
Lutando
contra a impunidade
Cecília
Coimbra *
“As bombas contra os
movimentos em prol das minorias, os apresentadores de televisão
(e) do rádio que envergonham a classe jornalística com sua
‘militância’ diária, caluniando a própria idéia de
Direitos Humanos ... tudo isso se coaduna com a volta dos serviços
de espionagem. Somem-se à lista as censuras disfarçadas ... e
outros atentados às liberdades públicas e particulares e temos
quadro definitivo de uma direção autoritária, para não dizer
tirânica, na República Federativa do Brasil”. (Roberto Romano,
Folha de São Paulo, 22/11/00.)
À lista do filósofo e professor de ética da Unicamp somam-se
outros itens: criminalização dos movimentos sociais através de
ameaças aos seus líderes; espionagem escancarada, especialmente
nas atividades e manifestações dos movimentos populares;
assassinato de líderes sindicais e rurais, de jovens e crianças
considerados perigosos infratores, de pessoas humildes suspeitas
de crimes. O desrespeito aos direitos humanos cresce na mesma
medida em que se implanta e expande a política neoliberal encabeçada
pelo governo federal, que faz funcionar a lógica de um modelo
econômico que marginaliza, exclui e criminaliza imensas parcelas
da população e torna cotidianas as legiões de miseráveis que
vagam pelas cidades, o desemprego programado, a restrição de
acesso aos bens mínimos necessários à dignidade humana etc.
Ao lado disso, torturas e violações
são o dia-a-dia de estabelecimentos que se diz servirem à
ressocialização dos que ferem a lei: torna-se banal e natural
agentes do Estado espancarem, abusarem e matarem quem está sob a
sua guarda; torna-se cotidiano promotores pouco investigarem e
juizes raras vezes condenarem. Mas a impunidade também se
alimenta da premiação dos que num passado recente cometeram
crimes de lesa-humanidade, integrando o aparato repressivo na
ditadura militar; os exemplos se somam a cada dia e é preciso dar
nomes aos que hoje estão em cargos importantes dos governos
federal, estadual e municipal.
No Rio há figuras nefandas como
Josias Quintal, atual secretário de Segurança Pública e
‘analista de informações’ no DOI-CODI, de 1976 a 1978, e José
Halfeld Filho, ex-secretário de Defesa Civil nos governos Brizola
e ex-vice-secretário de Agricultura e ex-coordenador da Agência
de Desenvolvimento Regional na cidade de Cordeiro no governo
Garotinho. Em 1969 este major-bombeiro foi o carcereiro responsável
pelas presas políticas no Presídio São Judas Tadeu, no prédio
do DOPS-RJ, e para a nossa indignação se elegeu vice-prefeito de
Cordeiro em novembro último, pela coligação entre PDT e PSB,
que se colocam como partidos de oposição. Em Curianópolis, no
sudeste do Pará, na região de Serra Pelada, foi eleito prefeito
pelo PMDB Sebastião Curió, conhecido major do Exército que já
foi deputado federal, atuou na repressão à Guerrilha do Araguaia
e atuou como agente do SNI e membro do Conselho de Segurança
Nacional, nos anos 70.
Em dezembro descobriu-se que
algumas personagens ocupavam postos-chave no governo federal: o
tenente da reserva do Exército Carlos Alberto Del Menezzi era
diretor de Acompanhamento de Organizações Criminosas da Agência
Brasileira de Inteligência, embora a sua participação direta na
repressão e tortura a presos políticos no 12o Batalhão de BH,
em 1969 e 1970, seja conhecida e ao menos sete pessoas o acusem de
tê-las torturado; o major da reserva do Exército Rubens Robine
Bizerril, coordenador de Planejamento de Segurança do Ministério
da Justiça, serviu no 2o Batalhão de Caçadores em Goiás no início
de 1970, quando da prisão, tortura e morte do militante do PCB
Ismael de Jesus Silva, e esteve à frente do Inquérito Policial
Militar que concluiu pela versão de suicídio. Os dois foram
afastados das funções mas não se tem notícias da abertura de
sindicância para apuração das denúncias.
Também em dezembro a imprensa divulgou que o general Alberto
Cardoso afastara mais dois funcionários da Abin que haviam
participado de torturas na ditadura. Os seus nomes? o que eles
fizeram? É confidencial e sigiloso!... Como os governos
militares, o atual governo nada informa; ao contrário: protege e
até premia e/ou condecora os que cometeram e/ou respaldaram
atrocidades em nome da ‘segurança nacional’.
Entendemos, como o filósofo Michel
Foucault, que “cada luta se desenvolve em torno de um foco
particular de poder”, e um dos objetivos do GTNM-RJ e outras
entidades que lutam contra a impunidade tem sido “designar esses
focos de poder, denunciá-los, falar deles publicamente, (pois)
falar a esse respeito — forçar a rede de informação
institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, denunciar o alvo
— é a primeira inversão do poder, é um primeiro passo para
outras lutas contra o poder”. (Microfísica do poder. Rio de
Janeiro : Graal, 1988. p. 75-76.)
Apesar das vitórias pontuais as
violações aos direitos humanos crescem assustadoramente no país,
e em vista disso nos perguntamos: o que comemorar em 10 de
dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos? o que comemorar
nos 15 anos que o Grupo Tortura Nunca Mais – RJ completou em
novembro? Talvez comemorar não seja o principal, mas afirmar e
garantir certos princípios: afirmar e garantir o respeito à vida
em todas as suas expressões; afirmar e garantir direitos humanos
a todos; afirmar e garantir que a história dos mortos e
desaparecidos seja contada, que as circunstâncias dos
assassinatos, os locais dos sepultamentos e os nomes dos algozes
sejam conhecidos de todos, e para isso urge que se abram os
arquivos da repressão, que sabemos que existem e são de
responsabilidade da Presidência da República.
Que estes 15 anos do Grupo Tortura Nunca Mais – RJ, que este Dia
Internacional dos Direitos Humanos possam ser lembrados pela
afirmação de todos esses diferentes direitos que ainda são
desrespeitados, negados e ignorados pelo próprio Estado, que
através das suas políticas e dos seus agentes tem sido o
primeiro a massacrá-los.
* Presidente do Grupo
Tortura Nunca Mais-RJ
|