DESC

A
Renda Mínima como Direito Fundamental
Duciran Van Marsen Faren
"Se um irmão
ou irmã estiverem nus, e precisarem do alimento quotidiano, e
algum de vós lhes disser: ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos,
sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes
aproveitará? (Tiago 2, 15-16)
1. INTRODUÇÃO
A despeito da implantação,
por vários municípios brasileiros, de Programas de Renda Mínima, e
mesmo da edição da Lei n. 9.533/97 ( que prevê o auxílio federal aos
municípios que instituirem Programas de Renda Mínima) ainda é escasso
o debate sobre o tema, especialmente no plano jurídico.
Cumpre, de início,
distinguir a renda mínima como direito e como política pública. Nesta
última acepção, representa uma estratégia de governo, destinada a,
através de mecanismos de transferência monetária a indivíduos ou famílias,
garantir um patamar considerado mínimo para garantir o atendimento das
necessidades básicas dos beneficiários.
Enquanto direito, a renda
mínima pode ser definida como uma prestação do Estado a que faz jus
todo aquele que não conseguir, com seu próprio esforço, "atingir
o padrão social mínimo necessário à sua sobrevivência com
dignidade". Nessa acepção, corresponde a um direito social,
integrante dos direitos fundamentais, uma obrigação do Estado capaz de
gerar direito subjetivo público.
Não é de hoje que a idéia
da "posse do necessário" é reclamada como componente da
dignidade humana. A renda mínima é produto de uma evolução que pode
ser vista, de forma sintética, nas encíclicas sociais da Igreja Católica,
a começar pela Rerum Novarum, quando traça um linha entre o necessário
e o supérfluo:
"Mas, desde que haja
suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever lançar
o supérfluo no seio dos pobres" .
Outro documento social, a
Encíclica "Populorum Progressio" introduz a questão da
satisfação das necessidades básicas dentro do desenvolvimento, a
partir de uma redefinição do conceito deste:
"O verdadeiro
desenvolvimento é, para todos e para cada um, a passagem de condições
menos humanas a condições mais humanas (...)
Menos humanas: as carências
materiais dos que são privados do mínimo vital ... Mais humanas: a
passagem da miséria à posse do necessário".
Reconhece a igreja que a
carência do necessário priva aos indivíduos a "possibilidade de
agir por própria iniciativa e responsabilidade" incapacitando-os
de se tornarem "artífices do seu próprio destino".
Surge, assim, o
"paradigma do desenvolvimento humano" a se contrapor ao
desenvolvimento "econômico", impermeável a fatores alheios
à própria lógica de funcionamento do sistema econômico. Se a
resposta "ambiental’ a este alheamento se deu através da teoria
das externalidades (custo econômico da degradação ambiental), a
resposta "social" veio através da formulação do conceito
paralelo (para alguns) de desenvolvimento social ou desenvolvimento
humano.
Nesta concepção,
"o objetivo do desenvolvimento é criar um ambiente no qual todas
as pessoas possam expandir as suas capacidades e no qual se ampliem as
oportunidades da geração presente e das futuras....O universalismo dos
direitos da vida é o fundamento da busca da satisfação das
necessidades mais básicas do ser humano. Este universalismo torna as
pessoas mais capazes, protege os mais elementares direitos humanos (econômicos,
sociais, cívicos, políticos e ambientais), considerando sagrados
direitos que vão desde a simples alimentação até o ato de
votar".
Temos, assim, alguns
pontos de partida teóricos para a formulação de um direito à renda mínima:
a) A definição de
necessidades básicas objetivas, vale dizer, aplicáveis para qualquer
ser humano;
b) a consideração da
satisfação das necessidades básicas como fundamento do
desenvolvimento humano (é com esta conotação que se fala de um
"direito ao desenvolvimento");
c) enfim, a universalização
dos direitos fundamentais, alistando-se o direito ao desenvolvimento,
direito humano de terceira geração, com os mesmos graus de
juridicidade, positividade e eficácia que os demais direitos
fundamentais.
Uma palavra deve ser
dita, antes de prosseguirmos com a análise dos fundamentos, sobre os
dois conjuntos de referências empíricas que subjazem na justificativa
dos programas (e, igualmente, do direito) à renda mínima, consoante a
exposição de Sônia Miriam Draibe et alli, no Relatório
"Acompanhamento e Avaliação da Implementação do Programa de
Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM) da Prefeitura Municipal de
Campinas":
São elas "as
grandes transformações que vêm ocorrendo na economia capitalista, com
profundos rebatimentos no mundo do trabalho e a consequente desestruturação
do Welfare State Keynesiano".
As primeiras, referem-se
a uma dupla dissociação: a ruptura da relação entre produção e
emprego e ruptura da relação entre emprego e renda, provocadas pela
alta produtividade, competitividade e globalização. A consequência
deste fenômeno é a redução da necessidade do trabalho; surgem os
"novos pobres", antes inseridos no mercado de trabalho, não
mais se limitando a exclusão apenas aos grupos fragilizados em geral
(incapazes, idosos, etc).
A segunda referência
consiste na dificuldade dos sistemas burocratizados de proteção social
em se adaptarem às novas realidades. A redução do trabalho traz a
queda das contribuições dos trabalhadores; atender a desempregados, e
assistir aos fragilizados torna-se insuficiente.
Na medida em que a
produtividade dispensa o trabalho, a exclusão torna-se o fator
predominante no mundo globalizado:
"Fato ainda mais
importante nas sociedades modernas, a exclusão passou a liderar,
superando a exploração. Os ricos já não precisam dos pobres. É
provavelmente a razão por que tentam esquecê-los".
Nessas condições, as
transferências monetárias diretas aos indivíduos incapazes de alcançar
os patamares mínimos através do emprego (ou com ele) tornam-se inevitáveis,
sendo mais ágeis que os programas tradicionais.
São, principalmente,
fator de combate da exclusão social, que já não pode ser enfrentada
apenas com as políticas tradicionais de assistência social,
propriamente dita, e emprego.
Embora não seja possível
reduzir a política pública a uma benesse ou favor do Estado, não
comportando este trabalho maior análise sobre o tema, privilegiaremos a
concepção da renda mínima como direito, nos três tópicos seguintes,
para em seguida nos debruçarmos sobre a política pública
consubstanciada na Lei n. 9.533/97.
A análise jurídica da
renda mínima (enquanto direito) não dispensa uma incursão sobre seus
fundamentos filosóficos e políticos. Como visto, o principal marco teórico
é de natureza filosófica: a existência de necessidades básicas
objetivas, começando, nesse nível, qualquer objeção que se queira
antepor a um tratamento jurídico da matéria.
Desborda igualmente a análise
para o plano político, envolvendo o problema da soberania, enquanto
atributo do povo. Efetivamente, libertando o homem de suas carências
mais imediatas, a suplementação de sua renda permite a expansão de
sua personalidade, e, consequente, um maior grau de liberdade que há de
se refletir no plano político, no âmbito da democracia representativa,
a qual pressupõe a participação consciente do maior número de
pessoas possível em seus atos.
Examinemos, pois, os
fundamentos filosófico e político.
2. FUNDAMENTO FILOSÓFICO
- AS NECESSIDADES BÁSICAS.
Sendo a objetivação das
necessidades básicas o ponto de partida, é igualmente sob este ângulo
que são apresentadas inúmeras objeções destinadas a descaracterizar
a satisfação dessas necessidades como responsabilidade coletiva, e,
consequentemente, a prestação da renda mínima como direito.
Procuram os críticos das
necessidades básicas ora identificá-las com desejos ou aspirações
(assim, não haveria diferença entre uma criança faminta que
"deseja" um prato de comida e um empresário que sonha com um
iate), ora demonstrar a impossibilidade de sua determinação objetiva.
Doutra parte, fazem sobressair a "autonomia do indivíduo"
sobre a "intervenção" do Estado, consistente em
"impor" a uma pessoa aquilo que seria, apenas, a idéia
subjetiva de um terceiro sobre o que o indivíduo livre realmente
necessita (ou melhor, deseja). É o que PELÁEZ chama de
"relativismo liberal", cuja primeira consequência é aliviar
a responsabilidade coletiva - e do Estado - quanto à fome de enormes
contingentes humanos.
Negando-se a objetividade
das necessidades, estas acabam relativizadas. Conceber necessidades
objetivas, válidas para todos os homens significaria impor um modelo
preconcebido de felicidade, quando na verdade o desejo por um iate,
um gole de cachaça ou um prato de comida não diferem entre si;
qualquer bem, pois, pode ser objeto de sempre crescentes
"necessidades"; mesmo os conceitos de fome e doença seriam
relativos.
Vulgarmente afirma-se que
um favelado prefere um televisor a um prato de comida; argumento cínico
que, afinal de contas, remete a causa da miséria ao próprio miserável.
Esse argumento, no
entanto, é contestado por PELÁEZ, que afirma a independência entre a
necessidade e o desejo; aquela existe independentemente deste. Uma
testemunha de Jeová que acaba de sofrer um acidente necessita
urgentemente de uma transfusão, embora não a deseje.
Enfatizando a
objetividade das necessidades básicas, PELÁEZ afirma que
"...declarar indiferentes (intercambiables) todas las preferencias
individuales (con independencia de si corresponden o no a verdaderas
necesidades) es un socorrido expediente intelectual que permite al
ultraliberal escabullirse de la exigencia moral que proyecta sobre él
la existencia de necesidades insatisfechas (pues sería absurdo afirmar
que uno está obligado a satisfacer todos los deseos de los demás). Al
ultraliberal le interesa difuminar la frontera entre las necesidades y
los deseos, igularlos "por abajo" (al nivel de los deseos),
pues así cierra el paso a la idea de la responsabilidad colectiva
frente a las verdaderas necesidades y restablece el imperio del chacun
pour soi. Este golpe bajo a la solidaridad social es, por supuesto,
adecuadamente disfrazado por medio de brillantes apelaciones al
relativismo cultural, a la "irreductible pluralidad de formas de
vida", a la inadmisibilidad de los criterios axiológicos
"trascendentes" o "absolutos" y a otros leitmotive
de la cultura contemporánea, tan aficionada a lo ambíguo y lo flácido".
PELÁEZ, cujas lições
estamos seguindo, define as necessidades básicas de forma instrumental,
como meios para a consecução de certos objetivos. "Del problema
de la universalidad de las necesidades se pasa al problema de la
universalidad de los fines. Si existieran fines que "no pueden no
ser deseados", las necesidades cuya satisfacción es una precondición
para la consecución de esos fines quedarían automáticamente
confirmadas como necesidades humanas básicas, objetivamente
determinables". Afasta-se, desde logo, aquelas necessidades
relacionadas com fins que só aparecem como desejáveis dentro de certa
perspectiva moral, religiosa ou ideológica (como, por exemplo, a ablação
do clitóris).
Assim, os planos de vida
propostos pelas diferentes ideologias pressupõem o indivíduo vivo (as
necessidades relacionadas com a continuação da vida são objetivas, a
prova de relativismo); pressupõem, também, a imputabilidade moral, que
exige um mínimo de folga vital (isto é, a energia pessoal não deve se
exaurir apenas na luta pela sobrevivência), a justificar a objetividade
de requerimentos acima do nível da mera sobrevivência física, como
vivenda, trabalho, remuneração suficiente, descanso, etc; por sua vez,
a educação é pressuposto da responsabilidade moral, e assim por
diante. As necessidades básicas apresentam-se, assim, como "...un
conjunto de medios racionalmente deseados por cualqueira, con
independencia de cualesquiera otros que resulten necesarios (según su
particular plan de vida). Por eso el discurso liberal de la
"irreductible pluralidad de las estrategias felicitarias" no
pone en peligro la objetividad de las necesidades básicas; la política
de satisfacción de necesidades básicas no pretende proporcionar la
felicidad, sino simplemente garantizar a todos los hombres un mínimo de
condiciones previas em la "línea de salida" de la carrera
hacia la felicidad. Las necesidades básicas aparecen así directamente
conectadas con el manido concepto de "igualdad de
oportunidades".
A admissão de que as
necessidades básicas sofrem certo grau de mutabilidade e flexibilidade
não compromete o enfoque objetivista, nem este enfoque exclui o debate
democrático; "antes al contrario: la objetividad de las
necesidades garantiza la posibilidad de un consenso popular estable en
lo que se refiere a la política de bienestar".
Surge, pois, com relação
àqueles cujas necessidades essenciais encontram-se insatisfeitas, a
responsabilidade social por sua satisfação.
3 ) FUNDAMENTO POLÍTICO
- A SOBERANIA DOS POBRES.
O artigo inaugural da
Constituição de 1988 declara a soberania como um dos fundamentos do
Estado Brasileiro; por sua vez, dispõe seu parágrafo único que:
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
Poucos princípios, como
a soberania, apresentam tanta riqueza de implicações. Efetivamente,
com o termo soberania podemos estar nos referindo ao detentor do poder
do Estado, ou à supremacia da ordem jurídica nacional sobre as demais,
vale dizer, o poder de auto regulação e de edição de regras de
direito.
Fábio Konder Comparato,
cuja lição seguiremos, observa que a teoria moderna da soberania,
originária dos legistas reais do século XVI, "representou o
instrumento doutrinal de independência do monarca, tanto no plano
interno - diante das prerrogativas feudais da nobreza -, quanto no plano
externo, relativamente às pretensões hegemônicas do imperador e do
Papa". Ressalta-se, assim, a soberania como poder ativo, de direção,
situado acima de todos os demais poderes. Rompe-se a subordinação da
lei positiva à lei divina; o direito e a soberania identificavam-se com
os desígnios do soberano.
A transferência da
soberania para o povo seria o primeiro "desvio semântico" do
conceito. Ocorre, pois, o trânsito da vontade individual à coletiva. A
indivisibilidade da soberania, requisito que nasceu com a idéia de
vontade individual, compatibiliza-se com a vontade coletiva, recém
introduzida no conceito, através do princípio majoritário.
Rousseau diferencia a
vontade de todos (mero registro quantitativo, soma de vontades
particulares) da vontade geral (expressão do interesse comum). Nessa
concepção, a opinião de uma minoria pode ser tomada como expressão
da "vontade geral". Esvazia-se, assim, o conteúdo popular da
soberania ao mesmo tempo em que é preparado o terreno para o advento da
democracia burguesa, que irá se servir copiosamente da idéia de
soberania da nação - cuja formulação mais acabada consta do artigo
terceiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Opera-se, assim, novo
desvio semântico na idéia de soberania popular: "o soberano,
agora, já não é o titular do mando, mas simplesmente, na melhor das
hipóteses, o que consente no exercício do poder. Deparamo-nos, aí,
com um singular soberano, que aceita submeter-se ao governo de
outrem". Afastada a possibilidade de intervenção direta, recua a
soberania popular, pela eliminação de todo "poder ativo" do
soberano. A soberania popular é contida pela delimitação da
cidadania, mediante mecanismos como o voto censitário, exclusão do
voto das mulheres, dos analfabetos, indígenas, etc.
Compreende-se, assim, a
observação aparentemente paradoxal de Aristóteles: salvo a monarquia,
todos os demais regimes obedecem ao princípio majoritário. A referência,
aqui, no entanto, é à maioria qualitativa, e não à numérica.
A democracia, para Aristóteles,
"não é o regime da soberania popular, mas da soberania dos
pobres, assim como a oligarquia se identifica pela atribuição do poder
supremo aos ricos. Sem dúvida, segundo geralmente acontece, os pobres
constituem a maioria da população, mas esse fato é meramente
acidental e não substancial....A democracia é o regime em que o poder
supremo pertence à maioria da população, na medida em que essa
maioria é composta de pobres. Para estes, de fato, a única força se
encontra no número".
"Na teoria democrática
moderna, porém, não há nenhuma "opção preferencial pelos
pobres". Soberano é o povo, entidade una, e não complexa,
composta de indivíduos perfeitamente iguais entre si. Dentro dessa
unidade coletiva, cuja delimitação concreta varia notavelmente segundo
a definição constitucional de cidadania ...a vontade da maioria
equivale à vontade do todo. É dogma político que o povo quer, quando
a maior parte dos que participaram, efetivamente, da eleição popular
pronunciou-se em determinado sentido; mesmo que essa maior parte seja
uma minoria, em relação ao número de eleitores ou em relação ao número
de votantes".
A noção simples e unitária
de povo é irreal: "ele não é, nunca, uma coleção de indivíduos
iguais entre si, mas um conjunto complexo de classes, raças, clãs,
estamentos, grupos religiosos, cujo poder e influência variam
enormemente, de época a época e de país a país. O mecanismo de
atribuição do poder supremo a essa unidade global e abstrata, por meio
da expressão do voto majoritário, mais esconde do que revela a
realidade do poder efetivo na sociedade".
Não basta, assim, a
afirmação de que "todo poder emana do povo", que se presta a
fundamento teórico mesmo de um regime oligárquico.
"Seria preciso
partir, claramente, da alternativa democracia-oligarquia, no sentido
aristotélico de governo dos pobres, contraposto ao governo dos ricos. E
é necessário optar, não menos claramente, pela soberania dos pobres.
Duas razões fundamentais fortalecem essa opção. Em primeiro lugar, o
fato de que os grupos destituídos de propriedade e poder econômico são
os maiores interessados no estabelecimento de um regime de igualdade, em
todos os níveis: igualdade de acesso ao poder, à cultura, às artes,
à produção, ao consumo, ao lazer. A idéia de igualdade sempre esteve
na base da justiça e exerce, nos tempos modernos, um papel
preponderante na transformação das sociedades. Em segundo lugar,
milita a favor da soberania dos pobres o fato óbvio de que eles formam
a maioria esmagadora de nossa população, e que um regime político não
é justo quando desatende ao interesse da maioria.
Tecnicamente, pode-se,
portanto, traduzir o princípio da soberania dos pobres, em nosso país,
como a atribuição do poder supremo à maioria..." .
Acrescenta ainda o
insigne doutrinador que "propugnar a efetiva atribuição da
soberania à fração majoritária do povo, composta dos economicamente
fracos, significa alterar fundamente o esquema de poder. Os mecanismos
de controle devem ser aplicados não ao soberano, mas aos detentores do
poder ativo, tanto dentro do Estado, como fora dele, a começar pela
empresa".
Inverte-se, pois, a
perspectiva tradicional no que tange aos direitos fundamentais. "Em
sociedades desenvolvidas, eles representam, de fato, uma correção à
onipotência majoritária, protegendo os indivíduos e os grupos minoritários.
Em nosso país, ao contrário, os direitos fundamentais do homem são
tão largamente desprezados, que o seu reforço e efetivo respeito
correspondem ao próprio reconhecimento prático da soberania dos pobres.
Nos países politicamente desenvolvidos, democracia significa lei da
maioria, mais o respeito aos direitos fundamentais do homem. No
Brasil, a autêntica democracia realizar-se-á com a atribuição do
poder soberano à maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais
da pessoa humana. (destacamos)
Ora, esses direitos
essenciais da pessoa humana (essenciais, porque correspondem à própria
dignidade do ser humano) não são apenas individuais, mas também
sociais. São também direitos dos grupos humanos fundamentais:
familiar, racial, lingüistico, religioso, cultural, profissional".
As prerrogativas que permitem a subsistência e prosperidade desses
grupos não são outorgadas pelo Estado, mas devem ser por ele e pelos
grupos dominantes respeitadas. .
Enfim, "a
soberania dos economicamente fracos há de exercer-se, em nosso país,
no sentido do desenvolvimento nacional".
Assim, para os pobres, a
soberania reclama do desenvolvimento, em primeiro lugar, o direito a uma vida digna, independentemente de
sua inserção no mecanismo econômico; e, em segundo lugar, sua inserção
produtiva através do trabalho.
O primeiro passo,
indispensável para essa inclusão, é assegurar o mínimo vital a
todas as pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, a libertação
do homem da sujeição básica, da degradante necessidade diante da qual
a liberdade e mesmo a "fração de soberania", na ilustração
de Rousseau, torna-se uma verdadeira irrisão.
O segundo passo é,
evidentemente, o trabalho. Efetivamente, "as políticas
assistenciais, por necessárias que sejam, em face da miséria dos
desempregados e excluídos, não bastam; mesmo assistido, um excluído
continua excluído. Embora não haja como renunciar à política de
redistribuição de renda, é a repartição inscrita no modo de produção
que deve, em primeiro lugar, merecer nossa atenção".
4 – O DIREITO À RENDA
MÍNIMA. A SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES BÁSICAS COMO CONTEÚDO
MATERIAL DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
Poucos princípios
constitucionais apresentarão a riqueza significativa do Princípio da
Dignidade, a tal ponto de constituir, em verdade, "uma norma
legitimadora de toda a ordem estatal e comunitária, demonstrando, em última
análise, que a nossa Constituição é acima de tudo a Constituição
da pessoa humana por excelência. Neste sentido, costuma afirmar-se que
o exercício do poder e a ordem estatal em seu todo apenas serão legítimas
caso se pautarem pelo respeito e proteção da dignidade da pessoa
humana. Assim, a dignidade constitui verdadeira condição da
democracia, que dela não pode livremente dispor".
A dignidade corresponde a
uma qualidade intrínseca da pessoa humana, elemento integrante e
irrenunciável da natureza desta, pertencendo a todas as pessoas, não
importando sua condição social, física, e mesmo social (inclusive os
criminosos são titulares da dignidade) e também a uma norma
(qualificada como princípio na Constituição Federal), sendo possível,
sob esse ângulo, cogitar-se de uma pretensão à dignidade, sempre que
esta for desrespeitada, por ação (tortura) ou omissão (carência do mínimo
vital).
Tanto como qualidade da
pessoa humana, quanto como norma, existem dois pressupostos básicos
para a dignidade humana: a existência da vida e as condições
materiais que permitem ao indivíduo o desenvolvimento suas capacidades,
tornando-se "artífice do seu próprio destino". Não deve o
ser humano ser objeto de outrem, nem tampouco escravo da absoluta carência
do essencial, marginalizado por completo dos benefícios que a sociedade
moderna poderia lhe oferecer, num patamar mínimo.
Assim, "uma outra
dimensão intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana
consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o
indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo de modo
especial os direitos sociais ao trabalho, a um sistema efetivo de
seguridade social, em última análise, à proteção da pessoa contra
as necessidades de ordem material e à asseguração de um existência
com dignidade".
Efetivamente, " ...
onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser
humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não
forem asseguradas, onde a intimidade e a identidade do indivíduo forem
objeto de ingerências indevidas, onde a igualdade relativamente aos
demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do
poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana...".
A nosso ver, a pretensão
à dignidade, representada em seu sentido material e primeiro da proteção
contra a miséria aviltante, precede mesmo aos direitos sociais
propriamente ditos, que pressupõem um mínimo de condições de
autodeterminação. Está comprovado, que, dentre os pobres, as políticas
públicas e serviços públicos tendem a favorecer os que têm melhores
condições (ex: o seguro desemprego pressupõe emprego registrado, a
previdência pressupõe contribuição, a saúde pública é buscada
pelos que dispõem, ao menos, do necessário para o deslocamento e
possuem a devida informação, etc.)
Em tempos de globalização,
ao passo que decrescem as oportunidades de trabalho, avulta a importância
de expandir o leque da proteção social àqueles que, privados da
participação formal no mercado de trabalho, e da própria caracterização
de sua personalidade na sociedade de consumo, onde o existir se confunde
com o possuir, vêem ainda mais reduzidas suas perspectivas de ascensão
social ou mesmo sobrevivência.
É com o direito à renda
mínima que o princípio constitucional da dignidade humana, após
superar os testes de positividade e vigência, encontra sua prova de
eficácia social. A construção da eficácia social deste princípio
representa uma linha de resistência contra a exclusão a que propende a
sociedade globalizada.
A dignidade humana
inscreve-se dentro da categoria dos princípios fundamentais da
constituição brasileira, cuja positividade, enquanto direito
prestacional, se expressa - na visão que a considera desprovida de
eficácia plena - pelas seguintes propriedades:
"(1) - vinculação
do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição
constitucional);
(2) - Como directivas
materiais permanentes, elas vinculam positivamente todos os órgãos
concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração em qualquer
dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução,
jurisdição).
(3) - Como limites
negativos, justificam a eventual censura, sob a forma de
inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam".
Assim, no momento em que
o Estado viola a dignidade humana, coletiva ou difusamente, em seu
sentido positivo de garantia do mínimo necessário, comete, sem dúvida,
uma inconstitucionalidade por omissão, cuja reparação judicial padece
das deficiências bem conhecidas pela doutrina (circunstância que,
contudo, nenhum peso tem para descaracterizar a juridicidade da norma).
Em termos de direito
individual indisponível, no entanto, entendemos, é perfeitamente cabível
a proteção judicial, especialmente quando envolvidos como vítimas
crianças e idosos, merecedores de especial proteção pela ordem jurídica.
Voltando nossa atenção
agora para o quadro das políticas públicas, veiculadas necessariamente
através de normas jurídicas, oferecem-se interessantes possibilidades
para a concreção da garantia positiva entranhada no princípio da
dignidade humana. É o que examinaremos a seguir.
5 - A LEI N. 9533/97.
Num Estado Federal,
especialmente o brasileiro, marcado por agudas disparidades econômicas
e sociais, o dever de "erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3o., III, C.F.)
é da União Federal, sendo a tarefa subsidiária do Estado e do Município
tanto mais evidente na medida em que a atuação destes circunscreve-se
ao próprio território.
Inviável, assim,
cogitar-se da erradicação da miséria ou tampouco redução das
desigualdades sociais e regionais atribuindo-se esta tarefa ao Estado ou
ao Município.
No que tange à renda mínima,
a implantação pelos Municípios e mesmo Estados de um programa
eficiente teria como externalidade um efeito concentrador (habitantes
das regiões desassistidas tenderiam a migrar para as assistidas para
receber o benefício) que, na prática, tem sido superado (ou driblado)
por uma norma nitidamente inconstitucional - a que estabelece a
condição de residência na cidade por um tempo determinado. E isso
independentemente de os recursos serem locais ou contar o programa com
auxílio federal.
A despeito de tudo isso,
a Lei n. 9.533/97, editada como alternativa governamental a propostas da
oposição, não institui um programa nacional de renda mínima
Estabelece, apenas, em bases insustentáveis, o auxílio financeiro
federal (melhor seria denominado programa de verba mínima) aos municípios
cuja renda familiar per capita e arrecadação sejam inferiores à média
estadual que implantarem seu programa, visando o atendimento de famílias
com filhos de 0 a 14 anos com renda per capita inferior a R$ 65,00.
Trata-se, na verdade, de
mal enjambrado disfarce para a omissão que, como era de se esperar,
nenhuma condição apresenta de efetividade, especialmente se
considerado o artigo 2o, que estabelece a contrapartida
financeira dos municípios:
Art. 2º: O
apoio financeiro da União, de que trata o art. 1º, será
limitado a cinqüenta por cento do valor total dos respectivos programas
municipais, responsabilizando-se o município, isoladamente ou em
conjunto com o Estado, pelos outros cinqüenta por cento.
Parágrafo único: A
Prefeitura Municipal que aderir ao programa previsto nesta Lei não
poderá despender mais do que quatro por cento dos recursos a ele
destinados com atividades intermediárias, funcionais ou administrativas
para sua execução.
Ora, essa solução é iníqua,
porque faz tabula rasa das desigualdades econômicas e sociais
entre os municípios, cuja erradicação é dever da União Federal. Os
municípios mais carentes do país ficarão definitivamente alijados do
auxílio federal, porque não poderão arcar com a sua contrapartida em
dinheiro.
Dadas as disparidades
regionais, os muncípios mais pobres dos estados ricos poderão, ao
menos em tese, financiar sua parte, enquanto tal possibilidade não
existirá para os municípios mais pobres dos estados pobres. O próprio
MEC, em nota oficial, admitiu que os municípios sem recursos para
implementar o programa "terão de criar soluções
alternativas" ou ainda "mobilizar recursos em detrimento de
outros programas" (conforme divulgado pelo Jornal O Globo). Resta
saber quais são estas alternativas, ou os outros programas a serem
sacrificados, em se tratando, por exemplo, dos municípios mais carentes
do país.
Aliás, o mais provável
é que o auxílio legal frustre-se por completo. Conforme noticiou a
imprensa, Lena Lavinas, estudiosa do IPEA, "calculou quantos municípios
teriam condições fiscais de pagar a metade do benefício, como exige a
lei, sem comprometer mais do que 2% de sua receita".
"No caso da
contribuição de R$ 15,00, só 252 dos 4.974 municípios teriam condições
de adotar o programa de renda mínima. Com um hipotético benefício de
R$ 65,00, o número de municípios com saúde financeira para arcar com
a contribuição cairia a dez.
(...)
Até nos EUA, país onde
a política social é descentralizada, quem banca os programas de renda
mínima é o governo federal"
O "custo
administrativo" do programa é outro empecilho. Pelos padrões mais
econômicos, nenhum programa deste tipo poderia ser implementado com
gasto inferior a 10% do custo total (os programas americanos semelhantes
têm custo administrativo médio entre 11% e 12%, segundo Robert
Greenstein, presidente do Centro de Estudos Orçamentários e Políticas
Públicas do governo norte americano). No mínimo, deveria o governo
federal demonstrar que não ultrapassa esse proporção nos seus próprios
programas, como o Comunidade Solidária...
Tudo indica que se trata
não daquelas leis que não pegam, mas da categoria de leis feitas para
não pegar. Observou a imprensa que o auxílio federal, ao qual foram
destinados R$ 200 milhões, menos do que o custo da duplicação da
Rodovia Fernão Dias (240,9 milhões), não é prioritário nem no MEC:
com a distribuição de computadores, o governo gastará 300 milhões.
Diante desse panorama, a
única saída é submeter as normas que integram o auxílio federal ao
controle de constitucionalidade, impugnando-as por contrárias ao princípio
fundamental da isonomia (que consiste, em clássica lição, no
tratamento desigual aos desiguais, na medida em que se desigualam).
Vulnerado resta, ainda, o
dever constitucional da União de reduzir as desigualdades regionais,
posto que, da forma como concebido o programa, conduzirá
inevitavelmente ao agravamento destas e a uma cadeia de
inconstitucionalidades (restrições aos migrantes).
Efetivamente, onde não
houver condição de o município arcar com a sua contrapartida, deverá
a União financiar a totalidade do programa.
Ingo Sarlet examina a
jurisprudência do STF, observando que, em ação direta de
inconstitucionalidade que impugnava, por insuficiente, o valor atribuído
ao salário mínimo, a despeito de haver ser extinta a ação, não
teria declarado a nulidade da lei porque isto não resolveria o
problema. "cuidar-se-ia de hipótese relativamente à qual se
advoga a possibilidade de uma declaração de inconstitucionalidade sem
pronúncia de nulidade, já que a ausência de lei ensejaria uma
inconstitucionalidade ainda maior: em vez de um valor insuficiente, não
teríamos valor nenhum".
Em outra ocasião, o
Supremo Tribunal, apreciando ADIN que teve como objeto a declaração de
inconstitucionalidade de lei que condicionou a concessão do benefício
previsto no artigo 203, inciso V, da C. F. às pessoas cuja família
possuísse renda per capita inferior ao salário mínimo, entendendo ser
o referido dispositivo "norma constitucional não auto-aplicável
(de eficácia limitada), denegou a medida cautelar pleiteada,
argumentando que a declaração de nulidade do dispositivo legal
redundaria numa situação ainda mais gravosa".
No caso da Lei n.
9.533/97 temos uma situação diferenciada, posto que se cuida apenas de
um dispositivo, cuja supressão não trará uma situação mais gravosa,
mas, apenas, a obrigação federal de arcar com as despesas do programa,
sempre que o município não disponha de recursos suficientes.
6 - A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Quase dois anos depois da
edição da Lei n. 9533/97, verifica-se que seu maior pecado não são
suas incongruências ou inconstitucionalidades. É sua total ineficácia
– jamais foi feita para valer.
Efetivamente, em 1998, a
despeito da intensa propaganda, nada foi gasto com o programa. Em 1999,
uma verba orçamentária mínima de 200 milhões de reais foi cortada
para 54 milhões. E pior – desse total, em outubro deste ano, somente
14,08% haviam sido gastos.
Percebe-se, assim, que
jamais houve compromisso algum do Governo com a renda mínima.
A questão da miséria,
contudo, já chegou às preocupações de quem menos se poderia esperar
– o FMI. Em 26 de setembro de 1999, anunciou este organismo novos critérios
para o desembolso de empréstimos, condicionando-os à performance dos
governos interessados na área social. Pretendia-se responder aos críticos
que reiteradamente denunciam os efeitos perversos dos ajustes econômicos
sobre os mais pobres.
E qual foi a voz
dissonante? A do Brasil, por seu Ministro Pedro Malan, contra quem seria
injusta a acusação de insincero. Segundo ele, em econômes característico,
"Deve-se evitar ... introduzir metas estruturais ou um critério de
performance quantitativa (do Governo) na área social em todos os
programas apoiados pelo FMI". Frisou, ainda, no discurso perante o
FMI, que não aprova " a idéia de que o Fundo deva identificar
instrumentos e questões de política social nas suas avaliações periódicas
dos países".
Também não pode ser
condenado o Ministro por sua falta de lealdade ao Governo. Efetivamente,
nos últimos cinco anos nada tem o país a oferecer nessa área, exceto
o discurso sobre os benefícios da estabilidade cambial para os pobres,
que, convenhamos, perdeu um pouco o sentido, e cortes e mais cortes de
verbas sociais. Seria, portanto, o principal prejudicado pelos novos
critérios.
A nova visão do
desenvolvimento, que as nossas autoridades resistem em aceitar, também
está presente no Banco Interamericano de Desenvolvimento cujo Diretor
do Instituto de Desenvolvimento Social, Bernardo Kliksberg, escreveu:
"Numerosas pesquisas
recentes mostram que o aumento da igualdade favorece a estabilidade política
e macroeconômica, é decisivo para que um país atraia novas
tecnologias (por requerer mão de obra qualificada) e pode ampliar a
poupança interna, além de muitos outros efeitos positivos.
Birdsall, Pinckney e
Sabot (BID, 96) ressaltam que suas análises de poupança e investimento
"sugerem que os pobres podem ser um motor de crescimento".
Também destacam que assegurar o crescimento a partir "de
baixo" (melhorando as condições dos setores desfavorecidos)
"não é uma questão de altruísmo, e sim de auto interesse
inteligente". (...)
Essas conclusões indicam
que a redução das desigualdades, além de ser fundamental para uma
sociedade e básica para a democracia, é estratégica para a obtenção
de desenvolvimento real e sustentado" (destacamos).
Chegamos, assim, à
preocupante conclusão de que organismos internacionais falam mais pelo
miserável brasileiro do que o próprio governo nacional, que ainda se
empenha em fazer prevalecer sua política – do completo abandono do
despossuído (a pretexto da invasão da soberania nacional? Soberania
que permanece incólume quando as metas são de outra ordem?).
Diante desse panorama trágico,
é nula a esperança de que esse "auto interesse inteligente"
seja compreendido pelas autoridades nacionais, que parecem globalizar-se
para trás, em atos e declarações que seriam difíceis de conceber
mesmo nos momentos mais negros que atravessou a nação.
Resta a esperança de que
possam os operadores do Direito, utilizando os instrumentos disponíveis
na ordem jurídica, oferecer seu quinhão, por pequeno que seja, para a
efetivação dos direitos econômicos e sociais – especialmente o mais
básico, do mínimo vital.
São Paulo, 29 de
setembro de 1999.
O autor é Procurador da
República em São Paulo e Doutor em Direito Econômico pela USP.