
O novo
espectro
Boaventura de Sousa Santos
Em 1848 Marx e Engels anunciavam que um
espectro assombrava a Europa, contra o qual todos os poderes da velha
Europa se uniam, tentando exorcizá-lo. Esse espectro era o comunismo, a
luta dos operários contra o capitalismo que transformara a dignidade
pessoal em valor de troca e reduzira todas as liberdades a uma só, a do
comércio livre: "estes operários... são uma mercadoria como
qualquer outro artigo de comércio e estão, por isso, igualmente
expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações
do mercado".
No passado século e meio, este espectro foi exorcizado na Europa por três
vias principais: a social-democracia, o comunismo soviético e o
nazi-fascismo. Os dois últimos, depois do holocausto e do gulag,
passaram de exorcismos a outros tantos espectros a exorcizar. E para os
exorcizar restou apenas a social-democracia. Desde há duas décadas, a
globalização neoliberal tenta transformar a social-democracia num
espectro a exorcizar pelo comércio livre. A esquerda européia, legítima
herdeira da social-democracia, não se deu conta de que, ao aceitar
exorcizá-la, em nome do neoliberalismo, se ia a pouco e pouco
transformando, ela própria, num espectro de si mesma. Teremos fechado o
círculo? Será que o neoliberalismo, qual face de Janus, está a
transformar-se, igualmente, de exorcismo em espectro? Os êxitos
eleitorais de Le Pen em França e de outros partidos da extrema direita
noutros países da Europa serão uma manifestação invertida desse
espectro? Será esse espectro o neofascismo? Qual será a via para o
exorcizar?
A história não se repete, embora não deixe de ser perturbador que os
grupos sociais que menos integração obtiveram na social-democracia ou
que mais rapidamente estão a ser dela expulsos - os jovens e os
trabalhadores atingidos pela precarização da relação salarial - se
sintam numa situação algo semelhante à descrita pelo Manifesto
Comunista e que não tenham à sua disposição uma solução auspiciosa
do tipo daquela que era prometida pelo Manifesto. Será então o
espectro o neofascismo? A história européia mostra que o espectro de
uns foi o exorcismo de outros, e vice-versa. Daí a importância crucial
do modo como se define o espectro e de quem se pretende beneficiar e
atingir com tal definição.
À direita européia interessa que o espectro seja definido como
neofascismo. Com isso ela conseguirá o esvaziamento definitivo da
esquerda, já quase exangue. É uma armadilha em que a esquerda européia
facilmente cairá, tão profunda está nela inscrita a luta
antifascista. Para sobreviver, no entanto, a esquerda não poderá cair
nela. Em minha opinião, o espectro não é o neofascismo mas algo de
mais novo. É um espectro bicéfalo. A sua primeira cabeça é a
eventualidade de, à medida que a democracia perde a sua capacidade para
redistribuir riqueza social, estarmos a caminhar para sociedades que são
politicamente democráticas mas socialmente fascistas. O novo fascismo não
é, assim, um regime político; é antes um regime social, um sistema de
relações sociais muito desiguais que coexiste cumplicemente com uma
democracia política socialmente desarmada.
A segunda cabeça do espectro é a tentação hegemônica de se pensar
que a primeira cabeça do espectro pode ser exorcizada nos países ricos
mediante a contínua e crescente exploração e humilhação dos países
pobres. Esta segunda cabeça é a globalização neoliberal tal como está
constituída, e é a mais insidiosa porque, no deserto de alternativas
por ela criado, se arroga credivelmente ser a única solução do
problema que ela própria constitui.
Nesta definição, o espectro, longe de ser europeu, é global e só
pode ser exorcizado globalmente. Isto significa que as lutas locais e
nacionais têm de ser articuladas globalmente, no pressuposto de que não
é possível outra Europa mais solidária sem que outro mundo, mais
solidário, seja igualmente possível. A mensagem do Fórum Social
Mundial e as práticas dos movimentos e organizações que o constituem
são, assim, a única alternativa à "lepenização" da
Europa, lepenização que, aliás, sob outra forma está já a ocorrer
nos EUA.
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