
Leonardo Boff
O pensador Leonardo Boff prepara-se para lançar “Ethos
Mundial”, o último volume da trilogia que iniciou com Ética
da Vida e prosseguiu com A
Voz do Arco-Íris, todos lançados pela editora Letraviva.
De incendiário mentor da Teologia da Libertação, quase
emudecido à força, ele hoje é o escritor maduro, pleno,
empenhado na construção de um planeta em que cada homem
trabalha como anjo protetor da mãe-terra.
Em entrevista a Sonia Vinas, Boff fala de religião,
livros, ecologia. E também fala da Igreja Católica, cruz e delícia
em sua trajetória. Não recusa o papel de voz que clama no
deserto e convida a profundas reflexões sobre o amor. Não o
amor rasteiro e superficial, mas um sentimento mais alto e
amplo, capaz de mover o mundo em direção a tempos de paz.
P. O senhor
defende um pacto coletivo em defesa da terra. Mas isso vem sendo
feito há muito tempo por ONGs e ambientalistas. O senhor não
tem medo de ser mais uma voz que clama no deserto?
R – Mesmo que seja uma voz que clame no deserto, cabe clamar,
porque se não clamarmos daqui a pouco a terra inteira será um
deserto, no sentido em que ela terá ameaçada a biosfera, o seu
equilíbrio. E aí será tarde. Eu creio que todos aqueles que
despertaram para essa consciência devem ser profetas:
denunciar, convocar, porque os tempos e a contagem regressiva são
contra nós. E nós temos que fazer tudo para correspondermos ao
desafio que a história e a natureza nos colocam.
P. Por
que o senhor afirma que a humanidade hoje caminha sob a metáfora
do “Titanic”?
R – Há um risco de que a humanidade, se não despertar, tenha
o mesmo destino do Titanic, isto é, o Titanic vai afundando,
isto é, o planeta terra afundando e a humanidade distraída,
festeira e inconsciente afunda junto. E quando se dá conta já
é tarde demais, e não poderá nada fazer. Então eu acredito
na capacidade do ser humano de se mobilizar, introduzir políticas
salvacionistas, mudar estratégias de produção, que sejam
menos destrutivas, dar um outro fim a sua vida, que não é só
acumular bens materiais, mas também bens espirituais,
solidariedade, convivência, de harmonização, de leveza na
vida. E tudo isso não se faz sem um forte ingrediente ético-espiritual,
onde o ser humano descobre outros valores, que não sejam
meramente aqueles da produção.
P.
Apesar de tudo isso a nossa consciência é pequena, apesar de
tudo isso, parece que estamos, como o senhor diz, todos
anestesiados, todos a caminho de um Titanic. A quem caberá a
maior parcela de despertamento do restante da humanidade?
R. Eu creio que os mais responsáveis são aqueles cujas decisões
mudam o destino dos povos, que são os chefes dos governos
mundiais. Mas também as grandes organizações mundiais, como a
ONU, como os bancos mundiais, como as grandes religiões que
mobilizam os seus fiéis, porque elas trabalham com valores, com
grandes utopias, com princípios de ação prática; toda a rede
mu-dial de ensino (que é onde as pessoas são atingidas
diretamente na sua consciência, no seu saber) são os agentes
mais poderosos dessa mudança, mas fundamentalmente, acho que
cada cidadão da sociedade civil mundial deve se mobilizar para
cada um poder dar a sua colaboração nessa viagem da consciência
e nessa política de salvamento da terra.
P. O
senhor acha, por exemplo, que a grande crise da água anunciada
no máximo para 2007, vai provocar um choque grande que desperte
a humanidade pelo sofrimento?
R. Eu creio que pelo fato que muitos povos deverão usar a violência
para sobreviver, e chegar às fontes de água potável,
possivelmente o foco mais conflitivo é o Oriente Médio. Isso
vai despertar primeiro a importância da água e o Brasil como
tem a maior rede hídrica do mundo, talvez, se tiver uma negociação
soberana, poderá pagar toda a sua dívida externa e será uma
potência hídrica do mundo, oferecendo água potável à
humanidade. Então será uma grande chance para o País e será
também uma chance para a humanidade redefinir não só a questão
da água, mas a utilização de todos os recursos não renováveis
ou escassos da terra.
P. O
senhor fala com muito carinho sobre o planeta, o senhor diz que
hoje, olhar para a terra é como olhar para um filhinho frágil,
desprotegido. É a sua vivência religiosa que lhe permite ter
essa visão, ou isso é decorrente da consciência de cidadania?
R. Eu creio que são as duas coisas. Primeiro é por que eu
venho da tradição franciscana que vive dessa dimensão da
fraternidade cósmica universal, da terra como mãe, como São
Francisco a chamava: mãe e irmã. Mãe porque nos gera e irmã
porque é criatura de Deus, como nós somos criaturas. E por
outro lado também com os estudos que eu venho fazendo, me
ocupando com a ciência da terra, me dando conta como é
verdadeira aquela teoria antiga e contemporânea que diz a terra
é um sub-organismo vivo, é gaia, é patia mama, é a magna
mater, a grande mãe, e que o mesmo carinho que temos com nossas
mães devemos ter com a grande terra. É nos sentirmos não só
como filhos e filhas da terra, mas nós somos a própria terra,
que chegou ao estágio de sua evolução em que ela sente,
pensa, ama, venera. E descobrir as nossas raízes telúricas,
que homem vem de humus, vem de terra fecunda e fértil. Nós
somos terra.
P. O
senhor diz que o grande ópio da humanidade hoje, é o amor à
mercantilização. Por quê?
R. Primeiro é uma constatação de que a sociedade moderna tem
como eixo estruturador, não a política, não a religião, não
a ética, mas tem a economia. Tudo gira ao redor da economia,
ela dita os valores e é uma economia que deve ser qualificada,
é uma economia capitalista, que se rege pela exaltação do
indivíduo, ou performance o indivíduo, cuja lógica é a
competitividade (então o mais forte triunfa) e que não
incorpora nenhuma dimensão de cooperação e solidariedade. Então
é o tipo de economia altamente agressora do sistema da vida e
da natureza, é uma economia depredadora dos recursos, e é
altamente excludente, porque privilegia aqueles que são fortes
no mercado. Esses que existem, subsistem e coexistem e os demais
desistem e têm de se afastar. Então ela cria muitas vítimas,
que são os excluídos nesse processo de produção. Eu creio
que é preciso mudarmos a economia no sentido de ela ser um meio
e não o fim. O fim não é criar riquezas cada vez mais, e mais
bens e serviços, mas colocar o ser humano no centro, com as
suas necessidades, os povos no centro. E a economia e tudo o
demais são meios para que a vida do ser humano possa ser
defendida, reproduzida e expandida.
P. Em
meio a esse estado de coisas tão canibal, o senhor crê que a
Igreja Católica, esteja tomando um rumo perigoso com essa opção
também pela aparência, pelo exterior, como o senhor mesmo diz
pela “missa aeróbica”?
R. Bom, eu creio que a Igreja Católica tem muitas tendências e
contraditórias, mas há uma perspectiva altamente consciente e
responsável - e os últimos pronunciamentos do Papa vão nessa
linha - que devemos instaurar a ética, solidariedade a mundial,
que devemos incluir o respeito a todas as formas de vida e aos
pobres do mundo, que devemos colocar como centro a justiça e a
paz e a preservação do criado. Então eu acho que há uma
consciência que está crescendo ao lado de outras formas de
auto-afirmação da igreja como poder, de ela entrar no mercado
religioso e disputar fiéis, e quem mais mobiliza, quem mais
ganha. Eu creio que há uma intenção perversa, que é contrária
à natureza da religião, que não é competitiva, não é
ganhadora de fiéis simplesmente, mas é uma proposta que exige
a liberdade do outro de aderir à proposta ou não. Então, ela
tem manifestações contraditórias, mas eu creio que ela mesma
será ajudada pela consciência mais profana, mais civil, para
ela se incorporar nessa consciência mais global de salvamento
da terra e dar a sua colaboração espiritual imprescindível:
dizer que no fundo cada criatura, cada objeto da natureza é um
sacramento revelador de Deus, e todo sacramento merece respeito,
cuidado. Se ela conseguir passar essa mensagem aos seus fiéis,
ela está cumprindo sua missão sagrada.
P. O
papa João Paulo II pediu perdão pelos erros históricos
cometidos pela igreja. O senhor vê isso como uma grande mudança
no pensamento católico?
R. Eu creio que há uma mudança, mas frágil e tíbia, porque
é fácil pedir perdão aos antigos. É fácil porque a Igreja
hoje não tem responsabilidade, mas não pede perdão as vítimas
de hoje...
P. Quem
são as vítimas de hoje?
R – Eu creio que as principais vítimas são os pobres, que não
sentiram apoio suficiente da instituição igreja nas suas
lutas, nas suas reivindicações; as mulheres do mundo inteiro
que continuam sendo marginalizadas em nome de uma pretensa
revelação, que é a ideologia machista que está na cabeça
dos padres e bispos e que ofende a Deus dizendo que é direito
divino quando é pura projeção humana. Não estendeu o perdão
a tantos teólogos que foram caçados, perderam suas cátedras,
silenciados - eu mesmo fui uma das vítimas disso. Todos nós não
nos sentimos inseridos neste perdão. De toda maneira, é
importante que a igreja se abra ao perdão, tenha coragem de
reconhecer que cometeu erros, mas como todo o perdão existe
também a penitência, e a penitência significa que a Igreja
deve atualizar esse perdão e o estender. Que mude a lógica e
os procedimentos da congregação para a doutrina da fé. Esses
procedimentos que continuamente produzem vítimas porque não
atendem os requerimentos mínimos da justiça dos estados até
ateus. A mesma instância acusa, julga e pune. Não há divisão
dos poderes para manter a isenção e propiciar uma justiça mínima.
P. Como
ex-frei franciscano o senhor acredita que mesmo a longo prazo
haverá uma evolução do pensamento religioso, com a Igreja
abdicando de certas práticas que estão muito enraizadas como o
celibato para os sacerdotes ou a doutrina das penas eternas?
R. Eu creio que mais e mais a Igreja vai se incorporar às
grandes tradições espirituais; vai renunciar àquela arrogância
de pretender ter o monopólio da revelação e dos meios de
salvação; vai dizer que Deus oferece a salvação a todos os
seres humanos; que as religiões todas mantêm aquela chama
sagrada que está dentro de cada pessoa humana, que é presença
secreta e ativa de Deus; que ela se soma às religiões e aos
caminhos espirituais na salvaguarda dessa dimensão. Em nome
disso, ela simplificará enormemente seu discurso. Os seus ritos
serão mais simples, mais verdadeiros. E dimensões de sua tradição
- como o celibato, como certas compreensões terrificantes de
penas e castigos - serão compreendidos como expressões históricas
do passado mas que perderam a sua vigência. E (dirá) que Deus
é fundamentalmente uma realidade benfazeja aos seres humanos.
Ele não tem uma caixa de lixo para onde joga aquilo que não
deu certo, mas Ele tem o poder de fazer que tudo convirja e tudo
tenha o seu lugar dentro do seu Reino.
A grande mensagem das religiões e do Cristianismo é dar a
centralidade ao amor incondicional. Quem tem o amor, tem tudo; e
quando não encontra o amor, oferece o perdão, também um perdão
incondicional, que não exclui ninguém.
P. O
senhor fala sobre a necessidade de se trazer para o Cristianismo
um grande ensinamento que o budismo oferece, que é a lição da
compaixão. A lição da compaixão não está dentro da
doutrina do Cristo no “amar ao próximo como a si mesmo, fazer
aos outros o que gostaríamos que se nos fizesse”?
R. Sim, essa doutrina da misericórdia, da compaixão é central
na prática de Jesus, que diz que devemos ter misericórdia
porque Deus ama os ingratos e maus; e que nós também devemos
fazer como o sol e a chuva que cai sobre todos; e que no juízo
final seremos julgados pela misericórdia que temos pelos
famintos, nus, sedentos, etc. Mas nunca essa visão ganhou tanta
centralidade como no budismo, porque o budismo se criou ao redor
de uma ética da compaixão, da renúncia do desejo. Então o
Cristianismo não soube dar ao seu sentimento de misericórdia
uma versão cultural e política, ficou só uma versão
familiar, uma versão subjetiva, pessoal. Mas as duas tradições
se complementam, elas coincidem nessa versão de que o
fundamental é o amor e quando não encontramos o amor então
oferecer a misericórdia e o perdão. A compaixão significa
fundamentalmente abrir-se a quem sofre, caminhar com ele, reforçar
aquela pequena chama de vida para que ela não sucumba, e juntos
poder construir aquilo que faça fraterna a existência humana,
que o ser humano sinta-se filho e filha da alegria e não
castigado num vale de lágrimas.
P. O
senhor se arrependeu de ter se afastado formalmente da Igreja
Católica?
R – Não, eu nunca me arrependi porque na verdade eu não
abandonei a Igreja Católica. Eu abandonei uma função na
igreja que era a função de padre, mas mantive a função de
leigo, mantive a função de teólogo. Continuo produzindo o
mesmo discurso, publicando minhas obras e atuando no nível que
é possível nas comunidades, dentro da mesma perspectiva que
atuava como sacerdote e teólogo.