
INTRODUÇÃO
“A
violência anti-homossexual aumenta se você não faz nada para
combatê-la. Nós, homossexuais, como os demais cidadãos, temos
o direito de ser o que somos, sem medo e livres de qualquer violência.”
O
assassinato de gays, travestis e lésbicas é uma tragédia
mundial, ocorrendo tanto nos países mais civilizados, mas
sobretudo nos países do terceiro mundo. É a expressão mais
grave e cruel da homofobia. Na América Latina, e no Brasil em
particular, onde altos níveis de violência social e
generalizada homofobia são acrescidos pela conivência e
incompetência da polícia, omissão da justiça e dos poderes públicos,
além da atuação clandestina de esquadrões da morte, os
crimes homofóbicos são uma verdadeira calamidade e ameaça
constante à segurança de milhões de homossexuais que não têm
a quem recorrer para exigir respeito ao direito fundamental de
todo ser humano: o direito à vida.
O
Brasil ocupa triste liderança neste particular: é o campeão
mundial de assassinato de homossexuais e provavelmente um dos países
do mundo onde ocorrem mais discriminações diárias contra
gays, lésbicas e travestis. Entre 1980-1999 o Grupo Gay da
Bahia (GGB) documentou a ocorrência de 1830 assassinatos homofóbicos,
sendo que apenas em 1999 foram registrados 169 homicídios,
perfazendo uma média de um crime a cada dois dias. Tendência,
aliás, que vem aumentando, pois enquanto na década de 80
matava-se em média um homossexual por semana, na década de 90
subindo para um homicídio a cada três dias, agora, no início
do terceiro milênio, essa média agrava-se ainda mais: um
homossexual é assassinado a cada dois dias. Crimes, em sua
maior parte, praticados com requintes de crueldade, motivados
pelos machismo e homofobias – o ódio patológico aos
homossexuais.
Apesar
desses números serem chocantes – 1830 assassinatos em duas décadas
– tais cifras estão muito aquém da realidade, representando
tão somente a ponta de um iceberg de sangue e ódio. Não havendo estatísticas oficiais sobre
crimes de ódio no Brasil, temos de nos valer de notícias de
jornais e de outras fontes a fim de documentar tão cruel genocídio.
Com
base nessa experiência a mais de duas décadas de coleta de
informação, tratamento de dados, sua divulgação e implementação
de políticas denunciadoras e mobilização da própria
comunidade homossexual local contra crimes homofóbicos, o Grupo
Gay da Bahia apresenta aqui, de forma didática e sintética,
como implementar em todos os estados brasileiros, e quiçá nos
demais países latino-americanos, Centros de Documentação e
Denúncia de crimes contra homossexuais.
Denunciar
a violência diuturna q se abate contra os/as amantes do mesmo
sexo é o primeiro passo para a construção de nossa cidadania,
na medida em que a maioria das pessoas, seja cidadão comum,
sejam os representantes dos órgãos governamentais, desconhecem
esta triste e dramática realidade: a cruel mortalidade de gays,
travestis e lésbicas. Realidade encoberta pelo “complô do
silêncio” e que necessita ser inadiavelmente denunciada a fim
de impedir novas execuções.
Portanto,
a divulgação de tais denúncias não pode ser rotulada de
“vitimismo” na medida em que não consideramos as vítimas
de tais homicídios como mártires ou heróis, mas presas de uma
ideologia machista e violenta que há gerações vem repetindo a
mesma sentença: “viado tem mais é que morrer!” Assim
sendo, ao denunciar e analisar o homicídio de homossexuais,
jamais os tratamos como “coitadinhos” ou incapazes de
enfrentar e superar tais violências. Pelo contrário:
retratamos realisticamente a força e maldade da homofobia com
vistas a sensibilizar não só os donos do poder e a sociedade
global, mas sobretudo as próprias vítimas dessa guerra
sangrenta, a fim de que, reagindo e evitando situações de
risco, não se tornem mais um número a engrossar tão infeliz
estatística. Deixar de denunciar, com todas as cores e
realismo, tais assassinatos e violações dos direitos humanos
das minorias sexuais, não se indignar com tal carnificina,
estas sim, são posturas condenáveis, posto que, como ensina a
sabedoria popular, “quem cala, consente”, e a indignação,
o grito e a denúncia são as principais armas dos oprimidos na
luta pelo respeito e igualdade.
Ao
compartilhar essa experiência nosso objetivo é estimular que
em todos os estados do Brasil e demais países da América
Latina e do resto do mundo, sejam criados programas semelhantes
a fim de que, documentando e divulgando a crueldade dos crimes
homofóbicos, possamos comover a sociedade e pressionar os
poderes públicos de modo a erradicar do mundo tais
assassinatos, acelerando assim a construção de uma nova
sociedade mais fraterna e solidária onde o amor homossexual não
termine numa poça de sangue.
Durante
essas duas décadas em que o Grupo Gay da Bahia realizou o
levantamento e divulgação do assassinato de homossexuais,
contamos com apoio financeiro das seguintes entidades: European
Foundation for Human Rights, Norwegian Foudation for Human
Rights, International Gay and Lesbian Human Rights Comission,
Threshold Foundation, Kimera Society, Henrich Boll Foundation/Iser,
Banco Mundial/Bird, Ministério da Saúde, Unesco. A todas
essas fundações, nossa gratidão e a certeza que muitos gays,
travestis e lésbicas deixaram de ser assassinados graças a
nossos ensinamentos divulgados em cartazes, folders, cartilhas e
livros financiados por tais entidades.
Agradeço
também, do fundo do coração a Jacques
Jesus, Patrick Lorvie e
Gustavo Almeida, pela correção cuidadosa e sugestões dadas a este
Manual.
Em
se tratando este ensaio de um Manual destinado a capacitar
pessoas e entidades visando objetivos fundamentalmente políticos
e humanitários, optamos por um estilo simples e direto. Embora
tenhamos evitado propositalmente as discussões acadêmicas,
incluímos nas notas finais algumas indicações bibliográficas
que servirão de fio condutor àqueles que desejarem se
aprofundar neste importante tema.
“Informações
sobre vitimização de homossexuais no mais das vezes foram
obtidos a partir de amostras e pesquisas realizadas pela própria
comunidade gay e lésbica. Como a documentação sobre violência
anti-gay não tem sido uma prioridade para a justiça criminal
ou para os estudiosos, os próprios ativistas homossexuais
consideraram necessário realizar suas próprias investigações.
A qualidade metodológica e a amostra utilizadas em alguns
destes levantamentos às vezes deixa a desejar. A falta de
recursos também prejudica tais iniciativas. Apesar de tais
problemas, os resultados destes surveys
permitem reconstruir um quadro coerente e dramático dos crimes
homofóbicos: um ponto a mais para os pesquisadores que realizam
esses trabalhos.” (Gregory Herek: Hate Crimes. Confronting
Violence Against Lesbians and Gay Men, 1992).
|