Comentário ao artigo 27

Introdução de Washington
Araújo
A confissão de Leontina é mais que uma
confissão. Á E o retrato falado da condição humana de milhões de
pessoas que se sentem ultrajadas em sua dignidade, diminuídas em sua
dimensão humana, espoliadas de seus direitos básicos. Leontina nasce do
mesmo laboratório mental (ou emocional?) de Lygia Fagundes Telles, essa
escritora que ousou ao discorrer sobre a estrutura da bolha de sabão e
que soube tratar com delicadeza e sensibilidade temas tão complexos
quanto humanos, tais como "as ficções da realidade" ou o poder
que pesa sobre "a mão no ombro". Para Carlos Drummond de
Andrade, segundo Lygia me disse em recente conversa, "esse seu conto
era o mais belo e... o mais humano". Ouso chamar seu consagrado texto
A confissão de Leontina de "A humanidade de Leontina". Uma
personagem com todas as fraquezas de uma Macabéa e nenhuma de suas
virtudes, que mergulha de ponta na realidade da qual faz emergir os mais
inspirados sentimentos. E na fragilidade de Leontina que podemos encontrar
um ser muito distante de participar livremente da vida cultural da
comunidade e para quem o fruir das artes e a participação no progresso
científico e nos seus benefícios é algo, realmente, de todo inacessível.
Leontina é, para nós, o grande desafio, e sua humanidade é a grande
conquista.
Após esta leitura, constatamos que ela move algo, algo transcendente, e
que Leontina é a representante de uma imensa legião de seres que, apesar
da maré vazante aguarda ainda a força das novas ondas, acredita ainda
nas forças humanas que, vez por outra, podem vir a irromper na superfície
do ser. O algo que ela move tem nome e atributo. Ela move a condição
humana.
Lygia Fagundes TelIes, embora detentora de tantos e tão variados prêmios
e honrarias, premia-nos agora com a distinção maior: dá vida a um
personagem de carne e osso, que nos enternece a alma e nos faz refletir
sobre o desafio do que é trabalhar pela elevação da qualidade da vida
humana neste conturbado fim de século que vivenciamos.
A confissão de Leontina
Lygia Fagundes Telles
á contei esta história tantas vezes e
ninguém quis me acreditar. Vou agora contar tudo especialmente pra
senhora que se não pode ajudar pelo menos não fica me atormentando como
fazem os outros. E que eu não sou mesmo essa uma que toda gente diz. O
jornal me chama de assassina ladrona e tem um que até deu o meu retrato
dizendo que eu era a Messalina da boca do lixo. Perguntei pro seu Armando
o que era Messalina e ele respondeu que essa foi uma mulher muito à-toa.
E meus olhos que já não têm lágrimas de tanto que tenho chorado ainda
choraram mais.
Seu Armando que é o pianista lá do salão de danças já me aconselhou a
não perder a calma e esperar com confiança que a justiça pode tardar
mas um dia vem. Respondi então que confiança podia ter nessa justiça
que vem dos homens se nunca nenhum homem foi justo pra mim. Nenhum. Só o
Rogério foi o melhorzinho deles mas assim mesmo me largou da noite pro
dia. Me queixei pro seu Armando que tenho trabalhado feito um cachorro e
ele riu e perguntou se cachorro trabalha. Não sei eu respondi. Sei que
trabalhei tanto e aqui me chamam de vagabunda e me dão choque até lá
dentro. Sem falar nas porcarias que eles obrigam a gente a fazer. Daí seu
Armando disse pra não perder a esperança que não há mal que sempre
ature. Então fiquei mais conformada.
Puxa vida que cidade. Que puta de cidade a Rubi vivia dizendo. E dizia
ainda que eu devia voltar pra Olhos D'Água porque isto não passa de uma
bela merda e se nem ela que tem peito de ferro estava se agüentando
imagine então uma bocó de mola feito eu. Mas como eu podia voltar? E
voltar pra fazer o quê? Se minha mãe ainda fosse viva e se tivesse o
Pedro e minha irmãzinha então está visto que eu voltava correndo. Mas lá
não tem mais nada. Voltar é voltar pra casa de dona Gertrudes que só
faltava me espetar com o garfo. E nem me pagava porque mal sei ler e por
isso meu pagamento era a comida e uns vestidos que ela mesma fazia com as
sobras que guardava numa arca.
Engraçado é que agora que estou trancafiada vivo me lembrando daquele
tempo e essa lembrança dói mais do que quando me dependuraram de um
jeito que fiquei azul de dor. Nossa casa ficava perto da vila e vivia
caindo aos pedaços mas bem que era quentinha e alegre. Tinha eu e minha mãe
e Pedro. Sem falar na minha irmãzinha Luzia que era meio tontinha. Pedro
era meu primo. Era mais velho do que eu mas nunca se aproveitou disso pra
judiar de mim. Nunca. Até que não era mau mas a verdade é que a gente não
podia contar com ele pra nada. Quase não falava. Voltava da escola e se
metia no mato com os livros e só vinha pra comer e dormir. Parecia estar
pensando sempre numa coisa só. Perguntei um dia em que ele tanto pensava
e ele respondeu que quando crescesse não ia continuar assim um
esfarrapado. Que ia ser médico e importante que nem o doutor Pinho. Caí
na risada ah ah ah. Ele me bateu mas me bateu mesmo e me obrigou a repetir
tudo tudo o que ele disse que ia ser. Não dê mais risada de mim ficou
repetindo não sei quantas vezes e com uma cara tão furiosa que fui me
esconder no mato com medo de apanhar mais.
Minha mãe vivia lavando roupa na beira da lagoa. Ela lavava quase toda a
roupa da gente da vila mas não se queixava. Nunca vi minha mãe se
queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fico pensando onde ia
buscar força pra trabalhar tanto. Não parava. Quando tinha aquela dor de
cabeça de cegar então amarrava na testa um lenço com rodela de batata
crua e fazia o chá que colhia no quintal. Assim que a dor passava ia com
a trouxa de roupa pra lagoa. Essa erva a Tita também comia e depois
vomitava. Vou ser médico e a senhora vai viver feito uma rainha o Pedro
disse. Rainha rainha rainha, eu fiquei gritando e pulando em redor dela e
a Tita latia e pulava comigo. Ela então fez que sim com a cabeça e riu
com aquele jeito que tinha de esconder a boca.
Eu fazia a comida e cuidava da casa. Minha irmãzinha Luzia bem que podia
me ajudar que ela já tinha seis anos mas vivia com a mão suja de terra e
sem entender direito o que a gente falava. Queria só ficar esgravatando o
chão pra descobrir minhocas. Está visto que sempre encontrava alguma e
então ficava um tem-pão olhando pra minhoca sem deixar que ela se
escondesse de novo. Ficou assim desde o dia em que caiu do colo de Pedro e
bateu com a cabeça no pé da mesa. Nesse tempo ela ainda engatinhava e
Pedro quis fazer aquela brincadeira de upa cavalinho upa. Montou ela nas
costas e saiu trotando upa upa sem lembrar que a pobrezinha não sabia se
segurar direito. Até que o tombo não foi muito feio mas desde esse dia
ela não parou de babar e fuçar a terra procurando as benditas minhocas
que às vezes escondia debaixo do travesseiro.
Até a lenha do fogão era eu que catava no mato. Perguntei um dia pra
minha mãe por que Pedro não me ajudava ao menos nisso e ela respondeu
que o Pedro precisava estudar pra ser médico e cuidar então da gente. Já
que o dinheiro não dava pra todos que ao menos um tinha de subir pra dar
a mão pros outros. Quando ele for rico e importante decerto nem vai mais
ligar pra nós eu fui logo dizendo e minha mãe ficou pensativa. Pode ser.
Pode ser. Mas prometi pra minha irmã na hora da morte que ia cuidar dele
melhor do que de você. Estou cumprindo.
Imagine a senhora se minha mãe soubesse que não faz dois anos que
encontrei Pedro e que ele fingiu que nem me conhecia. Eu tinha ido visitar
minha colega Rubi que piorou do pulmão e foi pra Santa Casa. Levei um
pacote de doces e uma revista de anedotas que Rubi tem paixão por
anedotas. Foi quando Pedro entrou. Vinha com uma moça que devia ser
doutora também porque estava com um avental branco que nem ele. Levei um
susto tão grande que quase caí pra trás porque foi demais isso da gente
se ver depois de tanto tempo. E como ele estava alto e bonito com aquele
avental. Abri a boca e quis chamar Pedro Pedro. Mas uma coisa me segurou e
foi bom porque assim que ele deu comigo foi logo disfarçando depressa com
um medo louco que eu me chegasse. Então baixei a cabeça e fingi que
estava vendo a revista. Ele foi virando as costas e pegando no braço da
doutora foi saindo mais apavorado do que se tivesse visto o próprio
diabo. Rubi percebeu tudo que Rubi não tem nada de boba e sabe até falar
um pouco da língua que aprendeu quando morou com um gringo. Quis saber se
por acaso aquele lá tinha dormido comigo pra ficar assim atrapalhado
perto da bosta da namorada dele. E disse que eu era muito tonta de ficar
desse jeito porque já devia estar acostumada com esse tipo de homem que
faz aquelas caras pra gente quando a mulher está por perto. Que é que
você queria que ele fizesse? Queria que te apresentasse olha aqui a
vagabunda que trepou comigo? Era isso que você queria? Então me deu uma
bruta vergonha daquela vida que a gente estava levando e que devia mesmo
ser uma droga de vida pra Pedro não ter coragem nem de me cumprimentar.
Contei tudo pra ela.
Esse teu primo é um grandessíssimo filho da puta. Um filho da puta ela
ficou repetindo não sei quantas vezes. Acho você muito melhor do que
ele. O grande cão. Ficou cheio de orgulho e fugiu da prima esculhambada
mas o caso é que foi essa prima que durante anos e anos fez a comida
dele. Veja Leo que se você tivesse dinheiro ele não te desprezava assim
por mais à-toa que você fosse. O errado não é ficar dando mas dar pra
pobre como você dá. Nisso é que está o erro. Mas também não posso
falar muito porque sempre fui uma besta e a prova disso é que vim parar
nesta enfermaria baixo-astral. Estou acabada Leo. Tenho só trinta e cinco
anos mas estou podre de velha e você vai direitinho pro mesmo caminho. Não
agüentei e abri a boca no mundo. Me mandou parar de chorar e começou a
falar tanta asneira que quando chegou a janta a gente já estava rindo de
novo. Dividiu comigo a canja de galinha que chamou de canja de defunto
porque os médicos matam por engano e pra não contar que foi engano
aproveitam a defuntada na canja. Então me lembrei daquela vez que teve
galinha e minha mãe deu o peito pra ele. Fiquei com o pescoço. Não me
comprava sapato pra que ele pudesse ter livros. E agora ele fugia de mim
como se eu tivesse a lepra. E depois a gente não era bem isso o que a
Rubi disse porque a gente trabalhava. A gente não trabalha? perguntei
meio ofendida. Sei disso sua tonta ela me respondeu. Mas estamos na zona.
Pergunta pros tiras se eles deixam a gente ficar lá de graça pergunta.
Sendo da zona é tratada feito vagabunda e está escrito que tem de ser
assim.
Mais tarde ela contou que uma noite ele veio conversar na enfermaria. Quis
saber o que a gente fazia e mais isso e mais aquilo. Quando a Rubi disse
que a gente era dançarina de aluguel ele ficou muito espantado e começou
a rir ah ah ah. Quer dizer que tem homens que pagam só pra dançar com
vocês? Mas ainda existe esse negócio? E achou graça porque não podia
imaginar que justo eu que não sabia nem o que era uma valsa estivesse
metida nisso. Rubi tem ódio da palavra valsa por causa de uma coisa que
aconteceu e quando escutou essa palavra e viu ele zombando já engrossou e
disse que esse era um trabalho tão direito como qualquer outro. O ruim é
que pagavam tão pouco que as meninas tinham de continuar a dança na cama
pra poder comer no dia seguinte. Avisa a Leontina que quando me encontrar
com outras pessoas pra não se aproximar de mim ele recomendou. Se
precisar de médico que me procure mas só no meu consultório ele foi
dizendo enquanto tirava um cartão do bolso. Aqui não. Rubi então perdeu
as tramontanas mas perdeu mesmo. Picou o cartão em pedacinhos e jogou
tudo na cara dele. O senhor não passa de um sacana ela respondeu. E não
precisa ficar com medo que a Leo nunca mais há de querer falar com um
tipo assim ingrato e sujo. Vá pro fundo do inferno com toda sua importância
que a Leo quer ver o diabo e não quer ver o senhor.
Ela me contou isso tão furiosa que me vi na obrigação de ficar furiosa
também. Rubi é só bondade e virava onça se me faziam alguma mas a
verdade é que bem que eu queria guardar aquele endereço e numa hora
qualquer ir lá conversar com ele. Ela não entende que a gente foi criado
junto que nem irmão. Gosto dele apesar de tudo e por mais que ele faça
eu sei que vou continuar gostando igual porque não se arranca o
bem-querer do coração. E quem mandou também eu ficar nessa vida? Mas
também que outra vida eu podia ter senão esta? Mal sei escrever meu nome
e qualquer serviço pôr aí já quer que a gente escreva até na máquina.
Não sei como é com as outras moças que nem eu. Só sei que comigo tem
sido duro demais e se Pedro soubesse disso quem sabe vinha me fazer uma
vizinha e me dizer ao menos uma palavra. Mas já estou presa faz três
meses e até agoira ele não deu sinal e decerto nem vai dar.
Às vezes fecho os olhos par ver melhor aquele tempo. Minha mãe tão
calcinha com o lenço amarrado na cabeça e a trouxa de roupa debaixo do
braço. Luzia com as minhocas. Pedro com os livros. E eu tão contente
cuidando da casa. Quando tinha flor no campo eu colhia as mais bonitas e
botava dentro da grainha em cima da mesa porque sabia que Pedro gostava de
flor. Lembro de um domingo que minha mãe ganhou uns ovos e fez um bolo.
Era tão quente o cheiro daquele bolo e Pedro comeu com tanto gosto e
fiquei tão alegre que gritei de alegria quando ele agradou minha mãe e
me chamou pra caçar vagalume. Anoitecia e a gente ia chacoalhando uma
caixinha de fósforo e mentindo pros vagalumes numa cantiguinha que era
assim vagalume tem-tem vagalume tem-tem tua mãe está aqui e o teu pai
também.
Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer respondia minha mãe
sempre que eu perguntava. Mas como ela não queria falar nisso fiquei até
hoje sem saber como ele era. Então imaginava que era lindo e bom e podia
escolher a cara que tinha quando me deitava na beira da lagoa e de
tardinha ficava olhando o sol no meio das nuvens. Me representava então
ver meu pai feito um deus desaparecendo detrás da montanha com sua capa
de nuvem num carro de ouro.
No fim do ano tinha festa no grupo. Pedro era sempre o primeiro aluno e o
diretor vinha então dizer pra minha mãe que não tinha na escola um
menino assim inteligente. Nessas horas minha mãe chorava.
Me lembro que uma vez Pedro inventou uma festa no teatrinho. Quando acabou
corri pra dizer que ele tinha representado melhor do que todos os colegas
mas Pedro me evitou. Eu estava mesmo com o vestido rasgado e isso eu
reconheço porque minha mãe piorou da dor e tive de passar a manhã
inteira fazendo o serviço dela e o meu. Mas achei que Pedro estava tão
contente que nem ia reparar no meu jeito. E me cheguei pra perto dele. Ele
então fez aquela cara e foi me dando as costas. Essa daí não é a tua
irmã? um menino perguntou. Mas Pedro fez que não foi saindo.
Fiquei sozinha no palco com um sentimento muito grande no coração.
Quando voltava pra casa ele me pegou no caminho. Todo mundo já tinha ido
embora. Então ele botou a mão no meu ombro e me perguntou se eu tinha
gostado e mais isso e mais aquilo. Pedro Pedro por que você fingiu que
nem me conhecia? eu quis perguntar. Mas ele estava tão contente e era tão
bom quando ele ficava contente que não quis estragar a festa. E fiquei
contente também.
Quando cheguei minha mãe estava com o pano amarrado na cabeça e já ia
saindo pra ir ao Bentão curandeiro. E me lembro agora de uma coisa que
parece mentira mas juro que foi assim mesmo. Já contei que a gente tinha
uma cachorrinha chamada Tita que era uma belezinha de cachorra. Quando
teve a última ninhada achei que emagreceu demais e começou a custar
muito pra sarar. Não se importe não que ela vai ficar boa disse minha mãe.
Mas uma tarde vi a Tita se levantar do caixotinho dela e ficar parada
farejando o ar e olhando lá longe com um jeito tão diferente que até
estranhei. Ela apertava os olhinhos e franzia o focinho olhando a estrada.
Depois voltava e olhava pros cachorrinhos dentro do caixote. Olhou de novo
pra estrada. A testa até franzia de tanta preocupação. Mas de repente
resolveu e foi andando firme numa direção só. No dia seguinte foi
encontrada morta naquelas bandas pra onde estava olhando. Com minha mãe
foi igual. Antes de sair ficou sem saber se ia ou não. Olhou pra mim.
Olhou pra Luzia. Olhou comprido pro Pedro. Depois olhou de novo a estrada
franzindo a testa que nem a Tita. Parecida mesmo com a Tita medindo o
caminho que ia fazer. Senti um aperto forte no coração. Não vai mãe eu
quis dizer. Mas ela já tinha pegado a estrada com seu passinho ligeiro.
Corri pro Pedro com um pressentimento. Ele estava lendo um livro. Deixa de
ser burra que não vai acontecer nada de ruim ele disse sem parar de ler.
Vou ser médico pra cuidar dela. Nunca mais vai sentir nenhuma dor ele
prometeu. E a Luzia vai deixar de mexer com minhoca e você vai se casar e
vai ser feliz ele disse e me mandou coar um café.
Aconteceu tudo ao contrário. Minha mãe caiu na estrada segurando a cabeça
e Luzia se afogou quando procurava minhoca e eu estou aqui jogada na
cadeia. Fico pensando que ele era mesmo diferente porque só com ele deu
tudo certo e agora entendo por que merecia um pedaço de carne maior do
que o meu.
Sempre achei a estaçãozinha de Olhos D'Água muito alegre por causa do
trem mas naquela manhã não podia haver uma estação mais triste.
Esperei que Pedro aparecesse ao menos uma vez na janela pra me dizer
adeus. Não apareceu. Fiquei então abanando com a mão pra outras pessoas
que por sua vez abanavam pra outras pessoas até que o último carro sumiu
na curva.
O chefe da estação quis saber pra onde Pedro ia. Contei que a intenção
dele era estudar e trabalhar na cidade. Pois vai morrer de fome disse um
amigo do chefe que estava escutando a conversa. Fiquei então num estado
que nem sei explicar É que me vi completamente sozinha no mundo e isso
foi muito duro pra mim. Acabei me acostumando mas no começo fiquei com
medo porque tinha só doze anos. Minha mãe estava enterrada. Assim que
ela morreu tive de trabalhar feito louca porque Pedro ia tirar o diploma
na escola e precisava de um montão de coisas. Continuei lavando pra fora
e tinha ainda de cozinhar e cuidar da minha irmãzinha e catar lenha no
mato e colher pinhão quando era tempo de pinhão. Me deitava tão cansada
que nem tinha força de lavar a lama do pé. Voc6 está virando um bicho
Pedro me disse muitas vezes mas o que eu queria é que ele estivesse
limpinho e com a comida na hora certa. Era isso que eu queria. Depois eu
me lavo eu respondia. Depois quando? ele perguntava. E eu olhava em redor
e via as pilhas de camisa pra passar e engomar e a panela queimando no
fogo e minha irmãzinha tendo de ser trocada porque ela fazia tudo na
roupa. Quando você tirar o diploma não vou mais lavar pra fora. Então
vou poder andar em ordem e até estudar. Era isso o que eu respondia. Foi
isso que eu combinei. Mas o combinado não vigorou porque assim que ele
tirou o diploma arrumou a trouxa e foi embora.
Aquele ano meu pai. Quando me lembro daquele ano. Até hoje se escuto
falar em diploma me representa que vai começar tudo outra vez. Os meninos
recebiam o diploma de tardinha e depois estava marcada a festa. De noite não
dava pra ir mas se eu corresse ainda chegava em tempo pra festa de tarde.
Não conto o nó que senti na garganta quando vesti o vestido cinzento que
minha mãe devia usar no caixão e não usou porque a Cida que arrumou ela
disse que logo logo o vestido ia servir direitinho pra mim. Era um desperdício.
Ninguém está vendo se ela vai de vestido velho disse a Cida. Só Deus
sabe mas Deus até que vai gostar quando ela aparecer pra lavar a alma com
o mesmo vestidinho que usava pra lavar roupa. Agora eu estava com a sandália
e o vestido dela e pensei que quando Pedro me visse ia pensar nisso também.
Mas Pedro estava ocupado demais pra pensar noutra coisa que não fosse o
discurso que ia fazer.
Quando comecei a pentear a Luzia ele parou de escrever e fez aquela cara
que conheço bem. Ficou me olhando. Mas a Luzia também vai? Respondi que
era preciso porque ela não podia ficar sozinha. Ele não disse nada mas
notei que ficou aborrecido porque logo fez aquela cara. E que ele se
envergonhava da gente e com razão porque a verdade é que não era mesmo
muito agradável mostrar pros colegas uma priminha tonta assim. Confesso
que isso me doeu porque a Luzia estava pronta e tão lindinha Com o cabelo
louro todo encacheado caindo até o ombro e o vestidinho novo que fiz com
um retalho de fazenda azul que uma freguesa me deu. Pensei em dizer que
assim arrumada ninguém podia descobrir que ela não era muito certa da
cabeça. Mas Pedro estava de tal jeito que achei melhor deixar a Luzia em
casa e ir só com ele.
Estava quase na hora de Pedro começar o discurso da festa quando Malvina
apareceu na porta me chamando com a mão depressa depressa. Ela era preta
mas naquela hora estava com a cara cinzenta. Que foi que aconteceu com a
minha irmãzinha eu perguntei quase sem poder me agüentar de pé. Então
Malvina começou a tremer dizendo que não tinha tido tempo de fazer nada.
Fazer o quê? perguntei tremendo também. Salvar a pobrezinha. Eu ia indo
pra casa quando vi aquele anjinho na beira da lagoa cavucando a lama. Fui
chegando e de repente não sei como ela deu uma cambalhota e desapareceu.
Gritei o quanto pude mas demorou até o Bentão entrar na água trazendo a
pobrezinha pelo cabelo. Roxinha roxinha.
Corri feito louca pra avisar o Pedro. Ele já ia entrar no palco. Pedro
Pedro a Luzia se afogou fiquei repetindo sem chorar nem nada. A Luzia se
afogou a Luzia se afogou. Só repetia isso sem poder dizer outra coisa a
Luzia se afogou. Ele me olhava mais branco do que a camisa. Agarrou meu
braço. Vá na frente que depois eu vou. Vá na frente está me escutando?
Mas eu não conseguia sair do lugar. Então ele me sacudiu com força. Vá
indo na frente já disse. Vá indo que depois eu vou mas não conte pra
ninguém escutou agora? Vi ele subir a escadinha que dava pro palco. Vá
na frente repetiu bem baixinho mas tão furioso que pensei que fosse
voltar pra me bater. Não fique parada aí. Vá na frente que eu já vou.
Eu já vou.
Saí zonza como se tivesse levado uma paulada. Da rua ouvi ainda a voz de
Pedro começando o discurso. Me lembro de uma palavra que escutei. Nunca
tinha escutado antes e não sabia o que era. Fui voltando pra casa e
repetindo júbilo júbilo júbilo.
Foi assim que perdi minha irmãzinha que era linda como os anjos pintados
no teto da igreja. Mais umas semanas e perdi Pedro. O diretor da escola me
arrumou um emprego na cidade ele avisou. Vou trabalhar num banco. O
ordenado é pequeno porque meu serviço é só dar recado mas nos dias de
folga vou trabalhar num hospital onde me deixam dormir. Estudo de noite
ele disse bebendo em grandes colheradas a sopa que eu esquentei. Comecei a
dar pulos de alegria. Pedro Pedro que bom que agora tudo vai mudar pra nós
eu disse cabriolando de tão contente. Faço sua comida e lavo sua roupa e
como também ganhar alguma coisa porque sei trabalhar direito não sei?
Ele então segurou no meu braço. Parei de rodopiar. Mas você não vai.
Demorou um pouco pra eu entender. Eu não vou Pedro? Ele passou a mão na
minha cabeça. Não pense que estou te abandonando ouviu bem? Eu não ia
fazer uma coisa dessas. Mas o que vou ganhar não dá pra dois. Vou na
frente e quando der jeito mando te chamar mas não fique triste porque você
vai trabalhar na casa de uma mulher muito boa que o padre Adamastor
conhece. Já falei com ele e assim que eu embarcar você vai pra lá. A
gente vende esses trastes que preciso apurar algum dinheiro pra viagem.
Agora bebe sua sopa senão esfria. Fui mexendo o caldo mas minha garganta
estava trancada â meu pai. Ô meu pai. Só olhava pro caixotinho da Tita
que agora servia pra guardar pinhão e da Tita passei pra minha mãe e então
não agüentei mais segurar o choro. Mas nessa hora Pedro já tinha saído
pra saber se a Malvina queria comprar nossas coisas e foi melhor assim
porque então ele não viu como fiquei.
Vendi tudo e o que apurei entreguei na mão dele. Um dia ainda te devolvo
com juro ele disse. Eu não sabia o que era juro e até hoje não entendo
mas se vinha de Pedro devia ser bom. Guardou o dinheiro e me abraçou. Me
leva Pedro me leva fiquei pedindo agarrada nele. Tenho de ficar sozinho se
quiser fazer o que tenho de fazer ele disse. Mas logo você vai receber
uma carta porque não quero te perder de vista ele repetiu enquanto ia
amarrando o pacote de livros com uma cordinha.
Vesti meu vestido cinzento e fui pra casa do padre Adamastor. Mal podia
parar em pé de tanto desânimo.
Uma tristeza no peito que chegava a doer. Minha mãe e Luzia e Pedro e a
Tita mais os filhinhos dos filhinhos da Tita. Tinham sumido todos.
O padre me levou na casa de uma velha de óculos que começou a me olhar
bem de perto. Mandou eu abrir a boca e mostrar os dentes. Perguntou mais
de uma vez quantos anos eu tinha e se sabia ler. Respondi que andava pelos
catorze e que conhecia uma ou outra letra mas fazia melhor as contas. Ela
então apertou meu braço. Deve andar com uma fome antiga disse pro padre.
Mas uma assim de perna fina é que sabe trabalhar. Remexeu meu cabelo. Vou
cortar sua juba pra não dar piolho ela foi dizendo. Examinou minha mão.
Quero ver essa unha cortada e limpa.
Fui recuando sem querer. A mulher tinha olhos pretos e redondinhos como os
botões da batina do padre e um jeito de falar com a gente feito urubu
bicando a carniça. Não parava de perguntar e agora queria saber se eu não
tinha andado de brincadeiras com meu primo. Que brincadeiras? perguntei e
ela riu com aquele jeito ruim que tinha de rir. Essa brincadeira de dar
injeção naquele lugarzinho que você sabe qual é. O padre sacudiu a
cabeça fingindo zanga mas bem que achou engraçado. Acho que ela é meio
retardada como a irmã minha cara enquanto eu estava dormindo. Na procissão
da Semana Santa ia vestido de Nosso Senhor dos Passos.
Assim que dona Gertrudes virava as costas o menino largava o caderno e
fugia pra jogar futebol perto do matadouro. Então seu João Carlos vinha
na cozinha pedir um café e prosear comigo. Era muito educado mas morria
de medo da mulher. É uma verdadeira megera ele me disse certa vez e me
lembro que achei graça na palavra que nunca tinha escutado antes. Ia
enrolando seu cigarrinho de palha e se queixando tanto que até criei
coragem e perguntei por que ele não fazia a pista duma vez. Quando era moço
bem que tentei mas ela ameaçou se matar ele respondeu. Então fui
ficando. Agora estou velho e não adianta mais nada mas você que é
novinha devia fugir o quanto antes. Vá-se embora menina. Vá-se embora.
E foi o que eu fiz. O pouco de dinheiro que ela me dava fui juntando num pé
de meia pra render mais como via minha mãe fazer. E numa madrugada
levantei antes dela e vesti meu vestido cinzento e corri pra estação. O
carro de primeira estava quase vazio mas o de segunda tinha gente até de
pé. Arrumei um lugarzinho perto de uma mulher muito gorda que comia pão
com cebola. Assim que o trem começou a andar espiei pela janelinha e
quando vi a vila amontoada lá embaixo não aguentei e caí no choro. Me
representou ver minha mãe lá longe com o pano amarrado na cabeça
pensando se ia ou não que nem a Tita. E minha irmãzinha brincando Com as
minhocas. E Pedro tão sério mexendo nos cadernos. Nossa mesa com uma
flor dentro da garrafinha. Juro que me representou escutar até a fala
deles. Onde estava nossa casa? Onde estavam todos?
A mulher perguntou se eu chorava por causa da cebola que ela picava num
guardanapo aberto no coío. Respondi que chorava de verdade mesmo. Ela
mastigava sem parar e quando o pão acabou abriu um embrulho com OVO
cozido e me ofereceu um. Contou que tinha seis filhos que estavam na casa
de uma comadre porque o marido era tão imprestável que não ganhava nem
pro sustento de um tico-tico. Repartiu comigo o virado de feijão e riu
muito quando contou como o caçula era engraçado. Depois chorou porque se
lembrou que estava indo pra ficar de esmola na casa de uma irmã tudo por
culpa daquele marido que só prestava pra fazer filho.
Anoiteceu e a gente ainda no trem. A mulher parou de comer e dormiu.
Fiquei olhando o mato lá fora mais preto do que carvão. O céu também
estava preto. Tive tanto medo que até me deu enjôo mas de repente vi
minha cara no vidro da janela. Eu tinha mesmo a cara de lua cheia que dona
Gertrudes vivia caçoando. Mas a pele era clarinha. E a boca muito
bem-feita sim senhora. Passei a mão no meu cabelo louro louro. Mas louro
de verdade e todo anelado sem ser de permanente. Achei bonito o meu cabelo
ali no vidro e olhei de novo pro céu. O pretume tinha se rasgado e pelo
rasgão apareceu um monte de estrelas. Me deu então uma bruta calma
quando vi uma estrelinha brilhando lá longe. Imaginei que aquela bem que
podia ser minha mãe. Então fechei os olhos e pedi que ela tomasse conta
de Pedro. E que também olhasse um pouco por mim.
Quase todas minhas colegas do salão de danças contaram que se perderam
com moços que prometeram casamento. Pois comigo foi diferente porque o
Rogério até que não prometeu nada. Foi o primeiro conhecimento que fiz
na cidade. Ele era grandalhão e tinha um riso tão bom que dava logo
vontade da gente rir junto. Assim que cheguei sentei num banco da estação
e fiquei ali parada sem saber pra onde ir. Então ele veio prosear comigo
e se ofereceu pra me ajudar. Reparei que vestia uma roupa diferente que
nunca vi antes e perguntei que farda era aquela. Mas esta é a roupa de
marinheiro ele respondeu. E começou a rir porque achou uma coisa de louco
topar com alguém que nunca tinha visto um marinheiro. Contou que morava
no Rio mas estava agora de licença pra tratar de umas coisas que tinha de
tratar aqui em São Paulo. E ficou olhando pro meu vestido. Já entendi
tudo ele foi dizendo. Você fugiu de casa com vestido da sua mãe.
Acertei?
Me levou numa confeitaria cheia de espelhos e luzes. Reparei então como
eu estava mal-arrumada perto das outras moças e acho que ele adivinhou o
que eu estava pensando porque me pediu que eu não ficasse com vergonha
daquelas mulheres bem-vestidas mas todas umas vagabundas de marca. E
prometeu que no dia seguinte me dava até um enxoval. Quer um enxoval heim
Joana? Expliquei que meu nome não era Joana e sim Leontina. Leontina
Pontes dos Santos. Não faz mal ele respondeu rindo. Esse seu cabelo todo
anelado é igual ao cabelo do São João do Carneirinho e pra mim você
será sempre Joana.
Fui contando minha vida enquanto bebia guaraná e comia um sanduíche. Ele
bebia cerveja e escutava muito sério. Falei no Pedro e na esperança que
tinha de me encontrar com ele apesar de não ter recebido nenhuma carta
naqueles quatro anos.
Isto aqui é grande demais pra você achar esse primo ele disse sacudindo
a cabeça. Neste puta bolo a gente não encontra nem com a mãe. E é
melhor mesmo não contar com ninguém ele disse segurando minha mão. Foi
o primeiro conselho que ouvi e agora que estou sozinha vejo coma era
verdade isso que o Rogério me disse. Conte si com você que todo mundo já
está até as orelhas de tanto problema e não quer nem ouvir falar no
problema do outro. Depois me disse que se eu estivesse gostando dele como
ele estava gostando de mim tudo ia ser muito fácil. A gente podia ir
morar junto lá no hotelzinho mas desde já me avisava que não ia
prometer nada. Nunca enganei nenhuma mulher ele avisou. Sou livre mas não
vá ficar alegre com isso porque casar não caso mesmo. Meu compromisso é
outro. Nunca esquentei o rabo em parte alguma ele disse despejando mais
cerveja no copo. Fiquei olhando a espuma. Chega uma hora me mando pro mar
e adeus. Está bem assim?
Respondi que nunca tinha visto o mar. Num desses domingos a gente vai
comer uma peixada em Santos ele prometeu. E explicou que o mar era tanta
água tanta que no fim ele parecia se juntar com o céu. Mas se a gente
chegasse até lá tinha mais chão de mar pela frente. As vezes ele ficava
arreliado e espumava feito louco varrido puxando tudo pro fundo. Mas que
de repente a raiva passava. E sem ninguém saber por que a água se punha
mansa e embalava os navios como berços. Engraçado é que conheci o mar
mas não foi com ele. Cada domingo que a gente ficava de ir acontecia
alguma coisa e acabei indo mesmo quando já andava com o Mariozinho.
O hotel ficava numa ruinha estreita cheirando a café porque tinha na
esquina um armazém de café. Chamava Hotel Las Vegas. Subimos a escada de
caracol e entramos no quarto. Então fiquei sentada na cama. Ele riu e
agradou meu queixo. Depois me deu um sabonete verde e avisou que o
banheiro ficava do lado. Não me envergonho de dizer que aprendi a tomar
banho com o Rogério. Você tem de tomar banho todo dia e lavar bem as
partes ele ensinou quando expliquei que em casa a gente só tomava banho
de bacia em dia de festa porque nas outras vezes só lavava o pé. E na
casa da minha patroa ela não gostava que eu me lavasse pra não gastar água
quente.
Quando voltei do banheiro embrulhada na toalha ele me deu pra vestir uma
cueca e uma camiseta com umas coisas escritas no peito. Ficou tudo muito
grande pra mim e me escondi muito envergonhada debaixo do lençol. Ele riu
e se deitou do meu lado. Você está com medo? ele perguntou. Confessei
que estava. Não tenha medo ele disse. E como beber um copo d'água.
Enquanto você estiver assim tremendo a gente não faz nada está bem
assim? Te ensino depois como evitar filho e outras coisas. Fechou a luz e
ficou fumando e eu fiquei sentindo o cheiro forte da fumaça e não sei
por que lembrei do meu pai quando ele passou o braço debaixo da minha
cabeça e chamou vem Joana.
Esse foi um tempo feliz. Rogério era muito paciente e muito bom pra mim.
Sempre me trazia um presentinho da rua e quando tinha mais dinheiro me
levava pra comer em restaurante. Se estava duro dizia estou duro e daí a
gente se arrumava com um sanduíche num bar por perto onde o dono era
amigo dele. Em todo bar que a gente ia o dono era amigo dele.
No sábado tinha cinema e depois o Som de Cristal que ele tinha paixão
por tudo quanto era dança e dançava pra danar. Tão alegre o Rogério
mas tão alegre. Foi com ele que aprendi a dizer não tem problema. Nada
de se aporrinhar porque a vida acaba ficando uma puta aporrinhação ele
repetia se eu me queixava de alguma coisa. Não tem problema Joana. Não
tem problema. Aprendi também a fazer amor e a fumar. Até hoje não
consegui gostar de verdade de fumar. Comprava cigarro e ficava fumando
porque todas as meninas em nossa volta fumavam e ficava esquisito eu não
fumar mas dizer que gostava isso não gostava não. Também fazia amor
tudo direitinho mas com uma tristeza que não sei mesmo explicar. Não sei
explicar por que justo esse sempre foi o pedaço mais sem graça pra mim.
Toda vez de ir pra cama eu inventava de fechar uma torneira que deixei
aberta ou ver se minha carteirinha de dinheiro estava dentro da bolsa. Vem
logo Joana que já estou quase dormindo o Rogério chamava. Quando não
tinha mais remédio então eu suspirava e ia mas com uma aflição que só
disfarçava se bebia antes um bom copo de vinho. Era depois do fuque-fuque
que o Rogério gostava de beber. E de cantar a modinha do marinheiro.
Cantava bem o Rogério e quando o Milani aparecia com o violão era aquela
festa. Cantava muito o Adeus Elvira que o sol já desponta e de todas as
modinhas eu preferia essa que me dava um ciúme porque ele quase chorava
enquanto ia chamando Elvira Elvira. E como o Milani respeitava a tristeza
dele eu ficava imaginando que essa tal de Elvira tinha existido.
Um dia achei o Rogério diferente. Comeu pouco. Falou pouco. Perguntei o
que era e ele respondeu que não era nada. Depois de um sanduíche que
comemos no quarto ficamos os dois debruçados na janela. A noite estava
uma beleza e foi me dando um sentimento muito grande. Não tem problema
Joana disse o Rogério passando o braço na minha cintura. Você é uma
pequena muito direita e ainda vai encontrar um sujeito bem melhor do que
eu. Escondi a cara na mão e nem consegui responder. Eu te quero Joana ele
disse. Mas sou um tipo que não pode andar com mulher e panelas sempre atrás.
Se te largasse até que te fazia um favor porque você precisa casar e não
perder seu tempo com um camarada assim maluco. Como eu continuasse
cobrindo a cara ele começou a me fazer cócegas e daí me beijou os
olhos. Suas sobrancelhas são arqueadas como as asas das gaivotas ele
disse. Você também não conhece gaivota mas no domingo que vem a gente
vai pra Santos e lá você vai ver que elas têm as asas que nem suas
sobrancelhas. E começou a contar uma historinha tão engraçada que
aconteceu no navio que acabei contente de novo.
Nessa noite ele foi muito carinhoso e me fez tanto agrado que cheguei a
perguntar por que a gente não casava duma vez e tinha filho. Ele sorriu.
Estava escuro mas senti que ele sorriu quando encostei a cabeça no seu
peito com aquele cheiro gostoso de sabonete. Acendeu um cigarro. Quando
acordei na manhã seguinte Rogério não estava. Desceu mais cedo pra
tomar café pensei. Nessa hora dei com a pulseira de pedrinhas vermelhas
em cima da mesa. Debaixo da pulseira tinha dinheiro. E um bilhetinho.
Escreveu numa letra bem grande e bem redonda pra eu entender mas a verdade
é que nem precisei ler pra saber o que estava escrito. As lágrimas
misturavam tanto as letras que eu já não sabia se elas estavam no papel
ou nos meus olhos. O bilhete dizia que ele tinha de seguir viagem e essa
era uma viagem comprida por isso o melhor mesmo era se despedir de mim.
Que eu ficasse com aquele dinheirinho pra alguma necessidade porque o
hotel estava pago até o fim do mês. Que procurasse o Milani pra me
ajudar quando precisasse de uma ajuda e que ficasse com a pulseira como
prova de afeição. Essa pulseira o Milani acabou vendendo.
Sem Rogério eu não podia achar mais nenhuma graça na vida. E agora
lembro que só depois que ele foi embora pra sempre é que eu vi como
gostava dele e como a gente tinha sido feliz naquele quartinho da rua com
cheiro de café. Chorei até ficar com o olho que nem podia abrir de tão
inchado. Depois fechei a janela e fiquei ali trancada no quarto só
querendo chorar e dormir. Só chorar e dormir no travesseiro dele porque
assim me representava que ele ainda estava ali. Veio o seu Maluf bater na
porta com medo que eu fizesse alguma besteira. Aqui não menina. Aqui não
que eu não quero encrenca no meu hotel. Se tiver de fazer pelo amor de
Deus vá fazer na rua. Respondi como o Rogério me ensinou a responder. Não
tem problema seu Maluf. Não tem problema. Tomei banho com o sabonete
dele. Vesti a camiseta com coisas escritas no peito que ele esqueceu na
gaveta e enquanto o perfume durou em mim fiquei pensando que tudo estava
como antes.
Minha vizinha dona Simone veio me consolar quando escutou minha aflição.
Homem é assim mesmo ela disse naquela fala enrolada que eu não entendia
muito bem porque era gringa. No meio da conversa soltava tudo quanto é
palavrão lá na língua dela que mulher pra dizer asneira estava ali.
Fazia o gesto ao mesmo tempo que falava. E virava a garrafa de vermute que
pra onde ia levava debaixo do braço. Falou demais num tal de Juju. E
acabou confundindo esse Juju com o Rogério. Tudo farrine do mesmo saque
berrou tão alto que seu Maluf voltou pra ver se a gente não estava
brigando. Depois ficou com sono e se jogou na minha cama com aquele bafo tão
forte que não agüentei e fui dormir no chão.
Voltou mais vezes. Usava um perfume que me enjoava por que ficava
misturado com bafo. A bendita garrafa debaixo do braço. Se sentava com as
pernas sempre pra cima porque o pé inchava demais e aí ficava bebendo e
xingando até cair no sono. Numa tarde veio quase pelada e me mandou ficar
pelada também. Começou a me agarrar. Expliquei que se nem com homem eu
gostava quanto mais com mulher. Ela riu e ficou dançando feito louca
agarrada no travesseiro. Depois cantou a música lá dos gringos e no meio
do choro me xingou e xingou o Juju. Até que caiu de porre atravessada no
chão do quarto. Tive de arrastar ela pra fora feito um saco de batata.
Nessa noite me deu vontade de me matar. Respeitei seu Maluf que não
queria confusão no hotel e fui pra rua comprar veneno. Bebo formicida no
jardim pensei. Mas quando fui passando pelo bar da esquina me deu uma fome
desgraçada. Foi então que encontrei o Arnaldo me perguntando se por
acaso eu não era a pequena do Rogério. Nem pude responder. Então ele se
sentou comigo no balcão. Disse que o navio do Rogério já devia estar
longe e que era melhor mesmo eu tirar ele da cabeça porque não era homem
de voltar nem pro mesmo porto nem pra mesma mulher. Aconselhou ainda que
eu bebesse cerveja porque formicida queima que nem fogo e cerveja sempre
lava o coração.
Arnaldo não era bonito que nem o Rogério e não tinha dinheiro nem pro
cigarro. Mas serviu pra me distrair. Disse que era artista de cinema e que
ia me botar pra trabalhar na mesma fita. Andei espiando por lá. Era uma
fita de alma do outro mundo misturada com gente viva que só aparecia
pelada ou então na cama. O papel dele era usar uma máscara medonha e
assim mesmo tão depressa que não dava tempo pra nada. Mal aparecia e já
sumia com os outros. Na próxima fita vou fazer o papel de galã ele vivia
dizendo. Ficou uma semana aboletado comigo no hotel e quando gastei minha
última nota ele fez a pista com aquela mesma cara contente que tinha
quando me encontrou no bar. Procurei então o Milani que me arrumou um
emprego de garçonete no bar Real. Fomos morar numa pensão cheia de
artista de circo e foi nessa pensão que conheci a Rubi. Perguntei se ela
também trabalhava no circo e me respondeu que já fazia muita palhaçada
sozinha sem precisar de contrato. Contou que era táxi e mais aquela
palavra que até hoje me enrola na língua quando digo. Me apresentou pro
seu Armando caso eu quisesse um dia trabalhar no salão.
Minha amizade com o Milani não durou. De dia ele ficava metido num negócio
de automóvel e até que ganhava dinheiro. Só voltava de noitinha justo
na hora em que eu saía pra trabalhar. Então se punha a beber e bebia
mesmo de não se agüentar de pé. Daí ficava ruim de gênio e quebrava
tudo que tinha em redor. Foi assim que perdi todos os presentes que Rogério
me deu. Numa só noite ele quebrou meu toca-discos e arrancou a porta do
guarda-roupa e jogou na calçada. Fiquei muito aborrecida e mandei que ele
sumisse pra sempre. Já vou já vou ele dizia enquanto ia jogando pra cima
as roupas da cômoda. Depois pegou no violão e saiu cantando pela rua
afora. Mais tarde um amigo veio me dizer que ele estava perdido de tanta
maconha e outras porcarias e um dia esse mesmo cara contou que ele tinha
casado. É verdade que fiquei um pouco triste mas está visto que nem
pensei em me matar como da primeira vez.
Foi nessa ocasião que Rubi ficou minha amiga. Os homens são uns safados
ela repetiu não sei quantas vezes. Vivi dez anos com um tipo que veio pra
mim mais pesteado do que um cão sarnento. Cuidei das pestes e das
bebedeiras dele. Deixou de beber e ficou bem-disposto que só vendo. Começou
a trabalhar de novo e teve sorte porque logo ganhou tanto que comprou um
carro. Eu devo minha vida a você ele vivia me dizendo. Eu estava morto
quando te encontrei e nem minha mãe ia ter paciência de me agüentar
como você me agüentou. Rubizinha Rubizinha você foi a minha salvação
vivia me repetindo. Fiquei feliz e justo na hora em que pensei que podia
descansar um pouco de tamanha trabalheira e viver em paz com meu homem ele
me deu um bom pontapé no rabo e foi se casar com uma priminha. Agora
tenho trinta e cinco anos e já estou escangalhada porque comecei com
quinze e não é brincadeira essa vida de dar murros de dia e de noite
ainda ter de fazer um extra com perigo de pegar filho e doença como já
peguei. Mas naquele tempo queria saber ao menos a metade do que sei hoje.
Ao menos a metade ela ficou me dizendo enquanto fazia furos com a ponta do
cigarro numa folha de jornal.
A pensão ficou cara demais. Então a gente alugou um quarto perto do salão
onde ela dançava. O almoço era de sanduíche e café que a gente fazia
escondido no fogareiro que a dona proibia. A desforra vinha no jantar se
por sorte aparecia algum convite Só então reparei como a cidade era
grande. Podia ficar andando e não repetia nenhuma rua. Puxa que nunca
imaginei que essa cidade fosse grande assim. E como não conhecia ninguém
achei uma maravilha morar num lugar onde a gente dá as cabeçadas que
quiser e nem o vizinho fica sabendo. E dei mesmo com a cabeça a torto e a
direito mas se ia com este ou com aquele nunca era por interesse porque não
sou dessas que têm o costume de pedir coisas em troca. A Rubi está aí
de prova porque mais de uma vez ela disse que sentia muita pena de mim
porque ela era igual quando tinha vinte anos. Que nem adiantava me
aconselhar porque meu miolo era mesmo mole e que quando eu fosse um caco
é que ia me lembrar de dar valor ao dinheiro.
Agora vem esse tira dizer que matei o velho pra roubar e que acabei
fugindo de medo. Pelo amor de Deus a senhora não acredite porque isso é
uma mentira. E uma grande mentira e a Rubi está de prova. E também seu
Armando que vivia me dizendo que Deus dá noz pra quem não tem dente. Até
hoje não sei o que seu Armando queria dizer com isso mas tinha qualquer
relação com esse negócio de não me aproveitar dos homens. Seu Armando
está aí de prova porque ele me conhecia muito bem e me achava a mais
direitinha lá do salão.
Meu emprego não presta pra nada Rubi me avisou antes de me levar pra
falar com seu Armando. Não tem sola de sapato que agüente e um dia
desses meu peito ainda arrebenta que nem corda de violão. A gente tinha
tomado uma média e ela ia conversando comigo enquanto fazia furos na
toalha com a ponta do cigarro. Rubi tinha essa mania. Até na cortina do
nosso quarto ela fez esses buracos. Contou que tinha ficado doente de
tanto pular com aquela homenzarrada e que se ainda continuava é porque
agora não tinha outro jeito senão ir até o fim. Mas que eu pensasse bem
se queria mesmo levar essa vida.
Respondi que meu emprego no Pierrô não era melhor do que o dela. Fazia
quase dois meses que a boate não me pagava nada e além do mais a polícia
vivia rondando porque o Guido que já era viciado começou a passar a
coisa pros fregueses. Não peguei o costume porque a única vez que
experimentei de brincadeira fiquei tão ruim que virei do avesso de tanto
que vomitei. Rubi então encolheu o ombro e me explicou como era o tal salão.
A gente tinha de dançar com um montão de caras que tiravam os tiquetes e
escolhiam as pequenas. Mas se precisam pagar pra isso é porque decerto são
uns lobisomens eu disse e ela riu. Até que de vez em quando aparece um
homem bonito mas vai ver tem isso ou aquilo que não funciona. Conheci um
tipo de costeleta que parecia artista. Fiquei besta quando vi um tipo
assim bacana metido com aquela raça de condenados e estava toda
satisfeita quando ele me tirou. Saímos atracados num bolero mas quando
ele abriu a boca pra falar tive de prender a respiração. A boca cheirava
a merda. Não se espante Leo que lá tem de tudo. E não ligar pra tanta
coisa maluca que aparece como a mulher que me tirou vestida de homem e tão
bem-servida que fiquei me perguntando onde ela foi arrumar um negócio
grande assim. O que a gente ouve então. E só botar o pensa- mento em
outra coisa e ir mexendo as pernas no compasso de cada um. Tem os que vão
só pra mexer as pernas mas a maior parte está mesmo querendo mulher e
precisa desse aperitivo. Se te interessa aceita. Mas não custa nada
apalpar um pouco o cara pra ver se não está armado. E cuidado com os
tiras que vêm com parte de te ajudar porque esses são 05 piores.
No começo pensei que ia morrer de tanta canseira. Dançava com os
fregueses das dez às quatro da manhã sem parar. E quando me esticava na
cama era horrível porque se a cabeça dormia o pé continuava dançando.
Rubi foi muito boa pra mim nessa ocasião e também o seu Armando que me
pagou muito lanche e me deu muito conselho. Nunca diga não pro freguês.
Responda de um jeito duvidoso e com isso ele não perde a esperança e
volta. Sua comissão aumenta. Também não prometa bestamente que vai num
encontro e depois não aparece que qualquer homem vira onça com essa história
de prometer e não ir. Sei de muita menina que passou um mau bocado por
causa disso. Dê a entender que por sua vontade você ia de muito bom
gosto mas que alguém está esperando e que pode até te matar se souber.
Tem drogado à beça. Não entre nisso que depois você não se livra
mais. E ainda pior do que cafetão. Vê se bota na cabeça que é um
trabalho como qualquer outro ter de dançar por obrigação e não pra se
divertir. Mesmo que ele te pise o tempo todo não perca a carinha alegre e
pergunte onde foi que ele aprendeu a dançar tão bem assim. Se ele te
agarrar demais diga então que o regulamento não permite e no abuso quem
perde o emprego é você com mãe e irmãozinho pra sustentar. Está visto
que ninguém mais acredita nessa história de mãe mas não custa tentar
que às vezes cola.
Não confessava nem pra Rubi mas no fundo do coração cheguei a esperar
que de repente aparecesse alguém que gostasse de mim de verdade e me
levasse embora com ele. Podia até ser alguém que me falasse em
casamento. E em toda minha vida nunca quis outra coisa. Mas Rubi que
parecia adivinhar meu pensamento me avisou que tirasse o cavalo da chuva
porque nenhum homem quer casar com uma mulher que fica atracada a noite
inteira com tudo quanto é cristão que aparece. Os tipos que transavam
pela zona eram mesmo sem futuro. Agradeça a Deus se algum deles não se
lembrar de te jogar pela janela ou te enfiar uma faca na barriga. E contou
um montão de casos que viu com os próprios olhos de pequenas
assassinadas por dá cá aquela palha. E a polícia não faz nada?
perguntei. Ela ia furando com o cigarro a revista da anedota. Não seja
burra Leo. Até que os tiras fazem e muito. Acho mesmo que são os que
mais fazem e se não ficam ricos é porque os sacanas acabam deixando o
dinheiro no mesmo lugar de onde arrancam.
Era bom quando seu Armando vinha prosear com a gente e de uma feita contou
que uma tal de Mira acabou se casando com um cara que vinha dançar e que
era dono de um montão de fazendas em Goiás. Hoje ela era uma granfa e
vivia aparecendo no jornal em festa até de rainha. Essa história me
animou demais. Mas quando seu Armando viu minha animação começou a rir.
Sossega Leo que esse negócio de abóbora virar carruagem está ficando
cada vez mais difícil. Em todo caso não perca a esperança que eu também
não perco a minha de encontrar um rio de ouro como aquele mendigo da
Califórnia.
Um santo o seu Armando. Pensando bem até que existe gente boa mas é difícil.
Ainda outro dia ele veio aqui me visitar. Se eu não fosse um duro com
quatro filhos pequenos pra sustentar era capaz de te contratar urna boa
defesa ele disse. Porque pelo visto só com muito dinheiro é que eu podia
me livrar da enrascada em que fui cair. E repetiu o que costumava repetir
quando une via numa apertura. Que eu ficasse confiante e não perdesse a
esperança. Que não perdesse a esperança. Não tem problema eu respondi.
E fiz aquela cara contente que aprendi a fazer quando no fim da noite
chegava mais um freguês querendo animação e eu só querendo desabar na
cama e dormir. Perguntou pelo meu primo que parecia ser tão importante.
Lembrei que Pedro foi sempre muito soberbo e que duas vezes já tinha
acontecido de não querer nem falar comigo. A primeira vez foi naquela
festa do teatrinho da escola e a segunda foi na enfermaria da Santa Casa.
Daí seu Armando que é crente lembrou que Pedro tinha negado Jesus três
vezes. Faltava ainda uma vez pra Pedro dizer que nunca me viu.
Rubi também veio me visitar e me animou tanto que chegamos a fazer uns
planos. Você vai ficar livre ela disse. Sonhei que vai e quando isso
acontecer a gente se muda sem nenhum conhecido por perto pra começar vida
nova. Vida nova Leo. Vida nova. Com comida na hora certa e um pouco de
sossego esse raio de doença não me pega mais pelo pé. E você também
vai trabalhar tudo direitinho e pode conhecer um tipo que seja jovem a
ponto de acreditar em casamento porque tem gente que ainda acredita. Então
vai estourar de feliz. Que tal Leo que tal esse programa? ela me perguntou
andando de um lado pra outro. Comecei a andar também. Isso mesmo. Não
perder a esperança. O dia de hoje é ruim? Amanhã vai ser melhor como
dizia o Rogério. E já ia repetir que não tinha problema mas nessa hora
me lembrei do meu advogado quando avisou que eu estava me afundando cada
vez mais. E o tira que me disse que no mínimo no mínimo eu ia pegar uns
quinze anos. Então abracei Rubi e chorei no seu ombro e chorava ainda
mais quando vi que ela estava chorando.
Que trapalhada que você foi fazer ela disse enxugando a cara e acendendo
um cigarro. No seu lugar também eu tinha feito o mesmo porque sei que o
velho era um grandessíssimo safado e teve o que mereceu. Mas é dono de
jornais e mais isso e mais aquilo. A vagabunda matou pra roubar é o que
repetem. Sei que não foi assim. Mas estão cagando pra o que eu sei.
Justo agora que a gente podia melhorar de verdade disse cuspindo o cigarro
com raiva. Acendeu outro e ficou soprando a brasa. Sempre sonhei com um
lugar sossegado e longe de toda esta confusão. Eu sarava e quem sabe
ainda arrumava um sujeito que não fosse esses maconheiros de merda que
vivem em nossa volta. Você criava juízo. Mas vai acontecer tudo ao contrário.
Você vai ficar aqui apodrecendo e eu vou continuar pulando e me
encharcando de bebida até o dia em que botar o pulmão pela boca. Tinha
de ser.
Achei que Rubi queria parecer furiosa andando de um lado pra outro mas
quando olhei a cara dela vi que estava tão desesperada que me deu uma
tremedeira e comecei a chorar de novo. Rubi Rubi pelo amor de Deus me diga
agora o que é que eu vou fazer berrei me atirando na cama. Ela não
respondeu. Andava sem parar feito um bicho. E ia repetindo que tinha de
ser assim. Depois sentou e com a brasa do cigarro começou a fazer aqueles
furos na bainha do lençol. Tinha de ser repetiu. Tinha de ser.
Engraçado é que agora que estou tanto tempo assim parada sempre me
lembro de uma ou outra coisa que aconteceu quando eu era criança. Aqui
faz muito frio. Frio igual só senti uma vez em que Pedro me empurrou pra
dentro da lagoa. Eu estava fazendo bonequinho de barro e Pedro recitava
uma poesia do livro de leitura. Estava tudo bem até que apareceu uma
menina e um menino montados em dois cavalos pretos. A menina usava botas e
o menino tinha um casaco de couro e botas também. Estavam vermelhos da
disparada e riam olhando pra nós dois. Que é que você está fazendo
nesse frio? perguntou a menina pra Pedro. Daí Pedro respondeu que não
estava com frio. Vocês dois estão roxos de frio disse o menino apontando
o chicote pra Pedro. Olha ai a cor do seu beiço. A menina balançou a
cabeça e começou a cantar de um jeitinho enjoado Pedro não está com
frio Pedro não está com frio. Daí Pedro se levantou como se tivesse
levado uma chicotada e disse que nem ele nem eu tinha frio e a prova é
que a gente tinha vindo tomar banho.
Fazia um frio pra danar e por isso não entendi por que Pedro foi inventar
essa história da gente entrar na água com um tempo desses. E já estava
mesmo disposta a dizer que não ia entrar na água coisa nenhuma quando
ele me agarrou pelo braço e antes que eu adivinhasse o que ele ia fazer
me puxou pra dentro da lagoa. Ficamos os dois sem poder respirar no meio
daquele gelo. Eu nem sentia mais meu corpo com a mão de Pedro agarrada no
meu braço pra que eu não fugisse.
Os dois ficaram quietos só olhando. A menina até abriu a boca de tão
espantada. E de repente os dois bateram no lombo do cavalo e foram embora
galopando. Duas vezes a menina ainda olhou pra trás. Saímos da lagoa. O
frio era tamanho e eu estava tão desanimada que me sentei no barro e
fiquei ali tremendo. Por que você foi fazer uma coisa dessas perguntei
pra Pedro enquanto ia torcendo a barra do vestido. A gente pode até
morrer e a mãe ainda vai botar a culpa em mim e decerto vou apanhar.
Ele tremia inteiro. Você não entende mas eu tinha de fazer isso. Agora
nunca mais vão perguntar na escola por que estou sem casaco e descalço e
se não sinto frio. Agora eles sabem que não sinto frio nunca e não vão
me perguntar mais nada.
Lembrei muito dessa tarde na noite que fez aquele frio de cachorro aqui na
prisão. E quando de manhã vieram me dizer que tinha uma visita pra mim
meu coração pulou de alegria. E o Pedro que leu o caso no jornal e veio
me ver correndo. Mas era a Segunda.
Puxa Leo que você mandou o velhote desta pra uma melhor ela disse rindo
enquanto me abraçava. E logo começou a contar as novidades lá do salão.
Contou que entrou no meu lugar uma pequena muito cafona chamada Janina.
Que a Rubi tinha amarrado um porre monstro e que fez com a ponta do
cigarro um monte de furos na roupa de um italiano que subiu pela parede de
raiva. Que o homem do cravo no peito sempre perguntava por mim.
Eu quis mostrar que não estava ligando e comecei a rir e ela ria também
mas notei que estava nervosa porque mascava o chiclete bem depressa como
naquela noite em que o Alfredo veio tirar satisfações dela. Então
apertei a cabeça e fiquei chamando minha Nossa Senhora minha Nossa
Senhora enquanto ela ia passando a mão no meu cabelo e querendo saber por
que justo eu que era tão boazinha fui fazer uma besteira dessas.
É o que me perguntam. Também não sei responder. Sei que nunca pensei em
matar aquele raio de velho. Deus é testemunha disso porque até de ver
matar galinha me doía o coração. Fugia pra dentro de casa quando dona
Gertrudes torcia o pescoço delas como se fosse um pedaço de pano. Deus
é testemunha. E agora vem o advogado e vem o tira me perguntar tanta
coisa. Mas eu já disse tudo o que aconteceu e não sei mesmo o que mais
que essa gente quer que eu diga.
Foi na tarde que inventei de comprar sapato porque o meu estava esbagaçado
e quando chovia meu pé ficava nadando na água. Não comprei porque o
dinheiro não deu e então como não tinha nada que fazer fui olhar
vitrinas. Foi quando dei com o vestido marrom.
Amaldiçoada hora essa. Amaldiçoada hora que enveredei por aquela rua e
parei naquela vitrina, O vestido estava numa boneca que tinha o meu corpo.
E pensei que decerto ia servir pra mim e que era o vestido mais lindo do
mundo. Foi quando ouvi uma voz perguntando bem baixinho se eu não queria
aquele vestido. No vidro que parecia um espelho estava a cara do velho.
Era gordão e mole que nem geléia. Juro que tive vontade de rir quando me
lembrei daquela história do Sonho de Valsa que a Rubi me contou
estourando de raiva. E uma historinha muito suja de um velho que tinha
paixão por esse bombom mas só queria comer de um jeito e esse jeito era
tal que até hoje a Rubi fica bufando só de ouvir essa palavra valsa. Me
lembrei disso e juro que tive vontade de rir porque pensei que o velho do
bombom bem que podia ser aquele dali. Mas fiquei firme porque já disse
que dinheiro nunca me fez frente e a Rubi mesmo vivia caçoando de mim
porque tinha mania de andar com esmolambentos. Juro que quis continuar meu
caminho mas lá estava o vestido com aquela rosa de vidrilho vermelho no
ombro. Quando ele fez a pergunta pela segunda vez então não agüentei e
respondi que se ele quisesse me dar eu aceitaria sim com muito gosto.
Uma vendedora ruiva veio toda contente cumprimentar o velho. Os dois já
se conheciam. Esta menina quer aquele vestido da vitrina ele disse. O
vestido me assentou feito uma luva e a vendedora então me aconselhou que
fosse com ele no corpo porque estava uma beleza. Fiquei zonza. E que nunca
tinha visto um vestido assim caro e quando me olhava no espelho e passava
a mão na rosa de vidrilho minha vontade era sair rodopiando de alegria. O
caso é que tinha agora de aturar o velho. Mas já tinha aturado tantos
sem vestido nem nada que um a mais um a menos não fazia diferença.
Na rua é que me lembrei que tinha deixado lá dentro da loja o meu
vestido branco. Vou buscar meu vestido que esqueci eu disse mas o velho
agarrou no meu braço e rindo um risinho meio esquisito falou que eu era
muito engraçadinha por querer fugir fácil assim. Eu não estava querendo
fugir coisa nenhuma e me aborreci muito quando escutei isso. Mas achei que
tinha de ter paciência com ele e ir agüentando o tranco com a cara bem
satisfeita que outra coisa não tenho feito desde que nasci.
Quando entrei no automóvel é que reparei o quanto o velho devia ser rico
pra ter um carrão daqueles. O quanto era rico e feio com aquele jeito de
peru de bico mole molhado de cuspe. O rádio tocava baixinho umas músicas
tão delicadas mas o velho não parava de falar e fazer perguntas. Depois
sossegou e eu preferi muito porque assim só ouvia o rádio e não carecia
mais de ficar olhando pra cara dele. Não é que fosse tão feio assim. O
nariz era bem-feito e os olhos azuis pareciam duas continhas, O que eu não
agüentava era aquela boca inchada e roxa como se tivesse levado um murro.
Mas não quis pensar nisso. Tinha um vestido novo como nunca tive um igual
e estava num carro e minhas colegas iam ficar verdes de inveja se me
vissem. Arre que ao menos uma vez você criou juízo a Rubi decerto ia me
dizer. E fui indo tão contente assim perdida nessas idéias que nem vi
que o automóvel corria agora por uma estrada.
Aqui a gente pode conversar melhor ele disse parando perto de um barranco.
E foi logo agarrando na minha coxa e me puxando pra mais perto. Quando
senti aquela boca molhada me lamber o pescoço me deu um bruta nojo mas
disfarcei e fiquei firme quando a boca veio subindo e grudou na minha. Vi
que ele queria me desabotoar mas não achava o botão e até que facilitei
mas mesmo assim acho que ele adivinhou meu nojo porque ficou fulo de raiva
e começou a dizer que se eu quisesse bancar a cachorrinha me largava ali
mesmo.
Juro que eu estava disposta a aturar tudo porque sabia muito bem que a
gente não ganha nada fácil não senhora. Rubi mesmo costumava dizer que
homem nenhum diz bom-dia de graça. Eu ia pagar sim mas quando escutei
aquela conversa de descer e voltar a pé fiquei feliz da vida porque está
visto que eu não queria outra coisa. Mesmo que a cidade estivesse longe
ia ser uma maravilha andar sozinha por aquelas bandas e ainda por cima
respirando o cheirinho de mato que fazia tempo que eu não respirava.
Tomara que ele me faça descer agora pensei. E quando veio aquela mãozona
me apertando de novo e me levantando o vestido endureci o corpo e fechei a
boca bem na hora em que me beijou. Sai já daqui sua putinha ele gritou. A
bochecha cor de terra tremia. Sai já. Não esperei segunda ordem e ia
abrindo a porta quando ele agarrou no meu braço avisando que eu podia
bater as asas mas antes tinha de deixar a linda plumagem. Não entendi que
plumagem era essa. Ele riu aquele riso ruim e puxando meu vestido disse
que a plumagem era isso. Fiquei desesperada e comecei a chorar que ele não
me tirasse o vestido porque podiam me prender se me vissem assim pelada. Não
se pode fazer com ninguém uma indecência dessas mesmo porque eu ia pagar
o presente não ia? Não tinha problema. Foi o que eu disse e disse ainda
que prometia ser boazinha e fazer tudo o que ele quisesse.
Juro que quis ficar de bem e até pedi muitas desculpas. O caso é que não
era mesmo muito esperta e minha colega Rubi vivia até me passando pito
por causa desse meu jeito. Mas não tinha problema. Me arrependia muito da
malcriação que tinha feito sem intenção e prometia ser boazinha. Até
hoje não sei por que nesse pedaço ele ficou com mais raiva ainda e começou
a espumar feito um touro me chamando disso e daquilo. Fui ficando ofendida
porque eu não era não senhora aquelas coisas que ele dizia. E depois não
tinha nada de puxar o nome da minha mãe que era mulher que só parou de
trabalhar pra deitar a cabeça no chão e morrer. Isso não estava certo
porque nela que estava morta ninguém tinha de bulir. Ninguém.
Foi o que eu disse. E disse ainda que não merecia tanta xingação porque
trabalhava das dez às quatro num salão de danças. E se ia com este e
com aquele era por amor mesmo. Era por amor.
O bofetão veio nessa hora e foi tão forte que quase me fez cair do
banco. Meu ouvido zumbiu e a cara ardeu que nem fogo. Eu chorava chorava
pedindo a ajuda da minha mãe como sempre fiz nas aperturas.
O outro bofetão me fez bater com a cabeça na porta e a cabeça rachou
feito um coco. Apertei a cabeça na mão e pensei ainda no Rogério que um
dia surrou um cara só porque ele esbarrou de propósito no meu peito.
Agora estava apanhando que nem a pior das vagabundas. Me deixa ir embora
pelo amor de Deus me deixa ir embora pedi me abaixando pra pegar minha
bolsa. Foi então que num relâmpago o punho do velho desceu fechado na
minha cara. Foi como uma bomba. Meu miolo estalou de dor e não vi mais
nada. De repente me deu um estremecimento porque uma coisa me disse que o
velho ia acabar me matando. Meu cabelo ficou em pé. Ah meu pai ah meu pai
comecei a chamar. Acho que gritava de medo e dor mas nem lembro disso.
Lembro que só queria fugir e dei com as costas na porta com toda força
mas ela estava bem-fechada. Fui escorregando no banco. E já ia cair
ajoelhada quando ele me agarrou de novo e me sacolejou tão forte que
fiquei de quatro no fundo do carro. Nessa hora achei uma coisa fria e dura
no chão. Era o ferro. Agarrei o ferro e pensei depressa depressa nas
brigas que tinha visto no bar Real e nos homens que levavam cadeiradas e
caíam desmaiados mas logo se levantavam como se não tivesse acontecido
nada. Num salto me levantei e quando ele me puxou de novo pelo cabelo e me
sacudiu assentei o ferro na cabeça dele. Assim que comecei a bater fui
ficando com tanta raiva que bati com vontade e só parei de bater quando o
corpo foi vergando pra frente e a cabeça caiu bem em cima da direção. A
buzina começou a tocar. Tive um susto danado porque pensei que ele
estivesse chamando alguém. Mas ele parecia dormir de tão quieto.
Fique agora aí beijando a buzina seu besta. Fique aí eu repeti e ele nem
se mexeu. Me abaixei pra ver a cara dele e dei com aquela boca aberta como
se quisesse me morder. O olho arregalado.
Comecei a suar frio. A buzina que não parava e aquele sangue gosmento e
morno que não sei como pingou na minha mão. Fiquei maluca. Limpei
depressa o dedo na almofada e catei minha bolsa. Fuja Leo eu disse pra mim
mesma. Fuja fuja. Levei um bruta susto quando me vi disparando pela
estrada com um sapato em cada mão e com aquela buzina correndo atrás e
eu querendo correr mais depressa até que aquele onnnnnnnnnnnnn foi
ficando mais fraco. Mais fraco. Parei pra respirar esfregando o pé na
terra como fazia quando era criança. A brecha na cabeça já tinha
fechado mas a boca doía pra danar porque o lábio partiu no murro. Um
automóvel que passou na toda me assustou e fui então andando bem
achegadinha ao barranco para me esconder dos carros.
Anoitecia e tive um medo daqueles no meio da escuridão que era uma
escuridão diferente das estradas de Olhos D'Água. Minha Nossa Senhora o
que significa isso. O que significa isso fui repetindo enquanto ia
chorando como só chorei quando Rogério me largou. E que me Lembrei da
minha mãe. De Pedro. Da minha irmãzinha. Justo naquela hora é que Pedro
saía comigo pra catar vagalume. A sopa na panela. A coisa melhor do mundo
era tomar aquela sopa quente. E minha mãe com sua carinha conformada e
Pedro pensando sempre nos seus livros e minha irmãzinha pensando nas suas
minhocas e crescendo linda como os anjos. Agora tinha acontecido tanta
encrenca junta. Não tem problema o Rogério dizia. Mas pra meu gosto já
fazia tempo que tinha problema até demais. Então estava certo? Dançando
a noite inteira com uns caras que vinham pisando feito elefante e me
apertando e beliscando como se minha carne fosse de borracha. Pobre ou
rico era tudo igual com a diferença que os pobres vinham com cada
programa que Deus me livre.
Fui andando mais depressa e pensando como a vida era ruim ainda mais agora
com essa trapalhada do velho. E me veio de repente uma saudade louca do
Rogério que tinha sido o melhor de todos os homens que conheci. Também
senti um pouco de falta do Bruno e do Mariozinho mas mais ainda do Rogério
rindo e contando casos enquanto a gente descascava laranja na janela do
hotelzinho cheirando a café.
Acordei gritando com aquela buzina forte bem debaixo do travesseiro. Pelos
buracos da veneziana vi que já era dia. Rubi tinha dormido na rua. Foi um
sonho ruim pensei. Um sonho ruim e se Rubi não tivesse dormido fora eu ia
pedir pra ela ler naquele livro dos sonhos o que era sonhar com essa
embrulhada. Foi sonho. Foi sonho. E de repente dei com a rosa de vidrilho
brilhando no escuro. Olhei minha mão onde tinha pingado o sangue da cor
da rosa. Tive vontade de me enterrar no colchão.
Matei o velho. Matei o velho fiquei repetindo não sei quantas vezes sem
poder despregar os olhos da rosa vermelha. Comecei a suar frio. Atirei
longe a coberta e saltei da cama. Tudo besteira eu disse pra mim mesma.
Ninguém morre assim à-toa. Anda Leo anda. Anda e não pense mais nisso
porque o velho não morreu coisa nenhuma e a essas horas já está pulando
por aí. Decerto quer me matar de ódio mas foi bem-feito porque ninguém
mandou ser um malvado e encher a cara da gente de bofetão.
Abri a janela e o sol entrou no quarto. O despertador marcava duas horas.
Então fiquei animada porque o dia estava uma maravilha e eu estava com
uma fome louca. Comi o resto do bolo que Rubi tinha trazido da festa. Vou
contar tudo e ela vai dar muita risada pensei enquanto me vestia. Desta
vez não vai dizer que meu miolo é mole mas vai me achar até inteligente
porque ganhei um vestido e dei uma lição num ricaço. Eles têm a mania
de cuspir no prato onde comem Rubi me disse. Mas agora não ia dizer nada
porque até um vestido ganhei sem precisar fazer aquilo que conforme já
expliquei nunca me divertiu de verdade. Eu estava contente que só vendo.
A senhora não pode fazer idéia como eu estava contente.
Donana varria a calçada. Que vestido bacana ela disse e eu fui indo e
gostando de ver como o sol fazia brilhar minha rosa de vidrilho.
Saí pra ver se achava a Rubi e acabei não sei como defronte daquela
vitrina. A mesma boneca vestia agora um vestido azul.
Diga se você quer esse vestido perguntou um homem atrás de mim. Quase
tive um ataque de susto. E o velho pensei. É o velho que voltou e agora
vou apanhar aqui mesmo na rua. Olhei apavorada pro vidro da vitrina como
da outra vez. Então respirei. Era um moço falando com a namorada que riu
dizendo que o vestido era medonho.
Já que estou aqui mesmo aproveito e peço meu vestido branco que esqueci
na cadeira eu pensei. Amaldiçoada hora essa. Minha Nossa Senhora que é
que eu tinha de pedir aquele vestido de volta? Ainda ontem a Rubi me disse
que se eu não tivesse voltado lá nunca ninguém no mundo ia saber que eu
tinha liquidado o velho. Ninguém me conhecia. E nem eu mesma ficava
sabendo do crime porque não leio jornal. Cabeça de pau ela berrou
encostando o cigarro na parede como se quisesse fazer um furo ali. Sua
tonta. Por que voltou lá por quê? Nem arrependida você ia ficar nem
isso. Ninguém te conhece ninguém. Nem você mesma ia ficar sabendo.
Mas foi como se uma coisa tivesse me arrastado e agora eu estava parada na
porta e procurando ver lá dentro a vendedora ruiva. Peço meu vestido e
se ela perguntar do velho digo que não sei. Melhor entrar pra pedir meu
vestido porque se fujo vai ser pior.
Justo nessa hora tive um pressentimento. Meu cabelo arrepiou. Fuja Leo.
Fuja depressa depressa. Pelo amor de Deus fuja agora sem olhar pra trás
fuja fuja. Quando dei o primeiro passo pra correr a vendedora ruiva me
viu. Ela estava proseando com um homem encostado no balcão. Assim que me
viu ficou de boca aberta olhando. Depois me apontou com o dedo.
O homem dobrou o jornal e veio vindo devagar pro meu lado. Fiquei pregada
no chão. Ele veio vindo veio vindo com um risinho na boca e com um jeito
de quem não está querendo nada. Botou a mão no meu ombro. Belezinha do
vestido marrom venha comigo mas bico calado. E me trouxe pra ca.
Lygia Fagundes Telles - Escritora; membro
da Academia Brasileira de Letras e Prêmio Cidadania Mundial 1 996.
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