o princípio da separação de Poderes não
encontra aplicação e esse defeito substancial é capaz de
comprometer a eficácia de todas as garantias constitucionais.
No direito
brasileiro vigente, os casos de responsabilidade por atos de
magistrados estão regulados no Código de Processo Civil, no Código
de Processo Penal e na Lei Orgânica da Magistratura. Mas a aplicação
das normas daqueles Códigos é estritamente nenhuma e, no caso da
Lei Orgânica da Magistratura, muito deficiente.
O art. 639 do Código
de Processamento Penal prevê a responsabilidade do Estado e, por
via regressa, dos juizes, no caso de decisões dolosas contra os
jurisdicionados. No Código de Processo Civil (art. 133),
regula-se a responsabilidade direta dos juizes por perdas e danos,
no caso de descumprimento de normas processuais, ou de decisões
proferidas de má-fé.
Quanto à Lei Orgânica
da Magistratura, ferozmente combatida pelos magistrados – o que
explica, sem dúvida, a sua deficiente aplicação -, prevê ela
seis modalidades escalonadas de punição: advertência, censura,
remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria e demissão.
Em meu
anteprojeto de Constituição, ao invés de criar um órgão
suprajudicial para o controle dos magistrados, preferi atribuir
poderes ampliados de interpelação ao Poder Legislativo, sobre
assuntos administrativos do Poder Judiciário, e, sobretudo, dar a
qualquer do povo, por via da ação penal privada subsidiária, a
legitimidade para propor ações criminais contra juizes e membros
de tribunais superiores, quando o Ministério Público deixa de
oferecer denúncia.
Seja como for,
essa falha no anel final que fecha o sistema de poderes do Estado
está a nos indicar, com inafastável clareza, a necessidade de se
completar o conjunto das garantias dos direitos humanos mediante
instituições e poderes não-estatais. Essa função garantidora
cabe nos dias atuais, inquestionavelmente, aos órgãos de
comunicação de massa: a imprensa, o rádio e a televisão. Eis
por que pareceu-me indispensável regular esses órgãos, que
exercem uma autêntica função pública, na própria Constituição,
excluindo-os tanto da dominação estatal, quanto da exploração
capitalista. Os veículos de comunicação de massa devem ser os
faróis a iluminar, incessantemente, a ação do Estado, em todos
os setores. Eles não podem, pois, ser manejados pelo próprio
Estado, ou por proprietários privados, cujas concessões de
instalação empresarial dependem do Governo ou do Congresso. Não
é de se admitir, por conseguinte, que a classe política reagiu
negativamente a essa proposta.
No plano
internacional
A proteção dos
direitos humanos não pode, porém, cingir-se ao território onde
cada Estado atua. A época contemporânea assistiu ao surgimento
de aparelhos estatais, dotados de poderes incomensuravelmente
maiores do que os detidos por qualquer organização política em
épocas anteriores. Esse reforço descomunal de poderes, acoplado
à teoria da soberania absoluta do Estado, criou situações de
esmagamento completo da pessoa humana, como nas trágicas experiências
nazista e stalinista deste século. Impõe-se, portanto, um
controle internacional sobre a ação de cada Estado, no que tange
ao respeito aos direitos humanos.
Ora, a situação
do direito internacional vigente está longe de ser satisfatória,
nesse particular (como em vários outros, aliás). O princípio de
não-ingerência dos Estados, ou de organismos internacionais, nos
assuntos internos de outros Estados, inscrito no art. 2º, § 7º,
da Carta das Nações Unidas, tem servido de pretexto para se
evitar a aplicação de sanções internacionais aos Estados para
se evitar a aplicação de sanções internacionais aos Estados
que violam sistematicamente os direitos da pessoa humana.
Trata-se, obviamente, de um pretexto, uma vez que, a toda evidência,
a violação de direitos humanos não é assunto de competência
interna dos Estados, mas interessa, antes, a toda a humanidade.
A aceitação dos
indivíduos como sujeitos do direito das gentes, com legitimidade
para recorrer diretamente às instâncias internacionais, tem sido
parcimoniosamente admitida. Ela existe, no âmbito da Organização
dos Estados Americanos, pelo disposto no art. 44 da Convenção de
São José de Costa Rica, que criou a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. Mas essa medida, por si só, tem sido
perfeitamente inócua, dado que há sempre a possibilidade de os
Estados recusarem a jurisdição internacional.
Creio que o
progresso jurídico, nessa matéria, adviria da adoção de três
providências. Em primeiro lugar, a geral aceitação da
legitimidade da queixa individual junto aos tribunais
internacionais, no caso de ausência de mecanismos adequados de
produção dos direitos humanos no plano interno dos Estados. Em
segundo lugar, a submissão obrigatória de todos os
Estados-membros das Nações Unidas, ou de organismos regionais,
à jurisdição internacional. Em terceiro lugar, o
estabelecimento de sanções adequadas, no plano internacional,
para a violação estatal dos direitos humanos. Penso, nesse
particular, em duas espécies de sanções. De um lado, a suspensão
do direito do voto do Estado-réu, nos organismos internacionais a
que pertence. De outro lado, na hipótese de não-cooperação do
Estado com o tribunal internacional (criando, por exemplo, obstáculos
às investigações in loco, ou recusando-se a apresentar os
agentes do Poder Público responsáveis por abusos), no
proferimento de uma sentença de pronúncia, pela qual se declara
a existência de crime contra os direitos humanos e de indícios
veementes de autoria, na pessoa de agentes públicos designados.
Proferida essa sentença, qualquer Estado teria competência para
prender os indiciados que se encontrarem em seu território; ainda
que transitoriamente, submetendo-os a julgamento segundo as leis
desse Estado.
Ao cabo desta
exposição, penso ter deixado claro que a proteção dos direitos
humanos é uma questão de organização de poderes na sociedade.
É claro que, nessa organização, os poderes do Estado (os
chamados Poderes Públicos) assumem papel decisivo. Mas a experiência
histórica indica que uma sociedade bem organizada deve sempre
manter uma boa cópia de poderes nas mãos dos próprios cidadãos,
como o necessário corretivo aos desvios e abusos que acabam
sempre por se instalar na organização estatal. Afinal, superada
a polêmica entre os adeptos da democracia direta e os da
democracia representativa, é preciso convir na necessidade de
cada um desses sistemas completar e aperfeiçoar o outro. Da sábia
montagem de mecanismos de fertilização recíproca, entre esses
duas técnicas políticas, dependerá a sobrevivência do homem,
em sua eminente dignidade de pessoa.
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