Comentário
ao Artigo 19º

Em
todas as declarações dos direitos humanos, há uma questão subjacente
pouco pensada e não resolvida: quem é o responsável pela observância
e pela implementação dos direitos humanos? quais as mediações
coletivas que garantem a vigência dos direitos?
A
Revolução Francesa entregou essa tarefa, fundamentalmente, à classe
hegemônica, à burguesia e às suas instituições. Efetivamente,
ela criou para si as condições político-sociais que realizam e
fazem valer os direitos proclamados, Os proletários e 05 pobres
ficaram com o discurso, mas foram colocados à margem ou até excluídos
dos processos de participação do mundo de direito. Perde-se assim
a universalidade concreta, inerente aos direitos humanos.
A
declaração da ONU encarrega, fundamentalmente, o Estado como o
primeiro responsável pela criação das condições infra-estruturais
da vigência dos direitos para todos. Entretanto, numa sociedade
de classes, a natureza do Estado é inevitavelmente classista.
Quer dizer que ele, em primeiro lugar, vai zelar pelos direitos
daqueles que lhe dão sustentação e, em seguida, de forma derivada,
atende aos interesses das classes subalternas.
Novamente,
as mediações não conseguem universalizar a realização e a observância
dos direitos humanos. As grandes maiorias, nos Estados de regime
politicamente liberal e economicamente capitalista, vêem-se estruturalmente
violadas em seus direitos, porque se privilegia o capital sobre
o trabalho, a cidade sobre o campo, o saber escolar sobre o saber
popular.
A
revolução socialista propôs-se a realizar 05 direitos a partir
das grandes maiorias oprimidas, mas confiou ao partido único a
tarefa de organizar o Estado e implementar 05 direitos de todos.
Com isso, criou uma nova marginalidade de todas aquelas forças
(associações civis, universidades, Igrejas, etc.) não englobadas
pelo partido. Garantiu para as maiorias os direitos infra-estruturais
econômicos, mas negou-lhes os direitos políticos de participar,
opinar e controlar o poder do Estado. Fez a revolução da fome,
mas não a da liberdade.
A CONTRIBUIÇÃO
LATINO-AMERICANA PARA OS DIREITOS HUMANOS
É
nesse contexto de crise do quadro institucional dos direitos humanos
que surge a contribuição singular da América Latina: as próprias
maiorias que se sentem violadas assumem, mediante suas organizações,
a cobrança da universalidade dos direitos e a sua defesa. Entendem
que a luta pelos direitos humanos é uma luta política, quer dizes
é uma luta que visa a transformar o tipo de sociedade que temos,
pois é ela a principal violadora sistemática dos direitos. Para
serem realmente universais, os direitos humanos devem começar
a ser realizados a partir das vítimas, daqueles que foram excluídos
dos processos de direito. A vida — o direito maior — é garantida
a todos quando se inicia sua promoção e defesa a partir dos forçados
a morrer antes do tempo. Essa aparente parcialização é condição
da universalização dos direitos. O direito à vida e à justiça
é somente universal se começar por ser direito à vida e à justiça
dos condenados da Terra. Se começar pelos beneficiados do sistema
social imperante (nas sociedades liberais, pelos burgueses e no
socialismo, pelos membros do partido), então, sim, parcializamos
a questão dos direitos humanos, porque marginalizamos ou excluímos
os membros das classes subalternas.
Essa
recolocação do problema criou uma linguagem alternativa: ao invés
de se falar simplesmente em direitos humanos, começou-se a falar
em direitos das maiorias empobrecidas e a partir dos oprimidos.
Esse deslocamento dos acentos permitiu perceber que há uma hierarquia
dentro dos direitos. Em primeiro lugar, o direito à vida para
todos; em seguida, o direito aos meios da vida que são o direito
ao trabalho, á saúde, à moradia e à educação como aquele mínimo
de cultura que permite a comunicação entre todos os seres humanos;
a seguir, o direito á liberdade de pensamento, de expressão, de
consciência, de religião e de informação; por fim, os direitos
da natureza, do sistema-Terra, dos organismos vivos, enfim, da
vida em sua unicidade e pluralidade de manifestações.
Essa
hierarquização dos direitos desmascara os discursos dos sistemas
imperantes. Estes não podem comprometer-se seriamente com a defesa
dos direitos humanos sem negar-se como sistema imperante, sem
reconhecer que a forma como se organizam comporta uma violência
aos direitos das grandes maiorias, negadas em direitos fundamentais
de participação social, em trabalho, saúde, moradia e educação.
A
forma como as classes populares excluídas garantem seus direitos
por elas mesmas é mediante suas organizações. Daí nascem o Movimento
dos Sem-Terra, dos Sem-Teto, das Favelas, da Saúde, da Educação,
dos Negros, da Mulher Marginalizada, dos Meninos e Meninas de
Rua e outros tantos. Se bem repararmos, tratase sempre de uma
luta organizada pelas próprias vítimas por direitos fundamentais
negados pela sociedade imperante.
No
contexto da contribuição latino-americana à compreensão dos direitos
humanos, foi importante a reflexão dos cristãos, especialmente
daqueles que se orientam pela Teologia da Libertação. Fizeram
a surpreendente constatação de que a concepção bíblica dos direitos
humanos é semelhante e em alguns pontos coincide com aquela elaborada
pelas classes populares. Os direitos básicos, segundo a Bíblia,
são aqueles dos pobres, dos peregrinos, dos órfãos e das viúvas.
Como estas pessoas não têm ninguém que as defenda, Deus as toma
sob seus cuidados. Por isso, seus direitos são direitos de Deus.
Deus está tão ligado à vida e à sorte dos que precisam dos meios
de vida que a fidelidade a Ele e o culto que Lhe é devido passam,
impreterivelmente, pela compaixão pela vida sofrida e pela solidariedade
com aqueles que lutam pela vida e por sua dignidade.
DIREITO
À LIBERDADE DE OPINIÃO E EXPRESSÃO COMO DIREITOS DA
ESSÊNCIA HUMANA
A
moderna antropologia, vinda da biologia genética, da teoria dos
sistemas abertos e da nova cosmologia, sustenta a hipótese de
que a singularidade do ser humano, sua essência, reside em sua
capacidade de falar. A fala não é apenas um meio de comunicação.
E a maneira como o ser humano pensa, ordena o mundo e constrói
continuamente a realidade. É pela fala que surgem a consciência
e a inteligência. É a fala que dá origem à sociabilidade humana.
Os estudos de Humberto Maturana, Francisco Varela, Edgar Morin,
Elisabet Sahtouris e outros sobre esse fenômeno ganharam bastante
consenso na comunidade científica mundial.
Se
assim é, importa dar especial relevância ao que vem
dito no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião
e expressão”. Negar esse direito é negar diretamente
a humanidade singular do ser humano como um ser de fala
e pela fala de criador de seu mundo. Daí, o direito à
vida deve ser interpretado como direito ao tipo de
vida singular do ser humano, que é uma vida urdida de
fala e de comunicação.
Não
é sem razão que quando se instalam ditaduras e sistemas de forte
controle religioso a primeira medida tomada visa a silenciar as
pessoas e a tolher-lhes a palavra. Tal violência as mata como
pessoas, embora as deixe fisicamente vivas. Da mesma forma, a
primeira manifestação de poder dos oprimidos é quando recuperam
a fala e gritam seus direitos. A fala os institui como seres humanos
falantes. Dois notáveis filósofos políticos, Karl Otto Apel e
Júrgen Habermas, colocam na ética do discurso e no agir comunicativo
a nova centralidade do pensamento e a nova radicalidade social.
É pela fala e pela ação comunicativa que os seres humanos engendram
a sociedade, constróem seus consensos e mantêm sob permanente
controle os mecanismos de gerenciamento e de poder.
Ocorre
que as grandes maiorias da humanidade são maiorias
silenciadas a quem se nega o direito de fala e de
expressão. Por isso, essa visão antropológica exerce
uma permanente função crítica em face das sociedades
dominantes que se organizam de tal forma que negam
permanentemente a humanidade de seus membros por lhes
tirarem a fala e a expressão. E ao mesmo tempo convocam
os silenciados para que assumam o poder da fala,
instaurem suas formas de expressão como busca de um
direito essencial, derivado da própria natureza do ser
humano como um ser de fala e de expressão.
Muito
há a fazer para que esse direito ganhe cidadania nas consciências
e nas formas de organização social e comunitária do atual estágio
de evolução política da humanidade. Mas sua aceitação abre um
campo novo de luta política e civilizatória para, ao garantir
a fala e a expressão a todos, construir e reconstruir permanentemente
a essência humana.
Leonardo
Boff – Teólogo, escritor, professor de Ética da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro e autor de vários livros nas áreas
de teologia, filosofia, antropologia e espiritualidade
A lei é a mesma para todo
mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distinção.
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