
Assistência
médica à tortura
Como
já foi dito, o estudo dos processos políticos da Justiça
Militar permite concluir que o uso da tortura, como método de
interrogatório e de mero castigo, não foi ocasional. Ao contrário.
Obedeceu a critérios, decorreu de planos e verbas e exigiu a organização
de uma infraestrutura que ia desde os locais adequados à prática
das sevícias, passando pela diversificada tecnologia dos instrumentos
de suplício, até à participação direta de enfermeiros e de médicos
que assessoravam o trabalho dos algozes.
Em
1972, o estudante João Alves Gondim Neto, de 25 anos, contou, na
Auditoria de Fortaleza:
(...)
que, enquanto estava no quartel do 23º BC, foi visitado por alguém
que estava visitando todos os prisioneiros, e que o interrogando
acredita ser um médico do 23º BC; que o interrogando, nessa época,
estava urinando sangue, devido às pancadas nos rins; que a
referida pessoa não apenas se omitiu quanto à medicação ao
interrogando, como também orientou no sentido de esclarecer aos
torturadores quais os locais do corpo do interrogando que poderiam
ser flagelados sem que resultassem vestígios; (...)
O
motorista César Augusto Teles, de 29 anos, interrogado em São
Paulo, em 1973, também denunciou o fato de médicos favorecerem
a prática de torturas:
Quanto
a mim, perdi os sentidos já próximo do raiar do dia e vim a
saber ter estado em estado de coma algumas horas, em virtude do
agravamento de minha saúde pelas agressões sofridas. Pela manhã,
quando trocaram-se os plantões dos funcionários da OBAN, fui
reanimado por dois médicos, bem como minha esposa, e prosseguiram
cada vez mais intensas as torturas inflingidas a nós três;
No
Rio, a professora Maria Cecilia Barbara Wetten, de 29 anos, passou
pelo mesmo processo, conforme relatou em Juízo, em 1977:
(...)
que depois de ser examinada, na “geladeira”, por médico que
lhe tomou o pulso, foi levada para outra sala, onde lhe aplicaram
choques, isto com o fito também de que a interroganda declarasse
pertencer a uma organização política; (...)
O
estudante Ottoni Guimarães Fernandes Júnior, de 24 anos, preso
no Rio em 1970, também declarou na 1ª Auditoria da Aeronáutica:
(...)
que, dentre os policiais, figura um médico, cuja função
era de reanimar os torturados para que o processo de tortura
não sofresse solução de continuidade; que durante os dois
dias e meio o interrogado permaneceu no pau-de-arara desmaiando
várias vezes e, nessas ocasiões, lhe eram aplicadas injeções
na veia pelo médico a que já se referiu; que o médico
aplicou no interrogado uma injeção que produzia uma contração
violenta no intestino, após o que era usado o processo
de torniquete; (...)
Em
1970, no Rio, a 1ª Auditoria da Marinha registrou igual denúncia
do economista Luiz Carlos de Souza Santos, de 25 anos:
(...)
que o Dr. Coutinho, médico da Ilha das Flores, era o encarregado
de aplicar estimulantes quando os torturados desmaiavam (...)
O
ex-padre Alípio Cristiano de Freitas, de 41 anos, passou pela
mesma experiência no Rio, ao ser interrogado no inquérito
policial, em 1970:
(...)
que o depoente foi submetido à tortura do pau-de-arara, sendo
certo que, quando ficou em precárias condições, foi examinado
por um cidadão, ao que tudo indica médico, que dava como que um
diagnóstico com as condições de resistência do interrogado;
(...)
Outros
depoimentos, tomados nas diversas Auditorias brasileiras,
reproduzem situações semelhantes, seja no médico que favorece a
prática de sevícias, seja daquele que procura reanimar a vítima
ou ainda dos que eram convocados para tratar de prisioneiros políticos:
(...)
que foi, por duas vezes, nesse período, pendurado no pau-de-arara
e, lá, teve parada cardíaca e respiratória e, inclusive,
tendo sido diagnosticado pelo enfermeiro que fazia o acompanhamento
dos torturados como sentindo a doença da aerofagia, ou
seja, bloqueio das vias respiratórias, por conta de choques
elétricos; que a sua pressão chegou a 18 e 20 por 14,
tendo sido lhe ministrado maciças doses de Cepasol de
25 miligramas e relaxantes musculares, de modo que seu
corpo voltasse a ser sensível às dores das pancadas (a)
que foi submetido, pois a partir de certo instante tornou-se
insensível a qualquer dor; (...) (Depoimento de José
Miltom Ferreira Almeida, 32 anos, engenheiro, São Paulo,
1976)
(...)
que após a aplicação dos métodos científicos que o interrogando
classifica como sendo tortura (sic), veio o mesmo a sofrer um
desmaio que durou aproximadamente cinco horas; que o interrogando,
quando volveu a si, verificou que estava no Hospital das Forças
Armadas, em Brasília; que veio tornar a si quando era-lhe
efetuado, em sua pessoa, um eletrocardiograma; (...) que quer
esclarecer que, se pelo menos não servir para o processo, sirva
para a história, que foi o interrogando encaminhado para esse
hospital com o nome trocado, ou seja, em vez de José Duarte,
foi-lhe atribuído o nome de JOSE DOS REIS; que, após a recuperação,
retornou ao quartel da Polícia Militar de Brasília, isso após
quinze dias de tratamento; (...) (Depoimento de José Duarte, 66
anos, ferroviário, São Paulo, 1973)
(...)
que, após as torturas a que fora submetido, foi feito um
tratamento médico, por um médico da Polícia do Exército, cujo
nome não sabe; (...) (Depoimento de Amadeu de Almeida Rocha, 39
anos, professor, Rio, 1973)
(...)
No quarto dia, (...) compareceu um cidadão na porta da cela —
era o médico de plantão. Contei-lhe o que comigo se passava,
pedi, por favor, que me arrumasse um copo de leite ou outro líquido
qualquer, contanto que fosse quente. Sabe o que me respondeu? Que
eu bebesse água. (...) (Carta, anexada aos autos, do 1º Tenente
PM Antônio Domingues, 74 anos, São Paulo, 1975)
(...)
Quando fui para o “pau-de-arara”, onde permaneci durante
mais ou menos meia-hora, fui espancado por 3 elementos, dos
quais um era o encarregado da máquina de choque, cujo fio era
amarrado no meu órgão genital e o outro, que fazia “terra”,
era colocado no meu ânus, (sendo ambos) comandados por um 49
elemento que parecia escrever. Quando não suportava mais o suplício,
propus a eles que contaria tudo.
A
partir daquele momento, não mais percebi o que se passou, pois
desmaiei, voltando a mim somente quando estava sendo atendido por
um médico que media a minha pressão. (...) (Carta, anexada aos
autos, do 1º Sargento PM Antônio Martins Fonseca, 50 anos, São
Paulo, 1975)
(...)
em seguida, assisti o médico oficial aplicar injeções no jovem
que estava insconsciente e, mais uma vez, o ameaçaram; que o
depoente passaria pela mesma tortura que estava ocorrendo com
aquele jovem e, se o depoente não resistisse, seriam aplicadas
injeções para que recobrasse a consciência e voltasse a ser
torturado, assim, sucessivamente, até falar o que eles queriam ou
morrer; que, diante dessa situação, entrou em estado de choque,
perdeu a voz, ficou num estado de semiconsciência e não se
recorda, a não ser muito vagamente, estar cercado de vários
oficiais, máquina de escrever, numa sala que não consegue
determinar sua localização; que, diante desta situação, levou
vários dias evacuando sangue e sendo medicado pelo médico
oficial; (...) (Auto de interrogatório de Antônio Rogério
Garcia Silveira, 25 anos, estudante, Rio, 1970)
(...)
que o Major JOÃO VICENTE TEIXEIRA ameaçava o interrogado
sempre de morte, mostrando antes uma fotografia de um
indivíduo morto, alegando ao interrogado que faria com
ele, interrogado, o mesmo que tinha feito com BETO, elemento
perigoso, ali fotografado — o Major TEIXEIRA encaminhou-o
a um médico, que se recorda chamar-se MEIRELES; que esse
MEIRELES, segundo revelou o próprio Major ao interrogado,
era o homem que assinava os Atestados de Óbito dos subversivos
mortos, médico esse que, após examinar o interrogado,
lhe disse que aquilo não era nada, que ele precisava aguentar
firme; (...) (Auto de interrogatório de Apio Costa Rosa,
28 anos, bancário, Juiz de Fora, 1970) (...) que o interrogando
recebeu pancadas no abdômen e, bem assim, aplicação de
choques elétricos na zona escrotal; que também foi atingido,
nessa zona, por pancadas; que teve de ficar na posição
de ajoelhado por muito tempo durante os interrogatórios;
que o interrogando entende que, ainda hoje, conserva,
pelo menos, vestígios nos seus joelhos desses padecimentos;
que havia um médico para atender o interrogando e aplicar-lhe
massagens durante esses maus-tratos; (...) (Auto de interrogatório
de Pedro Gomes das Neves, 37 anos, comerciante, Fortaleza,
1974)
(...)
que, nesse período, foi o interrogado submetido a choques
elétricos por todo o corpo, inclusive nos órgãos sexuais,
(a) afogamentos, (a) espancamentos, de modo especial na
cabeça, tendo tais torturas cessado somente quando o interrogando
perdia os sentidos; que, nessas ocasiões, era chamado
um médico, o qual era consultado sobre se podiam ou não
continuarem as torturas; (..) (Auto de interrogatório
de Rogério Dome Lustosa, 29 anos, vendedor, Recife)
(...)
Quando os meus sequestradores resolveram entregar-me ao DOI,
recomendados por um médico, face ao meu precário estado de saúde,
organizaram uma manobra para dar a entender que a minha prisão
fora levada a efeito por um outro grupo no dia 19 e não no dia 12
de maio.
Eu
havia sofrido três insuficiências cardíacas, nas dezenas
de vezes em que estive no “pau-de-arara”, sendo que, na
última vez, trouxeram dois médicos para me examinar. Consideraram-me
“bem”, embora, no dia seguinte, um deles retornasse para
me dizer que iria propor a minha remoção, por questão
humanitária; (...) (Carta, anexada aos autos, de Renato
Oliveira da Motta, 59 anos, jornalista-vendedor, São
Paulo, 1975)
Médicos
legistas
Da
leitura desses relatos, se obtém a certeza da conivência e mesmo
participação direta de médicos e enfermeiros na pratica de
torturas. Algumas vezes, estas praticas chegaram ao limite da
resistência dos atingidos, ocorrendo morte.
Os
médicos que, frequentemente, forneceram laudos falsos
acobertando sinais evidentes de tortura, também ocultaram
a real causa mortis daqueles que foram assassinados.
Os
motivos das mortes indicadas nos laudos necroscópicos, em sua
maioria, coincidiam exatamente com a “versão oficial” dos
acontecimentos, tais como: “atropelamentos”, “suicídios”,
“mortes em tiroteio”, omitindo qualquer evidência de tortura.
Tais documentos foram, muitas vezes, contrariados e repudiados
pelos depoimentos de vitimas sobreviventes que presenciaram as
mortes, no interior dos órgãos de repressão, em consequência
das torturas sofridas.
Os
médicos-legistas, geralmente vinculados às Secretarias
de Segurança Pública, participaram também na ocultação
de cadáveres. O objetivo desse comportamento era o de
impedir que os familiares, ao encontrarem o corpo dos
mortos, pudessem constatar as marcas das sevícias neles
praticadas.
Da
analise dos processos submetidos a estudo no Projeto BNM, pode-se
perfeitamente identificar nomes de médicos-legistas comprometidos
na feitura de laudos para o acobertamento das mortes sob tortura.
Eis alguns exemplos: em São Paulo, Harry Shibata, Arnaldo
Siqueira, Abeylard de Queiroz Orsini, Orlando José Bastos Brandão
e Isaac Abramovitc; no Rio de Janeiro, Elias Freitas, Rubens Pedro
Macuco Janini, Olympio Pereira da Silva; em Minas Gerais, Djezzar
Gonçalves Leite; em Pernambuco, Ednaldo Paz de Vasconcelos.
O
estudante Alexandre Vannuchi Leme, morto nas dependências do
DOI-CODI-Il Exército, em 17 de março de 1973, teve seu laudo
necroscópico contendo a versão de que “teria se atirado sob um
veículo sofrendo contusão na cabeça” assinado pelos legistas
Isaac Abramovitc e Orlando José Bastos Brandão.
Carlos
Nicolau Danielli, morto sob tortura nas dependências do
DOI-CODI-Il Exército, em janeiro de 1973, teve a versão de morte
sob tiroteio com os órgãos de segurança “constatada” em
necrópsia subscrita por Isaac Abramovitc e Paulo Augusto de
Queiroz Rocha.
Até
mesmo a versão fantasiosa de “suicídio”, para explicar os
assassinatos por tortura, encontraram respaldo em laudos médicos.
Por exemplo, Harry Shibata e Marcos Almeida, declaram que a morte
do Tenente PM-Ref. José Ferreira de Almeida, ocorrida no DOI-CODI-Il
Exército, em 12 de agosto de 1975, se deveu a “asfixia, por
constricção do pescoço”. Shibata repetiria tal laudo, no caso
do jornalista Wladimir Herzog.
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