
O
Plebiscito sobre a Alca
A Alca
não é uma fatalidade histórica a que tenhamos que nos submeter
Aloizio Mercadante
A Alca (Área de
Livre Comércio das Américas) é muito mais do que uma proposta
de liberalização comercial, como está formalmente enunciada.
Trata-se, isto sim, de um projeto estratégico dos Estados Unidos
de consolidação de sua dominação sobre a América Latina, por
meio da criação de um espaço privilegiado de ampliação de
suas fronteiras econômicas.
A implantação da Alca representará o aprofundamento
da abertura e da desregulamentação econômica e
financeira que conduziu ao debilitamento político
dos Estados nacionais latino-americanos e à fragilização
de suas economias. Não por acaso o processo de
integração proposto e já em andamento desde a
realização da 1ª Cúpula das Américas, em Miami,
em dezembro de 1994, inclui nove grupos de negociação
e três comitês especiais, nos quais estão sendo
decididas as regras e as normas que vão regular
desde a redução das barreiras tarifárias e as
políticas de subsídios, antidumping e medidas
compensatórias até temas extremamente sensíveis,
como os investimentos (desregulamentação do fluxo
de capitais na região e proteção dos investimentos
externos de eventuais ações dos Estados), as compras
governamentais (abertura ao capital estrangeiro),
a propriedade intelectual (proteção dos interesses
das grandes corporações, particularmente nas áreas
farmacêutica e de biotecnologia) e os serviços
(abertura ampla aos investidores externos).
A proposta, portanto, atinge todas as áreas, com repercussões tão
graves quanto previsíveis, dada a enorme assimetria existente
entre os Estados Unidos e as demais economias da região, em
termos não somente de tamanho (o PIB norte-americano representa
71% do PIB de todo o hemisfério), mas também de produtividade,
escalas de produção, eficiência e competitividade sistêmica.
Isso não exclui que algumas economias menores
possam obter vantagens econômicas, ainda que aprofundando
a sua condição de satélite da economia norte-americana,
ou que algumas poucas empresas ou setores específicos
possam beneficiar-se do processo de integração.
As economias de maior porte, no entanto, têm muito
mais a perder do que a ganhar com a Alca. E, dentro
delas, o Brasil - uma economia continental com
vocação multilateral de comércio exterior que
não pode ser reduzida a uma plataforma de exportação
e, além disso, o único país latino-americano com
condições potenciais de contestar a hegemonia
norte-americana na região será o grande perdedor.
Nossa estrutura produtiva e de recursos não é
complementar à norte-americana. Ao contrário,
somos concorrentes em vários segmentos (automóveis,
aço, suco de laranja e soja, por exemplo). O nível
de integração de nosso sistema produtivo, nossas
escalas de produção e nossa capacidade endógena
de desenvolvimento tecnológico são muito menores,
o que, somado às deficiências em nossa infra-estrutura
básica, nos coloca em uma situação de extrema
inferioridade no tocante à produtividade e à competitividade
global da economia. Nessas circunstâncias, a liberalização
dos fluxos de mercadorias, serviços e capitais
tende a ser uma estrada de uma só via, com impactos
destrutivos sobre a estrutura e a dinâmica do
sistema produtivo nacional.
A experiência dos anos recentes é ilustrativa do que pode vir a
ocorrer com a implantação da Alca. A abertura comercial radical,
acompanhada pela sobrevalorização da moeda, promovida pelo Plano
Real, além de induzir a um processo de desindustrialização,
gerou perdas significativas no intercâmbio comercial do país com
o exterior. No período 1994/97, por exemplo, nossas exportações
para os Estados Unidos cresceram apenas 5,22%, enquanto nossas
importações daquele país aumentaram 116,52%. E, embora depois
da crise cambial de janeiro de 1999 se tenham corrigido alguns dos
"excessos" da fase anterior, o balanço do período
1994/2000 ainda é altamente negativo.
Para o Brasil, portanto, o problema não é discutir
modalidades de integração, condições ou prazos
da Alca. A essência do problema é que a Alca,
à margem de ganhos eventuais para esse ou aquele
grupo, não responde aos interesses estratégicos
nacionais. Fazer prevalecer esses interesses implica
dizer "não" a essa proposta que nos
fará regredir a uma condição neocolonial. O Brasil
entrou muito mal na OMC (Organização Mundial do
Comércio) pelas mãos do então ministro Ciro Gomes
e dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique
Cardoso. E está repetindo o erro com a assinatura
da Carta de Intenções de adesão à Alca e a ausência
de iniciativas políticas que detenham o desmonte
do Mercosul e promovam a discussão de outras propostas
de integração, que preservem nossa identidade
e nossa soberania.
A agenda da Alca não tem semelhança nenhuma com a integração
da Europa. A União Européia foi sendo desenhada ao longo de mais
de 30 anos de negociações, dentro de um espaço econômico
comparativamente mais homogêneo e incluiu, além da criação de
instituições continentais, o mercado de trabalho e fundos de
compensação para as economias mais atingidas pela liberalização
comercial. No caso da Alca, não há nenhuma dessas condições, e
o mercado de trabalho continuará separado pelo muro entre os EUA
e o México.
Portanto é fundamental construir uma política de resistência a
esse pacto neocolonial. Nessa perspectiva apresentamos na Câmara
proposta para a criação de uma comissão especial que acompanhe
e envolva a sociedade em todas as questões relacionadas com a
Alca. Com o deputado Henrique Fontana, demos entrada em um projeto
de realização de um plebiscito sobre a Alca para o final das
negociações.
A Alca não é uma fatalidade histórica a que tenhamos
que nos submeter, e dizer "não" à Alca
é um direito soberano do Brasil. Como bem assinalou
o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães em entrevistas
recentes, isso não significa a adoção de uma posição
autárquica ou de negação de negociações comerciais
com os EUA ou com qualquer outro país ou bloco
comercial do mundo. Significa somente pautar todas
as negociações pela defesa intransigente dos interesses
nacionais.
(publicado na "Folha de S.Paulo, em 18/3/2001)
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