
A
experiência brasileira na preparação do “Relatório da
Sociedade Civil sobre o Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”,
seus desdobramentos e perspectivas futuras
(artigo
produzido a partir da apresentação feita na Oficina sobre Desc
no Fórum Social Mundial)
Introdução
O
processo de preparação do “Relatório da Sociedade Civil sobre
o Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais” teve seu início em maio de
1999 quando a Conferência Nacional de Direitos Humanos
decidiu priorizar o tema, pressionar o governo brasileiro a
apresentar seu relatório ao Comitê dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais das Nações Unidas e preparar o relatório
paralelo ou relatório sombra da sociedade civil em contraponto ao
que fosse apresentado pelo governo. No entanto, o governo não
apresentou seu relatório e, no meio do processo o que seria um
relatório paralelo ou sombra tornou-se um relatório alternativo,
visto ser o único até então apresentado ao Comitê dos Desc.
A
partir da apresentação deste Relatório dois cenários são possíveis:
- O
Brasil apresentar em tempo hábil seu relatório oficial;
- O
país não apresentar seu relatório oficial e o Relatório
Alternativo ser considerado pelo Comitê objeto de análise da
situação de aplicação dos Desc no Brasil.
Concretizando-se
o primeiro cenário caberá à sociedade civil brasileira uma rápida
articulação no sentido de apresentar novos elementos para
consideração do Comitê a partir do que for apresentado no Relatório
Oficial. Já no segundo cenário, se fará necessária a manutenção
de contatos constantes com membros do Comitê no sentido de
responder às questões por eles apresentadas somando-se, ao Relatório
Alternativo, casos exemplares de violação dos Desc no Brasil.
Metodologia empregada
A
preparação do “Relatório da Sociedade Civil sobre o
Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais” envolveu aproximadamente duas mil organizações
em 18 dos 26 estados que compõem a Federação.
Isto
só foi possível porque a Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados, o Movimento Nacional de Direitos Humanos e a
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, organizações
coordenadoras do processo, decidiram incentivar as Assembléias
Legislativas dos Estados a promoverem audiências públicas sobre
a implementação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
como, também, a análise de casos de violação destes direitos.
Por questões metodológicas estes casos de violação não foram
apresentados no Relatório Alternativo visto que, nem todos os
sistematizadores setoriais apresentaram casos emblemáticos de
violação de direitos.
As
Audiências públicas geraram, num primeiro momento, um total de
cinco mil páginas que foram divididas, de acordo com os temas em
questão, entre várias organizações para uma primeira
sistematização setorial. Após a primeira sistematização
setorial estas cinco mil páginas tornaram-se 800. Deste total
tornaram-se as 130 apresentadas no Relatório graças ao trabalho
de sistematização final.
Estrutura
do relatório
O “Relatório
da Sociedade Civil sobre o Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”
estrutura-se de maneira a:
·Avaliar
o arcabouço legal do país – apresentando pontos específicos
do Pidesc e relacionando-os à legislação existente no país;
· Identificar
os temas – no sentido de pontuar cada um dos direitos listados
no Pidesc e apresentar problematizações sobre a aplicação ou não
destes direitos;
·Avaliar
ações concretas do estado e do cumprimento do Pidesc – visto
que se entendeu não só apresentar as situações que estariam de
alguma forma relacionadas com violações dos Desc, como também,
mostrar avanços efetuados pelo Estado no sentido de implementação
dos direitos;
·Qualificar
e quantificar as problemáticas – para isso indicadores
socioeconômicos de fontes oficiais - ou produzidos a partir de
instituições não oficiais de grande reputação e respeito público
-, foram utilizados para ilustrar as problemáticas apresentadas.
Apresentação
do relatório à sociedade brasileira e ao Comitê dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais
Para a
apresentação do Relatório em Genebra, uma delegação composta
pelo Deputado Federal Nilmário Miranda (então presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), Luciano
Mariz Maia (Procurador da Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão), Romeo Olmar Klich (Coordenador Nacional do Movimento
Nacional de Direitos Humanos) e Marcio Alexandre Martins Gualberto
(assistente da Fase, sistematizador final do Relatório)
encarregou-se, juntamente com um conjunto de organizações
internacionais de apresentar este relatório ao Comitê dos Desc
na ONU.
Dois elementos
provocaram impacto significativo em Genebra: o primeiro, a
metodologia usada na preparação do Relatório. Nunca tantas
organizações estiveram reunidas na preparação do que seria um
relatório alternativo. O fato de duas mil organizações de
praticamente todo o país estarem envolvidas na preparação de um
relatório desta monta causou forte impressão aos membros do
Comitê.
O segundo, foi
o grau de abrangência deste Relatório. Dos dezessete direitos
listados no Pacto, somente um, o direito à Ciência e Tecnologia,
não foi sistematizado por problemas de última hora. Pelas
informações colhidas pela delegação brasileira em Genebra é
praxe das sociedades civis de outros países apresentarem
contra-relatórios sobre temas específicos tais como educação,
problemas das minorias, questões relacionadas a gênero etc. Na
metodologia usada pelo Brasil, todos os temas foram listados,
discutidos, problematizados e apresentados.
Além disso se
demonstrou no relatório o enorme grau de desigualdade existente
no Brasil principalmente no que diz respeito à questão racial
visto que em quase todos os direitos apresentados ficava latente o
quanto é largo o fosso que separa negros e brancos.
Concomitantemente
a apresentação do relatório em Genebra, as organizações
parceiras no Brasil fizeram, via imprensa, mídia eletrônica e
falas públicas, o Relatório circular entre as organizações da
sociedade civil e setores do governo. Ao fim do ano 2000 o
Processo de Articulação e Diálogo entre Agências Protestantes
Européias e suas Entidades Parceiras no Brasil (PAD), que atuou
junto às organizações dando os apoios necessários mandou
publicar o Relatório em formato de livro, o mesmo fazendo a
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em janeiro
de 2001.
Objetivos
alcançados
Podemos
afirmar que os objetivos previstos no início do processo foram
alcançados com êxito:
·Produziu-se
um Relatório amplo sobre a não aplicação e violação dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no Brasil;
·Deu-se,
no âmbito da sociedade civil, visibilidade aos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais;
·Ampliou-se
o arco de alianças institucionais criando importante diálogo com
setores do Judiciário e do Legislativo e, ainda;
·Atuou-se
no sentido de resgatar a estruturação da Seção Brasileira da
Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e
Desenvolvimento que estava latente há alguns anos.
Desdobramentos
advindos da confecção do Relatório
O surgimento
da Seção Brasileira da Plataforma Interamericana de Direitos
Humanos, Democracia e Desenvolvimento possibilita não só um
maior fortalecimento na discussão da temática Desc no Brasil,
como também, agiliza em muito o processo de acompanhamento das
discussões em Genebra com relação ao Relatório Alternativo. A
Seção Brasileira da Plataforma Interamericana está se
estruturando visando agregar em torno de si, sem, no entanto, ter
a menor pretensão de assumir funções outras, as várias redes
existentes no Brasil que atuam, dentro das mais variadas
perspectivas, com temáticas relacionadas aos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. Neste contexto, a Rede de Mulheres
Brasileiras, a Coordenação Nacional das Entidades Negras, as
redes relacionadas às questões de moradia, saneamento urbano,
reforma agrária etc., estão e serão convidadas a se integrarem
à Seção Brasileira no sentido de estarem incorporando em suas
agendas os instrumentos de promoção e defesa dos direitos
humanos preconizados pelo Pidesc.
O
uso do Relatório como instrumento de promoção e defesa dos
direitos humanos
As várias
estratégias de divulgação engendradas pelo conjunto de organizações
envolvidas na preparação do Relatório visaram, em última análise,
dar visibilidade ao tema dos Desc no Brasil. Entretanto é necessário,
a partir de agora, transformar este Relatório em um instrumento
amplo para a sociedade brasileira como um todo. Precisamos levar
às instituições promotoras e defensoras de direitos a compreensão
de que os direitos humanos são muito mais amplos do que pensa o
senso-comum.
É necessário
alterar-se a mentalidade construída nos últimos tempos no Brasil
de que a defesa dos direitos humanos implica, necessariamente, na
defesa daqueles que estão à margem da lei. O fato de o Brasil
ter saído a apenas 16 anos de uma ditadura militar levou ao
senso-comum a noção de defesa dos direitos civis e políticos.
Concomitantemente, o discurso da esquerda brasileira – campo no
qual se situam a maioria das organizações que lidam com os
direitos humanos – sempre foi no sentido de problematizar a
questão da violência como algo estrutural que, a medida em que
se dessem os avanços sociais, econômicos e educacionais alcançaria
sua superação. Entretanto, mesmo com a consolidação do
processo democrático, o que se viu foi um recrudescimento da violência
nos grandes centros urbanos e a falta de propostas concretas dos
setores de esquerda que assumiram governos de estados e
prefeituras de grandes cidades na redução da violência a curto
prazo.
É necessário,
portanto, se trabalhar com a ampliação da dimensão do que sejam
os direitos humanos. Do mesmo modo que a democratização
possibilitou que a luta pelos direitos políticos saísse cada vez
mais das agendas e que os direitos civis fossem sendo
implementados como pressuposto da democracia – mesmo que suas
violações sejam ainda elementos de forte preocupação dos
defensores de direitos -, a opção dos sucessivos governos
federais pelo modelo econômico neoliberal fez recrudescer os
graves problemas econômicos e sociais da população brasileira.
Assim, colocar na agenda hoje que a luta pelos direitos econômicos,
sociais e culturais é, antes de tudo, a luta por direitos humanos
fará emergir uma nova concepção do que sejam estes direitos.
Torna-se,
portanto, fundamental, o uso do Pidesc como um novo instrumental e
o Relatório alternativo como um dos principais elementos deste
instrumento. É necessário que aqueles que atuam no campo da
promoção e defesa dos direitos humanos se capacitem cada vez
mais para atuar no sentido de ampliar o campo de diálogo chegando
mais próximo àqueles que de fato têm seus direitos
constantemente violados. É importante fazer com que a grande
massa da população não só entenda, mas se aproprie dos
instrumentos oferecidos pelo Pidesc pois só assim teremos condições
de fazer com que a concepção do cidadão comum sobre os direitos
humanos se altere, bem como impactar governo e sociedade no
sentido de exigir que os Desc sejam tratados em sua real dimensão:
como direitos inalienáveis de cada ser humano.
Porto
Alegre, janeiro de 2001
Marcio
Alexandre M. Gualberto
Redator,
técnico da Fase
Membro
da Coordenação da Seção Brasileira da Plataforma
Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento