
TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E OS
MODOS DE CONHECER: NÓS SOMOS TEXTO
Pierre
Lévy
O que acontece quando lemos ou escutamos um texto? Em
primeiro lugar, o texto é perfurado, ocultado, permeado de brancos.
São as palavras, os pedaços de frases que não ouvimos (não só
no sentido perceptivo, mas também intelectual do termo). São
os fragmentos de texto os quais não compreendemos, não tomamos
em conjunto, não reunimos uns aos outros, negligenciamos. Paradoxalmente,
ler, escutar, é começar por negligenciar, por não ler ou desligar
o texto.
Ao mesmo tempo em que rasgamos o texto pela leitura, nós o ferimos.
Nós o recolocamos sobre ele mesmo. Nós relacionamos, umas às
outras, as passagens que se correspondem. Os pedaços dispersos
sobre a superfície das páginas ou na linearidade do discurso,
nós os costuramos em conjunto: ler um texto é reencontrar os
gestos textuais que lhe deram seu nome.
As passagens do texto estabelecem virtualmente uma correspondência,
quase uma atividade epistolar que nós, bem ou mal, atualizamos,
seguindo ou não, aliás, as instruções do autor. Produtores do
texto, viajamos de um lado a outro do espaço de sentido, apoiando-nos
no sistema de referência e de pontos, os quais o autor, o editor,
o tipógrafo balizaram. Podemos, entretanto, desobedecer às instruções,
tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas, nós
de redes secretos, clandestinos, fazer emergir outras geografias
semânticas.
Tal é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou
de uma superficialidade inicial, rasgar, ferir, entortar, redobrar
o texto, para abrir um meio vivo onde possa desplugar-se o sentido.
O espaço do sentido não preexiste à leitura. É percorrendo-a,
cartografando-a que nós o fabricamos.
No entanto, enquanto redobramos o texto sobre ele mesmo, produzindo
assim sua relação consigo mesmo, sua vida autônoma, sua aura
semântica, nós o reportamos também a outros textos, a outros
discursos, a imagens, a sentimentos, a toda a imensa reserva
flutuante de desejos e de signos que nos constituem. Aqui, não
é a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de nós
mesmos, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o
sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração
de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem do mundo, o
resultado de nossos projetos, o despertar dos nossos prazeres,
o fio de nossos sonhos. Desta forma, o texto não é mais amarrotado,
redobrado em rolo sobre ele mesmo, mas decupado, pulverizado,
distribuído, avaliado segundo os critérios de uma subjetividade
nascida de si mesma.
Do texto, logo nada mais resta. Ou melhor, graças a ele retocamos
nossos modelos de mundo. Ele nos serviu, talvez, apenas para
fazer entrar em ressonância algumas imagens, algumas palavras
que nós já possuíamos. Por vezes, relacionamos um de seus fragmentos,
investido de uma intensidade especial, a tal zona de nossa arquitetura
mnemônica, um outro a tal pedaço de nossas redes intelectuais.
Ele nos serviu de interface conosco mesmos. Apenas muito raramente
nossa leitura, nossa escuta, terá como efeito reorganizar dramaticamente,
como por um tipo de efeito de limite violento, o bolo misturado
de representações e de emoções que nos constitui.
Escutar, olhar, ler, voltam finalmente a se construir. Na abertura
em direção ao esforço de significação que vem de outro, trabalhando,
atravessando, amassando, decupando o texto, incorporando-o a
nós, destruindo-o, nós contribuímos para erigir a paisagem de
sentido que nos habita. Confiamos, por vezes, alguns fragmentos
do texto aos conjuntos de signos que se movimentam em nós. Estes
ensinamentos, estas relíquias, estes fetiches ou esses oráculos
não têm nada a ver com as intenções do autor nem com a unidade
semântica viva do texto. Eles, contribuem, porém, para criar
e recriar o mundo de significações que nós somos.
Até agora, não pronunciei a palavra hipertexto. No entanto,
não se tratou senão disto. As tecnologias intelectuais, quase
sempre, exteriorizam e reificam uma função cognitiva, uma atividade
mental. Assim fazendo, elas reorganizam a economia ou a ecologia
intelectual em seu conjunto e modificam em retorno a função
cognitiva a qual pressupunha-se somente assistir e reforçar.
As relações entre a escritura (tecnologia intelectual) e a memória
(função cognitiva) estão aí para testemunhar.
A chegada à escritura acelerou um processo de artificialização
e de exteriorização da memória que sem dúvida começou com a
hominização. Seu uso massivo transformou o rosto de Mnemósina
(1). Acabamos por conceber a lembrança como um registro.
A semi-objetivação da memória no texto sem dúvida permitiu o
desenvolvimento de uma tradição crítica. Com efeito, a escrita
cruza uma distância entre o saber e seu sujeito. É talvez porque
eu não sou mais o que eu sei que eu posso recolocá-lo em questão.
A escritura fez surgir assim um dispositivo de comunicação,
no qual as mensagens são muito freqüentemente separadas no tempo
e no espaço de sua fonte de emissão e então recebidas fora do
contexto. Do lado da leitura, foi preciso então refinar as práticas
interpretativas. Do lado da redação, devemos imaginar sistemas
de enunciados auto-suficientes, independentes do contexto.
Com a escritura, e mais ainda com o alfabeto e a impressão,
as formas de conhecimento teóricas e hermenêuticas avançaram
sobre os saberes narrativos e rituais das sociedades orais.
A exigência de uma verdade universal, objetiva e crítica, não
pôde se impor senão em uma ecologia cognitiva grandemente estruturada
pela escrita.
Sabemos que os primeiros textos alfabéticos não separavam as
palavras. Apenas muito lentamente foram sendo inventados os
brancos entre os vocábulos, a pontuação, os parágrafos, as claras
divisões em capítulos, os sumários das matérias, os índices,
a arte de colocar na página, a rede de remissões de enciclopédias
e dicionários, as notas de pé-de-página – em suma tudo o que
facilita a leitura e a consulta de documentos escritos. Contribuindo
para dobrar os textos, estruturá-los, articulá-los para além
de sua linearidade, estas tecnologias auxiliares compõem o que
nós poderíamos chamar de aparelho de leitura artificial.
O hipertexto, a hipermídia ou a multimídia interativa percorrem
um processo já antigo de artificialização da leitura. Se ler
consiste em selecionar, esquematizar, construir uma rede de
remissões internas ao texto, em associar a outros dados, em
integrar as palavras e as imagens para uma memória pessoal em
reconstrução permanente, então os dispositivos hipertextuais
constituem uma espécie de reificação, de exteriorização dos
processos de leitura. Já o vimos, a leitura artificial existe
desde muito tempo. Que diferença podemos estabelecer entre o
sistema que estava estabilizado sobre as páginas dos livros
e dos jornais e aquele que se inventa hoje sobre as relações
digitais? Em relação às técnicas anteriores, a digitalização
introduz primeiro uma pequena revolução copernicana: não é mais
o leitor que segue as instruções da leitura e se desloca no
texto, mas é, de hoje em diante, um texto móvel, caleidoscópio
que apresenta suas facetas, gira, torna e retorna à vontade
diante do leitor.
De outra parte, a escritura e a leitura mudam seus papéis. Aquele
que participa na estruturação do hipertexto, no traçado pontilhado
das possíveis pregas do sentido, é já um leitor. Simetricamente,
aquele que atualiza um percurso ou manifesta tal ou qual aspecto
da reserva documentária contribui para a redação, encontra momentaneamente
uma escrita interminável. As costuras e remissões, os caminhos
de sentido originais que o leitor inventa podem ser incorporados
à estrutura mesma dos corpus. A partir do hipertexto, toda leitura
é uma escritura potencial. Mas sobretudo os dispositivos hipertextuais
e as redes digitais desterritorializaram o texto. Eles fizeram
emergir um texto sem fronteiras próprias, sem interioridade
definível. Existe agora o texto, como se diz da água ou da areia.
O texto é colocado em movimento, tomado em um fluxo, vetorizado,
metamórfico. Está assim mais próximo do movimento mesmo do pensamento,
ou da imagem que nós dele fazemos hoje. O texto subsiste sempre,
mas a página se oculta. A página, isto é, o pagus latino, o
campo, o território situado pelo branco das margens, lavrada
de linhas e semeada pelo autor de letras, caracteres. A página,
pesada ainda da argila mesopotâmica, aderindo sempre à terra
do neolítico, esta página muito antiga, se oculta lentamente
sob a alta superfície informacional, seus signos desligados
vão rejuntar a onda numérica (digital). Tudo se passa como se
a numerização (digitalização) estabelecesse uma espécie de imenso
plano semântico, acessível em todo lugar, para o qual cada um
poderia contribuir para produzir, dobrar diversamente, retomar,
modificar, redobrar... Há necessidade de o sublinhar?
As formas econômicas e jurídicas herdadas do período precedente
impedem hoje o movimento de desterritorialização de ir até seu
fim. A interpretação, quer dizer, a produção de sentido, não
remete mais, desde então, à interioridade de uma intenção, nem
a hierarquias de significações esotéricas, mas antes à apropriação
sempre singular de um navegador. O sentido emerge de efeitos
de pertinências locais, ele surge na intersecção de um plano
semiótico desterritorializado e de uma mira de eficácia ou de
prazer. Eu não me interesso mais sobre o que pensou um autor
ausente, eu quero que o texto me faça pensar, aqui e agora.
Nós chegamos aqui no limite das noções de texto e de leitura.
Para ultrapassar a fronteira, para tentar compreender o que
se joga além dela, proponho uma experiência de pensamento.
Suponhamos que nós não tivéssemos inventado ainda a escritura
e que extraterrestres tivessem colocado à nossa disposição todos
os medias de comunicação contemporâneos, aí compreendido o suporte
dinâmico, interativo, dotado de memória e de capacidade de cálculo
autônomo que constitui a tela do computador. Os extraterrestres
nos sugerem inventar um sistema de signos para nos ajudar a
pensar e a registrar nossos pensamentos. Nestas circunstâncias,
que gênero de escritura deveríamos colocar em questão? Seria
o alfabeto? Certamente não, uma vez que o alfabeto – vogais
e consoantes – é, grosso modo, um sistema de notação de som
e que nós já dispomos de inúmeros aparelhos para registrar e
restituir a voz. De que serviria passar anos a aprender o uso
de um sistema de notação visual do som, uma vez que nós já o
podemos gravar, reproduzir e, sobretudo, graças ao endereçamento
numérico (digital), navegar na matéria sonora à vontade? O alfabeto
foi inventado em uma época em que o gravador não existia. Na
Antigüidade e na Idade Média, utilizavam-se os textos alfabéticos
quase como fitas magnéticas, uma vez que as pessoas deveriam
ler em voz alta e então ouvir o som para compreender o sentido.
Mas como testemunham os ideogramas chineses, a escritura, para
ser notação do pensamento, não é necessariamente um registro
fiel do som das palavras.
Como o mostram as cifras árabes e a notação matemática em geral,
uma escritura pode ser independente das línguas. Se nos reportarmos
à nossa experiência imaginária, ficará claro que nossos extraterrestres
nos sugerem inventar uma escritura, um sistema de signos, uma
tecnologia intelectual que, de um lado, não faça duplo emprego
dos medias fundados sobre a captura imediata da imagem e do
som e que, de outro lado, explore todas as possibilidades abertas
pelas telas gráficas interativas, ou seja, através das realidades
virtuais multimodais em três dimensões. A maioria dos sistemas
de signos conhecidos até hoje – alfabético, ideográfico, mistos
ou outros – foram imaginados quando se dispunha apenas de suportes
estáticos fixos. Observamos que os multimedias ou hiperdocumentos
contemporâneos contentam-se, muito freqüentemente, em retomar
os signos inventados para outros suportes (escrituras diversas,
cartas ou esquemas estáticos, imagens de vídeo, sons gravados)
e colocá-los em rede. Eles promovem uma navegação nova em uma
reserva semiótica antiga. Eles desterritorializam o estoque
de signos já disponíveis. Nada de espantoso nisto, uma vez que
os novos suportes interativos saíram dos laboratórios e têm
existência social efetiva há menos de dez anos. Dez anos! Quase
nada em relação à escala de evolução cultural, muito menos tempo
do que foi necessário a uma civilização para inventar uma escritura
nova e remanejar, de um só golpe, seu dispositivo de comunicação,
de produção e de transmissão de conhecimentos. No entanto, temos
já sob os olhos, nos dois extremos da hierarquia cultural, as
premissas da nova escritura.
Do lado da pesquisa científica, visualizam-se sobre as telas
os modelos numéricos (digitais) dos fenômenos. As simulações
gráficas interativas impuseram-se como indispensáveis ferramentas
da imaginação auxiliada por computador. Nem experiência nem
teoria, a simulação – verdadeira industrialização da experiência
do pensamento – abriu uma terceira via à descoberta e à aprendizagem,
desconhecida dos epistemólogos. O modelo numérico (digital)
o qual projeta sobre a tela sua imagem dinâmica releva uma forma
de escritura, mas certamente não da notação da palavra. Não
se ouve o som, mas o modelo mental. E como modelo mental, ele
é interativo, explorável, móvel, modificável, fortemente articulado
sobre mil reservas de dados. Na outra extremidade da escala,
os videogames oferecem os modelos interativos a explorar. Eles
simulam terrenos de aventuras, universos imaginários. Certo,
trata-se de puro divertimento. Mas como não ser tocado pela
coincidência dos extremos: o pesquisador que faz proliferar
os cenários, explorando modelos numéricos (digitais), e a criança
que joga um videogame experimentam, ambos, a escritura do futuro,
a linguagem de imagens interativas, a ideografia dinâmica que
permitirá simular os mundos.
Antes de condenar os videogames, os humanistas, os pedagogos,
os criadores, os autores, deveriam valer-se desta nova escritura
e produzir com ela obras dignas desse nome, inventar novas formas
de saber e exploração que lhes correspondam, dar-lhes seus títulos
de nobreza. Nada seria pior do que uma situação em que as pessoas
de cultura se crispassem sobre o território do texto alfabético,
enquanto a linguagem do futuro seria deixada aos técnicos e
comerciantes. A barbárie nasceu quase sempre da separação. Existe
um conhecimento por simulação, muito diferente dos estilos teóricos
e hermenêuticos que se apoiavam sobre a escritura estática.
Esses critérios principais não são sem dúvida mais aqueles da
verdade crítica, universal e objetiva, mas antes aqueles da
potência de bifurcação e de variação, da capacidade de mutação,
de operatividade, de pertinência local, contextual.
Com efeito, os meios de comunicação contemporâneos instauraram
uma ecologia de mensagens muito diferente daquela que prevaleceu
até a metade do século XX. Certo, não nos banhamos jamais duas
vezes no mesmo rio informacional, mas a densidade das ligações
e a rapidez das circulações são tais que os atores da comunicação
não têm maiores dificuldades em dividir o mesmo contexto. Daí,
a pressão de universalidade e objetividade diminuiu. Como o
tinha pressentido Mac Luhan, reencontramos, mas sobre uma outra
órbita, a um nível de energia superior, certas condições de
comunicação que reinaram nas sociedades orais. A história cruzada
de suportes materiais e da relação ao saber poderia ser esquematicamente
representada pelas interferências e os cavalgamentos de quatro
ideais-tipos. Primeiro tipo: nas sociedades anteriores à escritura,
o saber prático, mítico e ritual foi encarnado pela comunidade
viva. Quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Segundo
tipo: com o advento da escritura, o saber é carregado pelo livro,
único, indefinidamente interpretável, transcendente, suposto
que contém tudo: a Bíblia, o Corão, os textos sagrados, os clássicos,
Confúcio, Aristóteles... Terceiro tipo – desde a prensa até
essa manhã: aquela da enciclopédia. Aqui, o saber não é mais
carregado pelo livro, mas pela biblioteca. Ele é estruturado
por uma rede de remissões, perseguida talvez, desde sempre,
pelo hipertexto. A desterritorialização da biblioteca a que
assistimos hoje não é talvez senão o prelúdio à aparição de
um quarto tipo de relação com o conhecimento.
Por uma espécie de retorno em espiral à oralidade das origens,
o saber poderia ser de novo tomado pelas coletividades humanas
vivas antes que por suportes separados. Somente esta vez, o
portador direto do saber não seria mais a comunidade física
e sua memória carnal, mas o cyberspace, a região dos mundos
virtuais por intermédio da qual esta comunidade conheceria seus
objetivos e se conheceria ela mesma como inteligência coletiva.
Aqui, não visamos mais o futuro do texto clássico como na primeira
parte de meu discurso, nem a invenção de uma nova escritura
como na segunda parte, mas, para terminar, o basculamento em
direção a toda uma outra ecologia da comunicação. A reunião
dos documentos numerizados (digitalizados), programas inteligentes,
de sistemas à base de conhecimentos, de suportes de simulação
e de multimídias interativos, é já virtualmente realizada pela
interconexão mundial de memórias informáticas. As mensagens
eletrônicas construíram uma rede de comunicação internacional
na qual se podem trocar e comentar toda sorte de dados. Mas
como se orientar neste cyberspace onde correm mensagens e informações
de toda ordem? Como se localizar em um fluxo? É preciso tentar
desesperadamente fixar a forma do espaço científico, traçar
as fronteiras das disciplinas? É preciso hierarquizar o essencial
e o acessório? Mas, segundo qual critério? Para quem e por quanto
tempo? Não é preciso antes se resolver a considerar o conhecimento
como um espaço contínuo e flutuante, o mesmo para todos e diferente
para cada um? Por que não projetar uma galáxia de mundos virtuais,
exprimindo a diversidade dos saberes humanos, que não estaria
organizado a priori, mas refletiria, ao contrário, os percursos
e os usos de seus exploradores?
Quase vivas, essas cosmopedias(2) seriam estruturadas e reestruturadas,
cartografadas e recartografadas em tempo real pela escritura
e a leitura coletivas. Assim, o cyberspace de uma comunidade
se reorganizaria automaticamente em função da relação movente
que seus membros estabeleceriam com a massa de conhecimentos
disponíveis. Desde que o indivíduo mergulhasse em uma cosmopedia,
todo o espaço do saber reordenar-se-ia em torno dele, segundo
sua história, seus interesses, suas interrogações, suas enunciações
anteriores. Tudo o que a ele se referisse estaria próximo, ao
alcance da mão. O que lhe importasse pouco distanciar-se-ia.
As distâncias aí seriam subjetivas, as proximidades refletiriam
as significações em contexto. As cosmopedias do século XXI não
fariam mais as pessoas girarem em torno do saber, mas o saber
em torno das pessoas.
O dispositivo das árvores de conhecimentos(3) doravante tecnicamente
disponível é a prefiguração deste projeto. Até agora, visaram-se
sobretudo realidades virtuais que simulavam os espaços físicos.
Ora, eu falo aqui de produções de espaços simbólicos, que exprimiriam
sob forma de mundos virtuais as significações e o saberes próprios
a uma coletividade. Esses espaços virtuais, com a implicação
direta e a componente tátil que a palavra sugere, exprimiriam
em tempo real os conhecimentos, os interesses, os atos de comunicação
da coletividade. Na perspectiva dos mundos virtuais de significações
divididas, a comunicação não é mais concebida como difusão de
mensagens, troca de informação, mas como emergência continuada
de uma inteligência coletiva. Não se deve, evidentemente, concebê-la
como uma fusão de inteligências individuais em uma espécie de
magma indistinto, mas, ao contrário, como um processo de crescimento,
de diferenciação, de ramificação e de retomada mutual de singularidades.
Os instrumentos numéricos (digitais) oferecem a possibilidade
de uma evolução em direção a uma maior democracia em relação
ao saber. Mas nada é garantido. A hora na qual cada um reconhece
que o conhecimento é o fundamento do poder, quando se repete
por todos os lugares que a capacidade de aprender e de inventar
sustenta o poder econômico, não há talvez outra via para uma
renovação da democracia que não imaginar e colocar em obra formas
não-excludentes de relação com o saber. Com este objetivo, a
ideografia dinâmica, a cosmopedia, os mundos virtuais de significação
dividida, o cyberspace para a inteligência coletiva são utopias
que proponho à discussão crítica. Se nunca tais possibilidades
virem o dia, então o Livro, a biblioteca, o imenso corpus proliferante
e louco do saber, cessariam de nos sobrepor e de nos desenganar.
A transcendência do texto começaria a declinar. Nós seríamos,
talvez, menos irradiados pelo espetáculo mediático. A imanência
do saber à humanidade que o produz e o utiliza, a imanência
do povo ao texto, tornar-se-ia mais visível.
Por intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam, os coletivos
humanos se jogariam a uma escritura abundante, a uma leitura
inventiva deles mesmos e de seus mundos. Como certos manifestantes
desse fim de século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”, poderemos
então pronunciar uma frase um pouco bizarra, mas que ressoará
de todo seu sentido quando nossos corpos de saber habitarem
o cyberspace: “Nós somos o texto.” E nós seremos um povo tanto
mais livre quanto mais nós formos um texto vivo.
* Tradução de Celso Cândido.
Assistência e consultoria de termos técnicos por João
Batista Edição-de-texto por Cássia
Corintha Pinto.
Notas
1. Personificação mitológica da memória.
2. Cf. A Cosmopedia, uma utopia hipervisual (La Cosmopédie,
une utopie hypervisuelle) – em colaboração com Michel Authier,
in Culture Technique no. 24, abril 1992, consagrado às “máquinas
de comunicação”, pp. 236-244.
3. Se encontrará a descrição disso no livro de Michel Authier
e Pierre Lévy, As Árvores do conhecimento, op. Cit.
|