Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currículo Escolar

Reflexões sobre o
Ensino da História do Brasil
As Ciências Humanas, de maneira geral, e
a História, em particular, têm sofrido crescentes desprestígio junto
a governos e instituições, e mesmo junto à sociedade, que valoriza
apenas o sucesso, a produtividade e a técnica. Este fenômeno se
manifesta de várias formas, seja através da diminuição do tempo
consagrado às ciências humanas nas escolas (e, em contrapartida,
aumentando o horário das chamadas ciências exatas), seja através da
redução de verbas e bolsas de pesquisas, ao nível governamental, ou
mesmo pelo cerceamento e censura do trabalho de historiadores,
historiógrafos ou professores.
Não é por acaso que, nos anos 30, na
União Soviética, os manuais de história foram retirados dos
estabelecimentos de ensino e os exames desta disciplina acabaram
suspensos. Na verdade, sem ter consciência crítica de sua história,
nenhuma sociedade pode realizar mudanças radicais.
A História como ciência e a
manipulação das informações que ela nos pode trazer não são apenas
instrumentos de poder (aliás, herdamos dos positivistas uma concepção
errônea de que a CIÊNCIA estaria acima das ideologias. Na verdade,
nenhuma ciência é isenta de ação e julgamento. Ela sempre estará a
serviço de uma determinada camada ou fração social, por mais “exata”
que seja).
Portanto, a História como disciplina
pode levar à estagnação e à pura e simples memorização acrítica
de dados repetidos de forma autônoma, como a formação de indivíduos
interessados em transformar (e melhorar) a realidade em que vivem. Já
dizia Voltaire em seus ensaios: “A única maneira de impedir os homens
de serem absurdos e maus é esclarecê-los”. nada melhor que conhecer
os atos de seus semelhantes para poder julgar presente e futuro. Isso
não significa que a história seja cíclica, repetindo-se
infinitamente. Porém, algumas lições duradouras podem ser retiradas
do comportamento da humanidade como um todo. Teria Hitler insistido em
invadir a Rússia se tivesse lido com atenção a história de
Napoleão, um século e pouco antes?
Na verdade, através dos tempos, o homem
sempre foi movido por interesses semelhantes. Entre eles, a cobiça, o
poder e a paixão. Esconder esses motores é transformar a História num
relato linear de vultos e datas, contribuindo para a aceitação passiva
das nossas sociedades e daquilo que elas têm de injusto, irracional e
desumano. Ou como conseqüência mais triste dessa passividade, fomentar
o desencanto, o desespero, que têm levado tantos jovens à
autodestruição e a alienação nas drogas.
A Evolução do Ensino
da História
As primeiras escolas que surgiram no
Brasil estavam ligadas ao ensino religioso, principalmente aos
jesuítas. Herdeiros de um tradição européia que valoriza o latim, a
filosofia e a erudição, promoviam uma cultura livresca, pouco adaptada
à nossa realidade. Infelizmente, o Brasil sempre foi um terra de
doutores de anel no dedo, tendo se estudado muito pouco as coisas
práticas. A educação foi e continua sendo um apanágio das elites
dominantes, normalmente destinadas a posições de comando, poder e
prestígio.
Dentro deste contexto, a História que
começa a ser trabalhada no Brasil é positivista. Ou seja, a partir
também de uma visão européia transplantada, ela valoriza o documento
(que fala por si só) e a pesquisa. No entanto, preocupada
demasiadamente com os aspectos políticos, ignora as causas que movem os
homens, esquece as razões econômicas que determinam o funcionamento
das sociedades e relata o intervir de homens elevados à categoria de
heróis, omitindo a participação das maiorias silenciosas, dos fracos,
dos vencidos, daqueles que trabalham e produzem a riqueza. O positivismo
não concebe o homem como fruto de seu meio e de seu tempo e, esquecendo
a conjuntura especial que leva alguns homens a dirigir outros, deturpa e
falsifica a História.
Mais recentemente, a História passou a
ser elaborada segundo outras metodologias, que privilegiam a
interpretação e não a pesquisa. Modismos (mais uma vez
transplantados) determinaram gerações de trabalhos que procuravam
basear-se em Marx, Gramsci, Althusser e Castoriadis. A ação e
reação, os historiadores aprenderam que não podemos prescindir da
pesquisa. Só que seus resultados devem ser organizados diferentemente.
A seriedade do processo determina não apenas um levantamento exaustivo
de dados, mas também um texto metodologicamente bem organizado, além
de uma simples lista de datas, fatos e heróis. No entanto, essas
conquistas do bom senso (e da ciência histórica), de maneira geral,
não atingiram os livros didáticos distribuídos nas escolas
brasileiras nem a maioria dos professores de História, Geografia, Moral
e Cívica e OSPB, por falhas graves na formação (e seleção) desses
profissionais.
Realidade Educacional
Brasileira na Área de Ciências Sociais
As faculdades de Ciências Humanas exigem
um investimento inicial menor do que as áreas técnicas. E proliferam
pelo país. No entanto, carecem de bibliotecas adequadas, verbas e
incentivos. Algumas formam profissionais em apenas dois anos,
habilitados para “Estudos Sociais”, ou seja, História e Geografia,
sendo que o desejável seria um currículo disposto entre quatro a cinco
anos. É evidente que esta formação é insuficiente, até para que os
professores desenvolvam um referencial teórico necessário para
selecionar os seus livros didáticos. E aí chegamos ao ponto
nevrálgico da questão do ensino da História: o uso largamente
difundido do livro didático. Como a maioria dos alunos não possuem
condições materiais para adquirirem vários livros, como a média das escolas não contam com
bibliotecas que supram estas necessidades, como as cópias e
reproduções de documentos são problemáticas e, às vezes,
impossíveis, é natural a condução à compra do livro didático.
Todo ano, as editoras despejam nas casas
dos professores volumes e volumes de “novidades”. Normalmente, são
reedições que não foram sequer revisadas e que fazem a fortuna de
alguns profissionais do ramo. Assuntos como Guerra do Paraguai e o “descobrimento”
do Brasil continuam a ser descaradamente distorcidos, não recebendo ao
menos uma reflexão alternativa a respeito das visões oficiais. Ora,
sabemos que a história oficial, veiculada por organismos
governamentais, é a história do vencedor, normalmente positivas e
preconceituosa. Se no Paraguai somos vistos como “os covardes
brasileiros” que mataram, no final da Guerra, até mesmo crianças de
dez anos que defendiam a sua terra, e como a gente que cometeu todo tipo
de atrocidades (largamente comentadas nos livros de Leon Pomer e Júlio
José Chiavenatto 2), aqui no Brasil os livros didáticos da rede
oficial de escolas continuam a falar da heróica vitória da Tríplice
Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) sobre o Paraguai e seu feroz
ditador, Solano Lopez.
Nossas origens também continuam a não
sofrer revisão. A maioria dos
livros didáticos de 1º e 2º graus contam a história do
descobrimento “por acaso” do brasil. “Era uma vez...” três
caravelas que pretendiam fazer comércio nas “Índias”. No entanto,
foram dar numa parte do Oceano Atlântico onde não ventava, as famosas
“calmarias”, quando uma corrente marítima encarregou-se de arrastar
não apenas uma delas, mas as três, a milhares de milhas marítimas da
costa da África, caminho usual para o Oriente. No entanto, os livros
também falam na Escola de Sagres, em Portugal, que ensinava aos
navegantes os mistérios do mar e o uso de instrumentos, tais como o
Quadrante, a bússola e o astrolábio. Apenas a observação da bússola
já permitiria ao comandante o conhecimento de seu desvio de rota. Por
que então a continuação desta versão casuística da chegada ao
Brasil? E o sentido do tratado de Tordesilhas, assinado já em 1494,
atribuindo a Portugal as possíveis terras existentes a 370 léguas do
Cabo Verde, justamente para onde Cabral dirigiu-se? Será que esse
raciocínio nunca foi feito? Ou esta versão faz parte de um pano de
fundo mais amplo, que quer transformar a História num processo
incruento, onde a violência é camuflada e a tendência conciliadora
transforma o brasileiro num povo pacato, que nunca se rebelou
efetivamente contra o status quo
dominante? Segundo Damis Corbellini:
“A escola é um instrumento pelo qual
se transmite a ideologia da classe dominante, que se procura introjetar
principalmente nos trabalhadores livres. O livro didático é a forma
usada para que os padrões de comportamento e o modo de pensar de uma
classe seja transmitido para outra” 9CORBELLINI, 1983).
Podemos conhecer exceções ao que
expressa a afirmação acima, mas é inevitável reconhecermos sua
validade como análise sociológica de função institucional. Assim, é
normal o livro traga
ilustrações da família brasileira nuclear, com um pai de gravata que
provê o sustento, uma mãe dona-de-casa e uma empregada negra. A
questão da escravidão e do racismo, implícito em nossa sociedade
atual de forma dissimulada, também não são suficientemente
discutidos. Existem, é claro, livros didáticos com abordagem mais
crítica, preocupados em explicar as razões profundas dos
acontecimentos, mas estes, de forma geral, não são parte dos lotes
distribuídos gratuitamente pelo governo e pelas editoras (além de não
serem tão ilustrados nem trazerem o livro de exercícios ou
questionários que os professores costumam utilizar para “poupar”
tempo). Para completar o quadro, esses livros costumam ser bem mais
caros. Mais uma vez, segundo a dissertação de Damis Corbellini:
“Só
compra quem tem poder aquisitivo, quem não tem recebe meias
informações e não terá condições de entender e fazer história”
(CORBELLINI, 1983, p. 93).
Isto é muito grave, levando-se em conta
que a sistematização da História surgiu no século VI AC precisamente
pela necessidade do homem explicar a si próprio sua origem e sua vida.
Ao longo do tempo, a História abarcou outras ciências e outras áreas
do conhecimento, tais como Sociologia, a Antropologia, a Economia, a
Geografia, etc., para ajudá-la nessa tarefa. No entanto, não é este o
resultado obtido, de forma geral, com o ensino de História no Brasil. A
partir de 1964, com a instauração do regime militar e com a posterior
reforma do ensino MEC/USAID, as Ciência Humanas caíram em descrédito.
Em geral, o aluno assiste somente a duas aulas semanais de História,
sendo que uma delas, normalmente, é utilizada para exercícios ou
questionários. Não há tempo e espaço para se discutir e interpretar
os textos, que, além de tudo, acabam sendo desvinculadas da realidade
do aluno, com informações estanques, sem que os fatos tenham
explicação lógica e compreensível. Ignoram-se as contradições e as
transformações da história e do homem como ser social.
Portanto, o estudo da História não
está atingindo seus objetivos de explicar, esclarecer e ajudar as
pessoas a terem uma visão mais abrangente do mundo em que vivem. Por
ignorância, comodismo ou censura, os professores fazem largo uso de
livros didáticos obsoletos e inadequados, que transmitem uma visão de
mundo elitista, paternalista e autoritária, transformando a História
em algo abstrato, parcial e até alienante. Algo que, na opinião da
maioria dos jovens, não serve para nada além da prova e do
subseqüente esquecimento.
A História exercida como Ciência pode
ajudar o homem a ter consciência de suas responsabilidades no mundo,
como agente de seu próprio destino, como sujeito de sua própria
evolução. A História de verdade deve ser um excelente meio de
educação, não de treinamento passivo. Educar os homens significa
levar a sociedade a exercer sua cidadania e a ter consciência disto.
Uma “Cidadania” como direito conquistado, não “outorgada” de
cima para baixo, em momentos de crise do Estado. Ao mesmo tempo, essa
Cidadania significa também obrigações a serem cumpridas. Um conceito
que nos remete à Grécia do século V, quando o homem, encantado com o
poder de sua própria palavra, com a força de sua retórica (então
considerada uma arte), percebe as transformações que pode operar no
mundo. Um conceito que leva à dignidade de fazer parte de sua
comunidade. Um conceito urgente para a retomada do desenvolvimento
nacional e o abandono do desencanto com o futuro brasileiro.
Márcia Lewis
Educadora no Colégio Farroupilha, em Porto Alegre e historiadora
da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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