
Artigo do
Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-diretor do Instituto de
Pesquisa em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty, publicado no Jornal
do Brasil - "Alca, o controle neoliberal"
20 de abril
de 2001
Samuel Pinheiro Guimarães
As negociações da Alca são muito mais
amplas do que as de formação de uma área de livre comércio
tradicional. Seus efeitos poderão ser - muito mais profundos do que a
mera ampliação ,do comércio de bens e serviços. Assim, as
estimativas que vêm sendo apresentadas de quanto aumentariam as exportações
brasileiras, e que setores e empresas se beneficiariam com a derrubada
de barreiras tarifárias e não tarifárias nos .Estados Unidos e nas Américas,
discutem apenas a questão mais superficial dessa iniciativa estratégica
dos Estados Unidos, a Hiperpotênria, e ocultam suas principais conseqüências.
A principal conseqüência da Alca será
a rad??
ical limitação e até mesmo eliminação, por tratado
internacional de que participará a maior potência do mundo, da
capacidade soberana do Estado brasileiro de articular, estimular e
prmover, através de políticas comerciais, industriais, tecnológicas,
agrícolas e de emprego, o desenvolvimento econômico, como tal
entendidos a acumulação de capital; a diversificação e integração
do parque produtivo; o aumento da produtividade e o emprego da mão-de-obra;
a redução gradual das disparidades, inclusive regionais, e da
vulnerabilidade externa.
O corolário desse processo de redução
negociada da soberania será, como é natural, a diminuição da
possibilidade do Brasil promover e defender seus interesses de toda
ordem, inclusive políticos e estratégicos, na dinâmica de um mundo
multipolar que está emergindo, com a progressiva formação do Estado
europeu, a emergência econômica e política da China, futuro maior PIB
do planeta, e, em um segundo plano, o Japão, a Rússia e a índia. Esse
mundo multipolar será, como tudo indica, violento, arbitrário e
concentrador de riqueza, poder e conhecimento.
O Brasil, por suas características de
extenso território, grande população, recursos naturais abundantes, nível
de desenvolvimento industrial, capacidade tecnológica, unidade de
idioma, ausencia de agudos conflitos religiosos e étnicos, reúne condições
mais do que suficientes, mesmo quando comparado àqueles países, para
participar desse processo de forma autônoma, caso não se deixe
incorporar a nenhuma das esferas de influência que se organizam, levado
pelas sereias ideológicas do pan-americanísmo, do "livre"
comércio e da integração.
A Alca tem como seu objetivo centr??
al
criar um conjunto de regras, que, limitando a capacidade de formular e
executar política econômica, incorpora de forma assimétrica e
subordinada a economia brasileira ao território econômico (e ao
sistema político) norte-americano. Somente remotamente tem ela a ver,
na concepção estratégica americana, com os micro, mini, pequenos e médios
Estados das Américas.
Depois da Alca, o Brasil não mais poderá
exercer políticas capazes de atrair e disciplinar os investimentos
estrangeiros, de forma a ampliar a capacidade instalada, estimular a
criação e integração das cadeias produtivas, promover a transferência
efetiva de tecnologia, e o fortalecimento do capital nacional. As
megaempresas multinacionais poderão vir a adquirir, no espírito do
esdrúxulo projeto de Acordo Multilateral de Investimentos, um poder
superior ao dos Estados nacionais,
Depois da Alca, o Brasil não mais poderá
exercer políticas comerciais, industriais e tecnológicas efetivas,
capazes de criar novas vantagens comparativas dinâmicas pelo estímulo
ao surgimento de empresas, pois não terá mais nenhuma possibilidade de
proteger tais empresas da competição avassaladora das rnegaempresas já
existentes nesses setores, pois não terá mais tarifas e barreiras não
tarifárias, em especial e provavelmente em setores de tecnologia mais
avançada.
Depois da Alca, o Brasil não mais poderá
utilizar o poder de compra do Estado para fortalecer a empresa nacional,
desenvolver novas tecnologias, aumentar sua escala de produção e ter
empresas capazes de disputar mercados no exterior, em qualquer região
do mundo, por não estarem vinculadas aos esquemas de divisão de
mercados praticados pelas multinac??
ionais.
Depois da Alca, o Brasil se tornará
ainda mais indefeso diante do poder, agora acrescido, dos detentores de
tecnologia e não disporá mais dos investimentos necessários para
combater os abusos decorrentes do uso anti-social de patentes, como o
caso das patentes farmacêuticas revelou de forma escandalosa.
Depois da Alca, não haverá, para todos
os fins práticos, mais Brasil, como possibilidade e visão de construção
de uma sociedade mais democrática, mais justa, menos desigual, mais próspera,
de acordo com os traços nacionais e culturais que a duras penas os
brasileiros vinham construindo ao longo de séculos, contra a crua
opressão colonial e, hoje, o sofisticado controle neocolonial.
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