
FUNDAMENTO DOS
DIREITOS HUMANOS
Fábio
Konder Comparato**
Na
“era dos extremos” deste curto século XX, o tema dos direitos
humanos afirmou-se em todo o mundo sob a marca de profundas
contradições. De um lado, logrou-se cumprir a promessa,
anunciada pelos revolucionários franceses de 1789, de
universalização da idéia do ser humano como sujeito de direitos
anteriores e superiores a toda organização estatal. De outro
lado, porém, a humanidade sofreu, com o surgimento dos Estados
totalitários, de inspiração leiga ou religiosa, o mais formidável
empreendimento de supressão planejada e sistemática dos direitos
do homem, de toda a evolução histórica. De um lado, o Estado do
Bem-Estar Social do segundo pós-guerra pareceu concretizar,
definitivamente, o ideal socialista de uma igualdade básica de
contradições de vida para todos os homens. De outro lado, no
entanto, a vaga neoliberal deste fim de século demonstrou quão
preccário é o princípio da solidariedade social, base dos
chamados direitos humanos da Segunda geração, diante do
ressurgimento universal dos ideais individualistas.
Tudo
isso está a indicar a importância de se retomar, no momento histórico
atual, a reflexão sobre o fundamento ou razão de ser dos
direitos humanos.
1. A noção
filosófica de fundamento e sua importância em matéria de
direitos humanos.
Na
linguagem filosófica clássica, não se falava em fundamento
e sim em princípio.
Em conhecida passagem de sua Metafísica,
Aristóteles, exercitando o gênio analítico e classificatório
que o celebrou, atribui a “arquê”
várias acepções. Em primeiro lugar, o sentido de começo de uma
linha ou de uma estrada, ou então, do ponto de partida de um
movimento físico ou intelectual (o3 ponto de partida de uma ciência,
por exemplo). É também considerado princípio, segundo Aristóteles,
o elemento primeiro e imanente do futuro, ou de
algo que evolui ou se desenvolve (as fundações de uma
casa, o coração ou a cabeça dos animais). O filósofo lembra,
igualmente, que se fala de princípio para designar a causa
primitiva e não imanente dca geração, ou de uma ação (os pais
em relação aos filhos, o insulto em relação ao combate).
Assinala, ainda, que a palavra pode ser usada para indicar a
pessoa, cuja vontade racional é causa de movimento ou de
transformação, como, por exemplo, os governantes no Estado, ou o
regime político de modo geral. Ademais, considerou princípio,
numa demonstração lógica, as premissas em relação à conclusão.
Arrematando, unificou todas essas acepções da palavra afirmando
que princípio é sempre “a fonte de onde derivam o ser, a geração,
ou o conhecimento”; ou seja, a condição primeira da existência
de algo.
Como
se vê, a noção de arquê, no pensamento aristotélico, pouco
tinha a ver com a ética. É a partir de K8ant que ela co3meça a
ser empregada também nesse campo, sob a acepção de razão
justificativa de nossas ações.
O
desenvolvimento da noção de princípio para fundamento, no
pensamento kantiano tem origem num raciocínio tipicamente jurídico,
apresentado na Crítica e
Razão Pura, em torno da noção de dedução transcendental (tranzendent
Deduktion). Lembra Kant que os juristas, quando tratam de autorizações
ou pretensões de agir, distinguem, em cada caso, entre a questão
jurídica (quid iuris) e a questão de fato (quid facti),
denominando a demonstração da quaestio iuris uma dedução.
Assim, enquanto em questões de fato o profissional do direito
procura provas, em matéria de direito ele cuida de cencontrar e
demonstrar as razões justificativas, que formam a legitimidade (Rechtsmässigkeit)
da conclusão.
Em
sua introdução geral3 à filosofia ética, significativamente
denominada Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes, a dedução
transcendental no campo ético tinha claramente a acepção de razão
justificativa, e visa a encontrar, em última instância, o
“supremo princípio da moralidade” (das oberrste Prinzip der
Moralität), o qual não é outro senão o que Kant denominou imperativo
categórico, isto é, uma “lei prática incondicional” ou
absoluta, que serve de fundamento último para todas as ações
humanas.
Ora,
enquanto a “dedução transcendental”, no campo da razão
sensitiva pura, diz respeito à possibilidade de um conhecimento a
priori de objetos, em matéria de razão prática ela visa a
encontrar a justificativa (Rechtfertigung) da validade objetiva e
geral de um fundamento determinante (Bestimmungsgrund) da vontade,
ou, em outras palavras, uma razão justificativa para a lei moral,
semelhante a causalidade do campo da natureza. Esse fundamento último
da moralidade só pode ser a liberdade.
Ao
concluir sua reconstrução da filosofia ética, com A Religião
nos Limites da Simples Razão, a noção de princípio ético, no
sentido de razão justificativa, foi inteiramente substituída
cpela de fundamento (Grund). Interrogando-se, assim, sobre a
bondade ou a maldade da natureza humana, Kant afirma que a
resposta a essa indagação só pode ser encontrada num
“primeiro fundamento” da aceitação pelo homem do bem ou do
mal, sob a forma de máximas (subjetivas) de comportamento. Esse
primeiro fundamento, não podendo ser um fato apreciável pela
experiência, deve ser tido como inato, no sentido de ser posto
como algo que antecede a todo o uso da liberdade.
Temos,
pois, que enquanto em Aristóteles princípio ou fundamento
significa essencialmente a fonte ou origem de algo, na filosofia
ética de Kant passa a significar razão justificativa.
Pois
bem, se analisarmos, ainda que superficialmente, o direito
positivo brasileiro, verificaremos que o termo fundamento é
empregado sempre com o sentido nuclear de razão justificativa ou
de fonte legitimadora.
A
Constituição Federal de 1988, por exemplo, abre-se com a declaração
de que “a República Federativa do Brasil, (...), tem como
fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a
dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa; V – o pluralismo político” (art. 1º).
Indicam-se nessa norma, indubitavelmente, as fontes legitimadoras
de nossa organização política, isto é, a razão de ser de toda
a organização estatal. Essas razões justificativasc da República
brasileira são explicitadas, no art. 3º, sob a forma de
“objetivos fundamentais”: “I – construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento
nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir 3as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação”.
Já
no campo da teoria gera2l do direito, a noção de fundamento diz
respeito à validade dos normas jurídicas e à fonte da irradiação
dos efeitos delas decorrentes. Em outras palavras: - Por que a
norma vale e deve ser cumprida?
É
unanimemente aceita, hoje, a idéia de que o ordenamento jurídico
interno fora um sistema hierarquizado de normas, tendo por
fundamento a Constituição, a qual se funda, por sua vez, na
chamado poder constituinte.
Mas,
levando a indagação até o fim, qual o fundamento último do
poder constituinte? Ainda estaremos, aí, no campo do direito?
Não
parece haver dúvida de3 que o poder constituinte encontra seu
fundamento último, ou num fato – isto é, a força dominadora
de um indivíduo, de uma família, de um estamento, de um partido
político, ou de uma classe social -, ou então num princípio ético,
c isto é, numa razão justificativa de conduta, que transcende a
autoridade dos constituintes. Ora, como bem observaram os
pensadores políticos, a organização social baseada
exclusivamente na força não tem condições de subsistir, pois
carece de uma justificativa ética, que tranquilize a consciência
social. Na frase lapidar de Rousseau, “o forte não é nunca
bastante forte para ser sempre o senhor, se não faz da sua força
um direito e da obediência um dever”. Resta, portant3o, o princípio
ético.
Até
a Idade Moderna, a justificativa ética que servia de fundamento
ao direito vigente apresentava-se sempre como transcendente: a
divindade, segundo uns, ou a natureza, entendida como princípio
fundamental de todos os seres, segundo outros.
Na
filosofia grega clássica, a grande explicação teista do homem e
do mundo se encontra na última fase do pensamento de Platão.
No
diálogo As Leis (715 b
– 716 b), por exemplo, figurou ele o momento decisivo da fundação
da nova cidade pelo diálogo seguinte:
“O
ESTRANGEIRO ATENIENSE: Depois disso, que diremos então? Não
devemos supor nossos colonos reunindo-se em nossa presença? E não
seria o caso de eles prosseguirem nesse propósito até o fim?
c CLÍNIAS:
Por que não, com efeito?
ATEN:
‘Cidadãos’ (eis o que deveríamos dizer-lhes), ‘a
Divindade, que, segundo antiga tradição, tem em suas mãos o
começo, o meio e o fim de tudo o que existe, realiza, pela via
reta da natureza, a completa revolução. Ela é sempre seguida de
perto pela Justiça, que vinga a lei divina ao castigar os que
dela se separam: a Justiça, cujos passos segue humildemente,
ajuizadamente, aquele que quer levar uma vida feliz, enquanto o
outro, exaltado pelo orgulho, excitado pelas riquezas ou pelas
honrarias, ou ainda pela beleza de suas formas ao mesmo tempo que
pela inexperiência de sua juventude e pelo desatino, inflama sua
alma com o fogo da desmedida (hubris), convencido de que não
precisa de um chefe, de um guia, e que ele possui tudo o que é
necessário para conduzir seus semelhantes; um homem desses é
abandonado pela Divindade, ele fica só consigo mesmo. Mas, nesse
abandono, ele convoca outros homens, ele avança insensatamente,
semeia em todo lugar a desordem e a confusão, e, enquanto muitos
imaginam e ele é alguém importante, ao cabo no entanto de um
tempo não muito longo ele sofre, sob a força do braço vingador
da Justiça, uma pena irrecorrivel: ele se arruina completamente
e, juntamente com ele, sua própria casa e a Cidade a que
pertence. Ora, diante de uma situação dessas, que deve, ou não,
fazer ou pensar o homem sábio?
“CLIN.:
Ao menos isto fica claro: é que todo homem deve se dizer em
pensamento que lhe cerrará fileiras com aqueles que cortejam a
Divindade!”.
Sem
dúvida, o grande exemplo clássico de justificação ética da
conduta humana, sem o recurso à divindade, encon3tra-se na
filosofia estóica. A moral dos estóicos, que muito influenciou
os juristas roman3os, tinha como princípio supremo, “viver
segundo a natureza” (Zenão). Na Idade Médi2a, o colossal esforço
tomista de conciliação da razão humana com a revelação
divina, da sabedoria clássica com a iluminação cristã, deu à
lei natural uma posição eminente. Ela seria “a participação
da lei eterna pela criatura racional” (patet quod lex naturalis
nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali
creatura).
A
Idade Moderna, que irrompe no campo ético-religioso com a
“crise da consciência européia” do séc. XVII, assistiu ao
esfacelamento dos fundamentos divinos da ética, na cultura
ocidental, de formação judaico-cristã. É certo que a atual
ascensão das tendências fndamentalistas representa uma reação
importante contra o laicismo moral. Mas, ao mesmo tempo, a criação
de uma rede universal de informações, graças ao progresso das
telecomunicações, ao oferecer o espetáculo de uma
impressionante variedade de costumes, crenças e religiões, torna
difícil a aceitação de uma única revelação divina como
fundamento absoluto da ética.
c Seja
como for, já no séc. XVII, sem dúvida como reação ao escândalo
das guerras de religião (católicos v. protestantes), iniciou-se
na Europa Ocidental a pesquisa de um fundamento exclusivamente
terreno para a validade do direito,. Essa pesquisa orientou-se em
dois sentidos: de um lado, a ressurreição da moral naturalista
estóica e a construção do chamado jusnaturalismo (as leis
positivas, em todos os países, têm a sua validade fundada no
direito natural, sempre igual a si mesmo); de outro lado, o
antinaturalismo ou voluntarismo de Hobbes, Locke e Rousseau,
segundo o qual a sociedade política funda-se na necessidade de
proteção do homem contra os riscos de uma vida segundo o
“estado da natureza”, onde prevalece a insegurança máxima.
Esse
antinaturalismo é a matriz do positivismo jurídico, que se
tornou concepção predominante a partir do séc. XIX. Segundo a
teoria positivista, o fundamento do direito não é transcendental
ao homem e à sociedade, mas se encontra no pressuposto lógico )
o “contrato social”, ou a norma fundamental) de que as leis são
válidas e devem ser obedecidas, quando forem editadas segundo um
processo regular (isto é, organizado por regras aceitas pela
comunidade) e 3pela autoridade competente, legitimada de acordo
com princípios também anteriormente estabelecidos e aceitos. É
a explicação formal da validade do direito.
A
c grande falha teórica do positivismo, porém, como as experiências
totalitárias do século XX cruamente demonstraram, é a sua
incapacidade (ou formal recusa) em encontrar um fundamento ou razão
justificativa para o direito, sem recair em mera tautologia. O
fundamento ou princípio de algo existe sempre fora dele, com sua
causa transcendente, não podendo pois nunca, sob aspecto lógico
e ontológico, ser confundido com um de seus elementos
componentes? Assim, o fundamento do poder constituinte, ou a
legitimidade da criação de um novo Estado, sobretudo após uma
revolução vitoriosa, não se encontram em si mesmos, mas numa
causa que os transcende. Analogicamente, na ausência de uma razão
justificativa exterior e superior ao sistema jurídico, um regime
de terror, imposto por autoridades estatais investidas segundo as
regras constitucionais vigentes, e que exercem seus poderes dentro
da esfera formal de sua competência, não encontra outra razão
justificativa ética senão a sua própria subsistência.
Ora,
é justamente aí que se põe, de forma aguda, a questão do
fundamento dos direitos humanos, pois a sua validade deve
assentar-se em algo mais profundo e permanente que a ordenação
estata3l, ainda que esta se baseie numa Constituição quanto mais
louco ou acelerado o Estado.
Tudo
isso significa, a rigor, que a afirmação de autênticos direitos
humanos é incompatível com a concepção positivista do direito.
O positivismo contenta-se com a validade formacl das normas jurídicas,
quando todo o problema situa-se numa esfera mais profunda,
correspondente ao valor ético
do direito.
Em
conferência pronunciada em 1967, por ocasião de um congresso
sobre o fundamento dos direitos humanos, Norberto Bobbio sustenta que toda pesquisa sobre um fundamento
absoluto dos direitos humanos é, enquanto tal, infundada. Para
corroborar essa opinião, apresenta três argumentos principais:
em primeiro lugar, a expressão “direitos humanos” é muito
vaga e mesmo indefinível; em segundo lugar, trata-se de uma
categoria variável conforme as épocas históricas, ademais, além
de indefinível e variável, os direitos humanos formam uma
categoria heterogênea.
A
argumentação é, em seu conjunto, muito fraca e não honra a
celebrada argúcia lógica do seu autor.
Sem
dúvida, a ciência jurídica ainda não logrou encontrar uma
definição rigorosa do conceito de direito humano. Mas porventura
já se chegou a apresentar uma definição precisa e indisputável
do que seja direito? Para Bobbio,
não se pode fundar os direitos humanos nos valores supremos da
convivência humana, porque tais valores não se justificam,
assumem-se. Ora, a razão justificativa última dos valores
supremos encontram-se no ser que cocnstitui, em si mesmo, o
fundamento de todos os valores: próprio homem.
Dizer
que não se pode dar fundamento absoluto a direitos historicamente
relativos é laborar em sofisma. O próprio autor reconhece que há
direitos que valem “em qualquer situação e para todos os
homens indistintamente: são os direitos que se exige não sejam
limitados nem na ocorrência de casos excepcionais nem com relação
a esta ou aquela categoria, ainda que restrita, de pertencentes ao
gênero humano, como, por exemplo, o direito de não ser
escravizado e de não ser torturado”. Estes são, portanto,
direitos absolutos. E de qualquer maneira, se a identificação
dos diferentes direitos humanos varia na História, a sua
reflexibilidade em c3onjunto ao homem todo e a todos os homens tem
sido incontestavelmente invariável. Na verdade, todos os
direitos, e não apenas os fundamentais, são historicamente
relativos porque a sua fonte primária – a pessoa humana – é
um ser essencialmente histórico, como se dirá mais abaixo.
Por
último, nenhuma surpresa pode suscitar o fato de que a categoria
geral dos direitos humanos compreende direitos específicos de
diversa natureza. Porventura a categoria geral dos direitos
subjetivos não é reconhecidamente heterogênea? Por causa disso,
haveremos de negar a existência de direitos subjetivos, ou
rejeitar como logicamente imprestável esse conceito?
2.
A dignidade do homem como fundamento dos direitos humanos.
Uma
das tendências marcantes do pensamento moderno é a convicção
generalizada de que o verdadeiro fundamento de validade – do
direito em geral e dos direitos humanos em particular – já não
se deve ser procurado na esfera sobrenatural da revelação
religiosa, nem tampouco numa abstração metafísica – a
natureza – como essência imutável de todos os entes no mundo.
Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva,
juntamente, daquele que o criou. O que significa que esse
fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerado em
sua dignidade substancial de pessoa, diante da qual as especificações
individuais e grupais são sempre secundárias.
Os
grandes textos normativos, posteriores à 2ª Guerra Mundial,
consagram essa idéia. A Declaração Universal dos Direitos do
Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em
1948, abre-se com a afirmação de que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais, em dignidad3e e direitos” (art. 1º). A
Constituição da República Italiana, de 27 de dezembro de 1947,
declara que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social”
(art. 3º). A Constituição da República Federal Alemã, de
1949, proclama solenemente em seu art. 1º: “A dignida3de do
homem é inviolável. Respeitá-la e cprotegê-la é dever de todos
os Poderes do Estado”. Analogamente, a Constituição Portuguesa
de 1976 abre-se com a proclamação de que “Portugal é uma República
soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade
popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa
e solidária”. Para a Constituição Espanhola de 1978, “a
dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são
inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à
lei e aos direitos alheios são o fundamento da ordem política e
da paz social” (art. 10). A nossa Constituição de 1988 por sua
vez, põe como um dos fundamentos da República “a dignidade da
pessoa humana” (art. 1º - III). Na verdade, este deveria ser
apresentado como o fundamento do Estado brasileiro e não apenas
como um dos seus fundamentos.
Dignus,
na língua latina, é adjetivo ligado ao verbo defectivo decet (é
conveniente, é apropriado) e ao substantivo decor (decência,
decoro). No sentido qualificativo do que é conveniente ou
apropriado, foi usado tanto para louvar quanto para depreciar:
dignus laude, dignus suplicio. O substantivo dignitas, ao contrário,
tinha sempre conotação positiva: significava mérito e indicava
também cargo honorífico no Estado.
Mas
em que consiste, ao certo, a dignidade humana?
Para
responder a essa pergunta é preciso tomar posição sobrce a essência
do ser humano. A teoria fundamental dos direitos do homem
funda-se, necessariamente, numa antropologia filosófica, ela própria
desenvolvida a partir da crítica aos conhecimentos científicos
acumulados em torno de três pólos epistemológicos fundamentais:
o pólo das formas simbólicas, no campo das ciências da cultura;
o do sujeito, no campo das ciências do indivíduo e da ética; e
o da natureza, no campo das ciências biológicas.
A
respeito da dignidade humana, o pensamento ocidental é herdeiro
de duas tradições parcialmente antagônicas: a judaica e a
grega.
A
grande (e única) invenção do povo da Bíblia, uma das maiores,
aliás, de toda a história humana, foi a idéia da criação do
mundo por Deus único e transcendente. Os deuses antigos, de certa
forma, faziam parte do mundo, como super-homens. Iahweh, muito ao
contrário, como criador de tudo o que existe, é anterior e
superior ao mundo. Diane dele, os dias do homem, como disse o
salmista, “são como a relva: ele floresce como a flor do campo;
roça-lhe um vento e já desaparece, e ninguém mais reconhece o
seu lugar” (Salmo 103). Em resposta aos queixumes de Jó, que
procurava julgar os atos divinos segundo os critérios da justiça
humana, Iahweh interpela, implacável e soberbo: “Onde estavas,
quando lancei os fundamentos da terra? Quem lhe fixou as dimensões?
– se o sabes -, ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se
encaixam suas bases, ou quem assentou sua pedra angular, centre as3
aclamações dos astros da manhã e o aplauso de todos os filhos
de Deus? (...) Entraste pelas fontes do mar, ou passeaste pelo
fundo do abismo? Foram-te indicadas as portas da Morte, ou viste
os porteiros da terra da Sobra? Examinaste a extensão da terra?
Conta-me, se sabes tudo isso” (38, 4-18).
A
idéia de uma certa participação do homem na essência divina
– e que relativisa porisso mesmo a transcendência de De3us –
tal como se pode ver o relato da criação do mundo que se
encontra no chamado Documento Sacerdotal do Gênese (1, 26:
“Deus disse: _ Façamos o homem à nossa imagem, como nossa
semelhança”) – parece o resultado da influência dos mitos
mesopotâmicos, durante os anos de exílio do povo eleito em Babilônia.
Na
tradição grega, diferentemente, o homem tem uma dignidade própria
e independente, acima de todas as criaturas. Sófocles expressou
com emoção essa idéia, na declamação do Coro, em Antígona
(332 e segs.):
“Há
muitas maravilhas no mundo, mas a maior é o homem.
Ele
é o ser que, sabendo atravessar o mar cinzento na hora em que
sopram o vento do sul e suas tempestades, segue seu caminho por
sobre os abismos
que
lhe abrem as ondas levantadas. Ele é co ser que trabalha a deusa
augusta entre todas,a Terra.
A
terra eterna e incansável, com suas charruas que a sulcam ano a
ano sem cessar; e a lavra pelas crias de suas éguas.
Os
pássaros aturdidos são apreendidos e capturados, assim como a caça
dos campos e os peixes que povoam os mares, nas malhas de
suasredes,pelo homem de espírito engenhoso. Graças às suas
habilidades, assenhoreia-sedo animal selvagem que percorre as
serranias, e no momento azado subjuga tanto o cavalo de crina
espessa quanto o infatigável touro das montanhas.
Palavra,
pensamento rápido como o vento, aspirações donde nascem as
cidades, tudo isto ele aprendeu sozinho, assim como soube, ao
construir um abrigo,evitar os ataques do gelo e da chuva, cruéis
para quem não possui outro teto senão o céu.
Prevenido
contra tudo, não se acha desarmado contra nada que lhe possa
reservar o futuro. Contra a morte, apenas, não poderá escapar
por nenhum sortilégio, ainda que já tenha sabido, contra as doenças
mais renitentes, encontrar vários remédios.
Mas,
ao se tornar assim senhor de um saber cujos engenhosos recursos
ultrapassam toda esperança, ele pode em seguida tomar o caminho
do mal como o do bem.
c Que
ele inclua pois, nesse saber, as leis do seu Estado e a justiça
dos deuses, à qual jurou fidelidade!
Ascenderá
então às mais elevadas posições em seu Estado, ao passo que
dele pode ser banido no dia em que deixar o crime contaminá-lo
por bravata”.
Sófocles
realçou, no entanto, aí apenas a poiesis, isto é, a aptidão a fazer ou fabricar, do ser humano,
segundo o valor da utilidade. Deixou de lado outras propriedades
únicas do homem, como por exemplo a sua inesgotável capacidade
de criação artística, sob a inspiração do belo. De qualquer
modo, o elogio do homem já é feito aí diretamente,
dispensando-se a intermediação do mito do Dom prometeano, como
se vê em seu antecessor Ésquilo. A reivindicação de autonomia
em relação à divindade já não precisa de intermediários no
Olimpo.
É
interessante, no entanto, observar que em Ésquilo o elogio
indireto à humanidade, na pessoa do titã Prometeu, e mais
completo que em Sófocles:
“Ouça
agora as misérias dos mortais e perceba como, de crianças que
eram, eu os fiz seres de razão, dotados de pensamento. Quero dizê-lo
aqui, não para denegrir os homens, mas para lhe mostrar minha
c bondade para com eles. No início eles enxergavam sem ver, ouviam
sem compreender, e, semelhantes às formas oníricas, viviam sua
longa existência na desordem e na confusão. Eles desconheciam as
casas de tijolo ensolaradas, ignoravam os trabalhos de
carpintaria; viviam debaixo da terra, como ágeis formigas, no
fundo de grotas sem sol. Para eles, não havia sinais seguros nem
de inverno nem de primavera florida nem de verão fértil; faziam
tudo sem recorrer à razão, é o momento em que eu lhes ensinei a
árdua ciênc3ia do nascente e do poente dos astros. Depois, foi a
vez da ciência dos números, a primeira de todas, que inventei
para eles, assim como a das letras combinadas, memória de todas
as coisas, labor que engendra as artes. Fui assim o primeiro a
subjugar os animais, submetendo-os aos arreios ou a uma cavaleiro,
de modo a substituir os homens nos grandes trabalhos agrícolas, e
conduzi às carruagens os cavalos dóceis às rédeas, com que se
ornamenta o fasto opulento. Fui o único a inventar os veículos
com asas de tecido, os quais permitem aos marinheiros correr os
mares”.
Ao
se formular a indagação central de toda a filosofia – que é o
homem? – já se está postulando a singularidade eminente deste
ser, capaz de tomar a si mesmo como objeto da própria reflexão.
A característica da racionalidade, que a tradição ocidental
sempre considerou como atributo essencial do homem, deve ser
entendida sobretudo nesse sentido reflexivo, a partir do qual, de
resto, Descartes deu início a toda a filosofia moderna.
É
claro que a racionalidade propriamente humana reside na capacidade
de inventar e não pode ser reduzida ao simples comportamento
intuitivo e mimético dos animais. Os pássaros constróem seus
ninhos, desde a primeira fase de sua evolução como espécie, com
uma técnica basicamente sempre igual a si mesma. Na espécie
humana, ao contrário, não há técnicas imutáveis nem tampouco
limitadas em numerus
clausus: a evolução é constantemente dirigida pela aptidão
inventiva do ser humano, que põe livremente os fins e inventa os
meios mais puros a abraça-los. o chimpanzé serve-se
habitualmente de seixos como instrumento ou ferramenta; mas nunca
viu esse primata fabricar um instrumento por ele especialmente
inventado, a fim de conseguir certo resultado, na vida pacífica
ou em combate com outros animais.
Mas,
sobretudo, a capacidade inventiva do homem acabou por levá-lo a
intervir em seu próprio processo genérico, transformando-o em
deux ex machina de si mesmo. A descoberta do chamado código genético,
nos anos 50 do século XX, foi o ponto de partida para a mais
radical revolução técnica de todos os tempos: a era da
bio-engenharia. Com isto, Prometeu realizou o seu último 9e mais
audacioso desafio ao Olimpo: entregou ao homem o domínio sobre o
processo criador da própria vida.
Importa,
aliás, ressaltar que a razão humana está essenccialmente ligada
à sua capacidade expressional. O logos do homem é sempre uma
expressão de racionalidade. Como o é, também, de emotividade ou
sensibilidade.
É
que a razão humana não se limita, apenas, à racionalidade lógica
ou geométrica, por mais extraordinário que ela apareça quando
comparamos o homem com os primatas. Foi dito, mais acima, que o
ser humano tem a faculdade de escolher livremente os seus próprios
fins, ou os objetivos a alcançar pela sua atividade. Ora, isso só
se realiza em virtude de outra característica essencial do homem,
que é a razão axiológica, ou
capacidade de apreciação de valores – éticos, utilitários,
estéticos, religiosos – e de livre escolha entre eles.
Foi
justamente a partir do realce posto no mundo dos valores, que a idéia
atual de racionalidade humana passou a se distinguir nitidamente
do racionalismo triunfante do século das luzes. Os valores, com
efeito, não são objeto de uma percepção lógica, mas emotiva.
Por isso mesmo, já não é possível fundar a ética em princípios
puramente formais, mas em preferências axiológicas muito
concretas, ditadas também pela emoção e pelo sentimento. O
homem não é apenas um ser que pensa e raciocina, mas que chora e
ri, que é capaz de amor e ódio, de indignação e
enternecimento. Aliando, como advertiu Pascal, o esprit de géometrie
ao esprit de finesse, ele é tanto um animal affectivus, quanto um
animal rationalec. O que mais nos diferencia dos outros animais,
como chegou a sugerir provocativamente Unamuno, é o sentimento e
não a racionalidade. Ou então, como disse Chesterton em paradoxo
famoso, “louco não é o homem que perdeu a razão; louco é o
homem que perdeu tudo, menos a razão”.
Para
os racionalistas, não há negar, a animalidade do homem sempre
foi uma fonte de escândalo; de onde a sua preocupação em
separar, cuidadosamente, o universo ético de todo contato impuro
com o mundo material. Descartes levantou seu edifício filosófico
sobre a separação radical entre a res cogitans e a res extensa.
A inteligência, como enfatizou Kant na conclusão da Crítica da
Razão Prática, é o valor próprio do homem, um ser em que a lei
moral manifesta uma vida independente da animalidade e mesmo de
todo mundo físico. Segundo ele, a ética deve proceder como a química,
separando, no julgamento moral, os elementos racionais dosa
elementos empíricos aos quais porventura estejam ligados, a fim
de torná-los essencialmente puros.
A
concepção dualista do homem, como ser composto de alma em estado
de perpétua tensão, resulta da confluência, no pensamento
ocidental, da filosofia grega clássica e do judaismo.
Na
Grécia clássica, a dissociação do ser humano no antagonismo
entre alma e corpo atingiu o seu ápice, como sabido, em Platão,
e a partir dele confluiu com a vecrtente religiosa do cristianismo
nascente, através dos primeiros Doutores da Igreja, notadamente
Santo Agostinho. A crítica contemporânea, porém, parece
temperar a compreensão tradicionalmente radical do platonismo,
neste particular.
Já
quanto ao dualismo da concepção do homem, no pensamento judaico,
ele manifesta-se tardiamente, sem dúvida por influência do
zoroastrismo. No cristianismo primitivo, a concepção dualista do
homem foi muito evidente entre gnósticos e maniqueus. No
maniqueismo, sobretudo, a oposição metafísica entre o bem e o
mal traduziu-se na idéia de perpétua tensão conflitiva entre
corpo e alma, matéria e espírito; sendo o corpo, evidentemente,
a fonte de todo o mal. O apóstolo Paulo, na Epístola aos Romanos
(7, 14-25), acentuou o dualismo agônico entre carne e espírito,
como figuração simbólica da oposição entre a lei mosaica e a
graça divina difundida através de Jesus Cristo. Da mesma forma,
no Evangelho de João, sublinha-se a separação entre o mundo da
carne, considerado o reino do Maligno, e a vida do Espírito, para
a qual o discípulo deve renascer (3, 5-6; 15, 18-27).
Esse
inveterado repúdio à nossa condição animal, porém, acabou
indo longe demais e suscitou a inevitável reação dos modernos,
a culminar com o furor da crítica nietzscheana. Quão estranha é,
realmente esse animal, capaz de inverter a “má consciência”
e de introduzir no mundo a maior e mais inquietante de todas as
moléstias: a doença emc relação a si mesmo!
A
diatribe de Nietzsche prenunciou uma mudança sensível na
antropologia filosófica contemporânea, com o amplo
reconhecimento de que a condição corporal é parte integrante da
subjetividade humana. Os últimos avanços da ciência, de resto,
têm demonstrado a inconsistência de uma separação absoluta
entre corpo e mente. Para a neurobiologia de nossos dias, o
conjunto do organismo humano, e não apenas o cérebro, é a sede
conjunta, assim do pensamento e da memória, como dos sentimentos
e das emoções.
Ademais,
é justamente em razão de nossa condição corporal que a morte
está sempre presente, como condição iminente da existência, em
contínua e suprema interrogação sobre o sentido da vida.
Na
Bíblia, a morte se apresenta como a separação radical entre o
homem e Deus, que é a fonte de toda vida (Salmo 36, 10). A vida
é considerada como um efeito do espírito de Deus, e a morte
sobrevém quando Deus retira seu espírito do homem (Jó 34, 14;
Eclesiastes 12, 7). De onde o fato de que todo contato com o cadáver
provoca a impureza litúrgica (Levítico 21, I e ss).
No
mundo contemporâneo, não é por acaso que a reflexão sobre a
morte situa-se no cerne da filosofia existencialista. Como
observou Wilthey, seu grande precursor, “ca relação que
caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser
é a da vida com a morte, porque a limitação da nossa existência
através da morte é decisiva para a compreensão e a avaliação
da vida”.
Aprofundando
esse pensamento, Heidegger sublinhou o caráter existencialmente
único da morte, para o homem. “Na medida em que a morte é, ela
é essencialmente a minha morte”. “Ninguém pode assumir a
morte de outrem”. Podemos morrer por causa, ou em lugar de uma
pessoa; mas é impossível viver, por assim dizer, a morte de
outrem”. D acordo com a sua idéia de que a essência do ser
humano é um autêntico “poder-ser”, ou seja, a partir de sua
concepção do homem como ente em estado de permanente
inacabamento (ständige Unabgeschlosenheit), Heidegger enxerga na
morte, justamente, um duplo acabamento, temporal e ontológico. O
homem deixa de ser, quando cessa de existir temporalmente e,
portanto, já não é mais um ente em estado de poder-ser. “A
morte não é uma presença ainda não realizada, não é uma
ultimidade reduzida ao mínimo (nicht der auf ein Minimum
reduzierte letzte Ausstand), mas, antes, uma iminência
(em Bevorstand). O homem é, pois, essencialmente um “ser para a
morte” (Sein zum Tode).
Somos
o único ser que sabe que vai morrer e que, almejando
incansavelmente a imortalidade, não cessa de se dar explicações
sobre esse seu destino inexorável. O horizonte da morte alimenta,
c
sem descontinuar, o impulso religioso – outra característica
essencial do ser humano! – como esperança de superação do
absurdo existencial. Ésquilo registrou-o, em diálogo célebre:
“O
CORIFEU – Foste, sem dúvida, ainda mais longe?
PROMETEU
– Sim, livrei os homens da obsessão da morte.
O
CORIFEU – Que Remédio descobriste para esse mal?
PROMETEU
– Instalei neles cegas esperanças”.
Seja
como for, a animalidade da natureza humana não nos pode fazer
esquecer o fato, não menos evidente, de que o homem é um ser
essencialmente moral, ou seja, que todo o seu comportamento
consciente e racional é sempre sujeito a um juízo sobre o bem e
o mal. E este é mais um elemento componente da dignidade humana,
tomando-se agora a palavra no seu sentido ambíguo, tanto de
louvor quanto de reprovação, por ela apresentado na língua
latina, como assinalado acima. Nenhum outro ser, no mundo, pode
ser apreciado em termos de dever ser, de bondade ou de maldade. Há
mesmo, na história da antropologia filosófica, correntes de
opinião que sustentam ora o caráter radicalmente mau, ora a índole
essencialmente boa do ser humano. Assim é que, aos elogios antes
c citados do homem, nos grandes poetas trágicos gregos, podemos
opor a visão pessimista de uma certa parte do cristianismo
moderno. Para Kant, por exemplo, se o homem tem uma predisposição
originária para o bem, ela se vê totalmente anulada pela sua
natural inclinação para o mal. O filósofo não tem dúvida em
sustentar que a natureza humana é radicalmente má. Somente
mediante um constante esforço de auto-reforma, completado por uma
merecida intervenção divina, pode o homem esperar restabelecer a
sua originária predisposição ao bem.
De
qualquer modo, para definir a especificidade ontológica do ser
humano, sobre a qual fundar a sua dignidade no mundo, a
antropologia filosófica hodierna vai aos poucos estabelecendo um
largo consenso sobre algumas características próprias do homem,
a saber, a liberdade como fonte da vida ética, a autoconsciência,
a sociabilidade, a historicidade e a unicidade existencial do ser
humano.
a
- liberdade
O
homem é o único ser dotado de vontade, isto é, da capacidade de agir livremente, sem ser
conduzido pela inelutabilidade dos instintos.
“Conheço
c bem o homem, diz Deus,
Fui
eu quem o fez. É um ser curioso.
Porque
nele atua a liberdade, que é o mistério dos mistérios”.
É
sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo o
universo axiológico, isto é, o mundo das preferências valorativas, bem como toda a ética do modo geral, ou
seja, o mundo das normas,
as quais, contrariamente ao que sucede com as eis naturais,
apresentam-se sempre como preceitos suscetíveis de consciente
violação. É a liberdade que faz do homem um ser dotado de
autonomia, vale dizer, de capacidade para ditar suas próprias
normas de conduta.
A
liberdade é a fonte da consciência moral, da faculdade de julgar
as ações humanas segundo a polaridade entre bem e mal. Vem a
propósito assinalar que no mito bíblico do paraíso terrestre (Gênesis
3, 5) a verdadeira vida humana – na alegria e na dor, no amor e
no ódio – só principiou no momento em que o primeiro casal
provou do fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal. A
partir de então, como disse o tentador, os homens passaram a ser
“como deuses”, isto é, a viver em plano superior ao de todas
as demais criaturas.
Sem
dúvida, a liberdade de juízo ético opõe-se à idéia de que o
comportamento humano seja determinado, necessariamente, por
fatores genéticos ou hereditários. Ningué9m nasce criminoso ou
santo. Mas a liberdade tampouco significa que a vontade opera com
total independência, em relação a tendência ou disposições
caracteriais. Não é sem importância lembrar, a esse respeito,
que ethos significa
justamente caráter ou temperamento, e que os antigos sempre
distinguiram as pessoas segundo a sua disposição caracterial.
A
verdade é que a natureza humana é sempre ambivalente, sob o
aspecto ético. Sem precisar aceitar o velho maniqueismo da oposição
moral entre alma e corpo, acima referido, não podemos deixar de
reconhecer que nossa consciência ética é sempre trabal9hada por
tendências antagônicas. Essa ambivalência ética essencial tem
sido reconhecida pelos espíritos mais argutos, em todas as épocas.
“O lugar do homem”, observou Plotino, “é entre os deuses e
as feras; ele tende a se aproximar, ora daqueles, ora destas;
alguns homens assemelham-se a deuses, outros a feras, mas a
maioria mantêm-se no centro”. O tema, retomado por Montaigne em
pleno Renascimento, foi tragicamente ilustrado nos romances de
Dostoiewski e constitui, de certo modo, a base da teoria psicanalítica
de Freud, no princípio do século XX.
b –
autoconsciência
c Contrariamente
aos outros animais, o homem não tem apenas memória de fatos
exteriores, incorporada ao mecanismo de seus instintos, mas possui
a consciência de sua própria subjetivida8de, no tempo e no espaço;
sobretudo, consciência de ser vivente e mortal. A evolução
vital e a acumulação da memória histórica não apagam nunca,
em cada um de nós, a permanência consciente na identidade do
ser. O homem é, portanto, essencialmente, um animal reflexivo,
capaz de se enxergar como sujeito do mundo – o “eu e sua
circunstância”, segundo a fórmula célebre de Ortega y Gasset.
A
autoconsciência opõe-se ao estado de alienação, que é a
negativa da especificidade humana, como enfatizou Feuerbach.
Alienado diz-se do homem que é incapaz de exercer sua liberdade e
que vive, portanto, em situação de permanente heteronomia. Marx
aplicou tal conceito, como sabido, à sociedade de classes e à
classe operária em particular. Entendeu que, a partir do momento
em que a classe operária lograsse adquirir autoconsciência e
superar dialeticamente seu estado de objetiva alienação, toda a
sociedade seria enfim humanizada.
c - sociabilidade
O
caráter essencialmente sociável do ser humano foi enfatizado por
Aristóteles em sua Política,
mas a argumentação do grande estagirita nos parece, hoje,
demasiadamente formalista. Partindo da premissa lógico-metafísica
de que o todo precede sempre as partes que compõem, afirma ele
que a pólis é, por natureza, anterior ao indivíduo. “Pois se
cada indivíduo, uma vez isolado, não é autosuficiente, ele há
de se relacionar com a pólis como um todo, assim como as partes
devem sê-lo em relação ao todo; enquanto o homem incapaz de
viver em sociedade, ou aquele que é tão auto-suficiente a ponto
de não ter necessidade disto, não é parte da pólis, e deve
portanto ser uma besta ou um deus”.
O
pensamento moderno rejeita, porém, essa concepção mecanicista
do homem, como parte do todo social, pois ela conduz,
necessariamente, à conclusão da supremacia ética da sociedade
em relação ao indivíduo, razão justificativa dos mais bestiais
totalitarismos. O que se deve reconhecer é que o indivíduo
humano somente desenvolve as suas virtualidades de pessoa, isto é,
de homem capaz de cultura e auto-aperfeiçoamento, quando vive em
sociedade. É preciso não esquecer que as qualidades eminentes e
próprias do ser humano – a razão, a capacidade de criação
estética, o amor – são essencialmente comunicativas.
d –
historicidade
A substância
da natureza humana é histórica, isto é, vive em perpétua
transformação, pela memória do passado e o projeto do futuro.
Tal
significa dizer que o ser próprio do homem é um incessante
devir. Mas um devir que se desenvolve e transforma deixando sempre
rastros de sua trajetória, numa incessante acumulação de invenções
culturais de todo gênero. A especificidade da condição humana,
não se esgota na mera transformação do mundo circunstancial,
com a acumulação da “cultura objetiva”, mas compreende também
uma alteração essencial do próprio sujeito histórico. O homem
aparece, portanto, como um ente cujo ser não se completa nem se
consuma jamais (o permanente inacabamento de que falou Heidegger),
mas que vai, ao longo da história, modificando-se pela experiência
acumulada e o projeto de novos ensaios de vida. Daí poder-se
dizer que o homem contemporâneo é em sua essência – e não
apenas em sua condição ou circunstância existencial – diverso
do homem da Idade Média, do Renascimento ou do Século das Luzes.
e –
unidade existencial
Finalmente,
outra característica essencial da condição humana é o fato de
que cada um de nós se apresenta como um ente único e
rigorosamente insubstituível do mundo.
A
idéia dessa unicidade da pessoa humana, cuja concepção original
parece ser do cristianismo – com a substituição do pacto entre
Iahweh e o povo eleito, pela oferta da salvação divina,
individualmente, a cada criatura – sempre fora, de resto, icntuída
pela sensibilidade poética. O belo verso de Lamartine exprime o
sentimento que acode a todos os amantes, desde que o mundo é
mundo, quando separados no tempo ou no espaço: “un
seul être vous manque et tout est dépeuplé”. A ciência
biológica contemporânea acabou confirmando o fundamento natural
dessa grande verdade. A combinação de genes que cada um de nós
recebe de nossos pais, em razão dos rearranjos complexos e aleatórios
de cromossomas durante a meios e, é única, invariável e
irreprodutível.
Esse
conjunto de características diferenciais do ser humano demonstra,
como assinalou Kant, que todo homem tem dignidade, e não um preço,
como as coisas. O homem como espécie, e cada homem em sua
individualidade, é propriamente insubstituível, não tem
equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Mais ainda: o
homem e não só o único ser capaz de orientar suas ações em
função de finalidades racionalmente percebidas e livremente
desejadas, como é, sobretudo, o único ser cuja existência, em
si mesma, constitui um valor absoluto, isto é, um fim em si e
nunca um meio para a consecução de outros fins. É nisto que
reside, em última análise, a dignidade humana.
Vista
ainda sob outro ângulo, a dignidade do homem consiste em sua autonomia,
isto é, na aptidão para formular as próprias regras de vida.
Todos os demais sceres, no mundo, são heterônimos, porque destituídos
de liberdade. É por isto que o homem não encontra no mundo
nenhum ser que lhe seja equivalente, isto é, nenhum ser de valor
igual. Todos os demais seres valem como meios para a plena realização
humana. Ou, reformulando a expressão famosa de Protágoras, o
homem é a medida de valor de todas as coisas.
A
frase completa de Protágoras, que se encontra em seu tratado A
Verdade, é: “o homem é medida de todas as coisas: para as que
são, medida de seu ser; para as que não são, medidas de seu não-ser”.
A idéia do grande sofista é a de um relativismo individual
absoluto, tanto no campo do saber, quanto no do agir.
Desapareceria, com isto, toda possibilidade lógica de Platão,
fundado no mundo das idéias ou arquétipos, ou com o realismo
aristotélico. Daí por que Platão dedicou todo um diálogo (Teeteta) para refutar essa perigosíssima idéia de tábua rasa,
segundo a expressão de uma grande helenista contemporânea. Ainda
em sua velhice, ao escrever As
Leis, não deixou de voltar ao assunto: “É Deus que seria
para nós, no mais alto grau, a medida de todas as coisas. Ele,
antes que, segundo entendo, este ou aquele homem, como pretendem
alguns” (IV, 716 c).
A
dignidade transcendente é um atributo essencial do homem enquanto
pessoa, isto é, do homem em sua essência, independentemente das
qualificações específicas de sexo, raça, religião,
nacionalidade, posiçcão social, ou qualquer outra. Daí decorre a
lei universal de comportamento humano, em todos os tempos, que
Kant denomina imperativo
categórico: “age de modo a tratar a humanidade não só em
tua pessoa, mas na de todos os outros homens, como um fim e jamais
como um meio”.
3. O conceito de direito humano ou direito
do homem.
Como se
acaba de ver, a dignidade de cada homem consiste em ser,
essencialmente, uma pessoa, isto é, um ser cujo valor ético é
superior a todos os demais no mundo.
O
pleonasmo da expressão direitos humanos, ou direitos do homem, é
assim justificado, porque se trata de exigências de comportamento
fundadas essencialmente na participação de todos os indivíduos
do gênero humano, sem atenção às diferenças concretas de
ordem individual ou social, inerentes a cada homem. A Declaração
Universal de 1948, das Nações Unidas, sublinha esse caráter de
igualdade fundamental dos direitos humanos, ao dispor, em seu
artigo 2º, que “cada qual pode se prevalecer de todos os
direitos e todas as liberdades proclamadas na presente Declaração,
sem distinção de espécie alguma, notadamente de raça, de cor,
de sexo, de língua, de religião, de opinião pública ou de
qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna,
de nascimento ou de qualquer outra situação”.
c Percebe-se,
pois, que o fato sobre o qual se funda a titularidade dos direitos
humanos é, pura e simplesmente, a existência do homem, sem
necessidade alguma de qualquer outra precisão ou concretização.
É que os direitos humanos são direitos próprios de todos os
homens, enquanto homens, à diferença dos demais direitos, que só
existem e são reconhecidos, em função de particularidades
individuais ou sociais do sujeito. Trata-se, em suma, pela sua própria
natureza, de direitos universais e não localizados, ou
diferenciais.
Assim
como o Estado moderno, qualquer e um produto histórico, não
criou o Direito e geral e muito menos os direitos humanos em
particular, da mesma forma a eventual supressão dos Estado-nação
contemporâneo não impedirá o reconhecimento universal da
dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais dela
decorrentes, que representam o sentido axial de toda a História.
Estudos
Avançados
Coleção Documentos
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Professor Titular da Faculdade de Direito de São Paulo , Membro
do Conselho da Cátedra UNESCO-USP de Educação para a Paz, Os
Direitos Humanos , a Democracia e ca Tolerância
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