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TEORIAS
“CLÁSSICAS” SOBRE A
DEMOCRACIA DIRETA
E A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
Rubens
Pinto Lyra
INTRODUÇÃO
Raramente,
em Ciência Política, um conceito terá assumido tanta
elasticidade e multiplicidade de sentidos como o da
democracia participativa.
Que
o cidadão apenas vote e existe quem entenda que, se o
voto for livre, já está, ipso facto, configurada a
democracia participativa, esta se confundindo com a
própria democracia representativa.
Com
efeito,
“o
conceito de participação política consagrou-se nas
formações liberal-democráticas em referência à
participação institucional, isto é, aquela voltada à
tomada de decisões de poder, por meio de representantes
escolhidos pelo sistema eleitoral” (Cotta, 1979, apud
Doimo, 1995:34).
Como
esclarece Benevides, o cidadão, de acordo com tal
concepção,
“é
titular de direitos e liberdades em relação ao Estado
e a outros particulares - mas permanece situado fora do
âmbito estatal, não assumindo qualquer titularidade
quanto às funções pública.
Mantém-se,
assim, a perspectiva do constitucionalismo clássico:
direitos do homem e do cidadão são exercidos frente ao
Estado, mas não dentro do aparelho estatal”. (Benevides,
1994:8).
Os
defensores da democracia representativa formal vão mais
além, chegando a entender a participação direta da
cidadania como negativa para a consolidação da
democracia (Lamounier, 1991; Sartori; 1994, apud Silvab,
1997:75).
Mas,
para os que assim não pensam, só há participação
política efetiva quando existe democracia
participativa, quando o cidadão pode “apresentar
e debater propostas, deliberar sobre elas e, sobretudo,
mudar o curso da ação estabelecida pelas forças
constituídas e formular cursos de ação
alternativas” (Filla e Battini, 1993). Ou seja,
mais precisamente, sempre que houver formas de o
cidadão participar, decidindo e (ou) opinando,
diretamente, ou de forma indireta, por meio de entidades
que integra, a respeito de uma gama diversificada de
instituições, no âmbito da sociedade (famílias,
empresas, mídia, clubes, escolas, etc) ou na esfera
pública (plebiscito e referendo, orçamento
participativo, conselhos de direitos, ouvidorias, etc).
Fica
claro, portanto, que a democracia participativa, tal
como a acabamos de definir, não abrange a democracia
representativa. Embora
possa perfeitamente coexistir com ela, como aliás
ocorre no Brasil.
Nas
palavras de Silva:
“os constituintes optaram por
um modelo de democracia representativa, com temperos de
princípios e institutos de participação direta do
cidadão no processo decisório
governamental”. (l995: 145).
Por
outro lado, é de se observar o envelhecimento precoce
de teorias sobre a democracia participativa, e, mais
especificamente, sobre sua modalidade mais destacada: a
direta. E, também, pari
passu, o surgimento de formas sui
generis de participação, como as que estão em
curso no Brasil. Transformações deste porte impõem
uma redefinição do conceito de democracia
participativa e de suas modalidades, assim como uma nova
compreensão do seu significado político.
Com
efeito, em que pese diferenças profundas entre as
concepções de democracia direta de teóricos de
destaque como Macpherson, Bobbio ou Poulantzas, suas
análises têm em comum ou a destacada referência à
Comuna de Paris e ao modelo soviético, e (ou) a
associação entre mecanismos de democracia direta com a
luta pela implantação do socialismo.
Ora,
o desmoronamento do Muro de Berlim, ao desnudar as
excrescências do suposto “socialismo real”,
fortaleceu as instituições democráticas consideradas
“burguesas” pelo leninismo, tornando remota a
possibilidade, por um período razoável, de uma ruptura
em direção ao socialismo.
Tais
mudanças esvaziaram, em grande parte, as objeções
embutidas nas teorias acima referidas sobre o tema.
Macpherson
e o sistema piramidal de democracia direta
Macpherson
considerava o regime soviético uma forma de
institucionalização, ainda que falha, da democracia
direta. Mesmo se o estudo do caráter dos regimes ditos
socialistas está longe de ter avançado, poucos
sustentariam hoje que eles tenham configurado algum tipo
de democracia. A fortiori, muito pouco teriam a ver as atuais experiências de
democracia direta com os modelos conceituais formulados
por Macpherson.
No
seu livro A Democracia Liberal, este renomado cientista
político canadense mostra-se favorável à democracia
participativa, combinada com a representativa: “um sistema piramidal com democracia direta na base e democracia por
delegação em cada nível depois dessa base” (Macpherson,
1977:110). Trata-se de um “sistema
de delegação sequenciado para cima, com a
organização de conselhos de cidades, de região, até
o topo da pirâmide, com a organização de um conselho
nacional.”. Este sistema piramidal, de acordo com
Macpherson, “existia, mesmo que
no papel, na União Soviética.”
Todavia,
no caso de uma democracia representativa,
pluripartidária,
“seria
mantida a atual estrutura de governo e os partidos
operariam com o estilo de participação piramidal,
passando a haver uma democracia participativa
configurada pela democracia direta na base em convívio
com a democracia representativa a cada nível
seqüencial superior”. (apud Brandão, 1997:120).
Em
seu livro sobre Ascensão
e Queda da Justiça Econômica, Macpherson se
rende às dificuldades para a construção de uma
democracia participativa nos moldes das democracias
ocidentais, estimando que os grupos de pressão
organizados na sociedade civil, assim como os partidos
políticos, não teriam condições de harmonizar a
lógica interna de seu funcionamento e (ou) a defesa de
seus interesses particulares, com o envolvimento de seus
integrantes em práticas participativas voltadas para o
bem comum. (Macpherson, 1991).
Tendo
como referência a democracia direta formalmente
existente na URSS, as formulações de Macpherson sobre
o tema mostram-se bastante defasadas da democracia
participativa na atualidade. Em particular da que
floresce no Brasil, profundamente distante do modelo
soviético e caracterizada pela rica diversidade de suas
experiências participativas.
CRÍTICA
À CRÍTICA DE BOBBIO SOBRE A DEMOCRACIA DIRETA
As
concepções de Bobbio são largamente condicionadas
pelo rescaldo da Guerra Fria e, em particular, pelo
contexto de radicalização da vida política italiana
com a ação dos grupos terroristas nos anos setenta,
que culminou com o assassinato do premier
Aldo Moro.
Preocupa-se
Bobbio com uma democracia direta que viesse a exigir dos
cidadãos a sua “participação em todas as decisões
a eles pertinentes”. Temia que se configurasse, senão
o “homem total”, de Marx, o “cidadão total” de
Rousseau: “a outra face igualmente ameaçadora do
Estado total”.
Segundo
Bobbio, os partidários da democracia direta, conforme a
“tradição do pensamento socialista”, a colocam em
oposição à democracia representativa, “considerada
como a ideologia própria da burguesia mais avançada,
como a ideologia ‘burguesa’ da democracia. A
democracia direta, assim concebida, tem como
característica o mandato imperativo, na tradição
marxiana e leniniana, e a representação de interesses,
ou orgânica, “característica do pensamento inglês
do século passado”.
Na
verdade, Bobbio considera esse gênero de democracia
“anfíbio”, sendo que a democracia direta, no
sentido próprio da palavra, seria apenas a “assembléia
dos cidadãos deliberantes sem intermediários e o
referendum” (Bobbio, 1992:42, 43, 48, 49, 52 e
53).
Segundo
este raciocínio, o único modus
operandi da democracia direta - a ser moderadamente
utilizado - é o plebiscito, face à inexequibilidade de
assembléias como a acima referida. Razão pela qual,
para Bobbio, só restaria como espaço para
aprimoramento democrático, via práticas
participacionistas, a esfera das relações sociais,
onde o protagonista não é o cidadão, mas sim “o
indivíduo “... considerado na variedade de seus
status e de seus papéis específicos, por exemplo o de
empresário, de trabalhador, de cônjuge, de professor,
de estudante, até mesmo de pais de estudante...”
Conclui
então Bobbio que o processo de democratização
consiste, não na passagem da democracia representativa
para a direta, mas na ocupação, pelas formas ainda
tradicionais da democracia, como é a representativa, de
espaços até agora dominados por organizações de tipo
hierárquico e burocrático. “Tudo pode ser resumido na seguinte fórmula: da democratização do
Estado à democratização da sociedade” (Bobbio,
1992:54-55).
Não
há dúvidas, porém, que o ceticismo de Bobbio em
relação à democracia participativa na esfera pública
tem um pano de fundo político-ideológico, que alimenta
a descrença do renomado cientista político italiano
tanto no que se refere à possibilidade de reformas
estruturais quanto à participação da cidadania nos
negócios do Estado. Sobre o perigo das reformas:
“Quem
pode excluir a possibilidade de que a tolerância do
sistema tenha um limite, além do qual ele se
estilhaçará ao invés de dobrar-se? Sobre
os limites da ação política, na síntese de Anderson:
“Nas
sociedades democráticas, as principais mudanças
sociais não são geralmente, de modo algum, resultantes
da ação política, mas do progresso da capacidade
tecnológica e da evolução das atitudes culturais [que
são] processos moleculares involuntários...”(Apud
Anderson, 1992:54 e 60),(2)
Entendemos
que, aceitas tais premissas, qualquer processo de
participação popular na gestão do Estado seria,
quanto ao meio empregado, perigoso, já que poria em
risco a democracia (que democracia!), na medida em que
amplia o clamor pelas reformas. E, quanto ao fim
almejado, inócuo, pois que, para Bobbio, a mudança
virá, não como fruto de iniciativas políticas, mas
sim através de “processos
moleculares involuntários” (grifo meu,
R.P.L.).
Ora,
a experiência do orçamento participativo, entre
outras, demonstra que ela não põe em risco a
democracia. Ao contrário, aprofunda-a, constituindo-se
em importante instrumento de correção de mazelas
políticas e, também, de injustiças na alocação dos
recursos provenientes do Erário público.
É
fácil constatar que as teorizações de Bobbio sobre a
democracia direta tem pouco a ver com o contexto e os
institutos em que se materializa a democracia
participativa no Brasil.
Primo,
esta última não foi instituída, como veremos adiante,
em antagonismo com a democracia representativa, nem como
instrumento de implantação de uma ordem socialista
revolucionária.
Tarso Genro, principal mentor da mais importante experiência de
democracia direta do
Brasil - o Orçamento Participativo de Porto Alegre -
esclarece, a esse respeito, que “dar
força cogente ao controle público
não-estatal significa aprofundar o o regime
democrático e dar conseqüência `a combinação da
democracia representativa com a democracia direta,
prevista no art. 1º , par. único , da própria
Constituição”. Esta combinação “
‘civiliza’ o Estado, gerando um controle externo,
capaz de limitar sua lógica corporativa, ou seu
atrelamento a interesses puramente privados.” (Genro
e Genoino, l995).
Secundo,
predomina amplamente no Brasil, no âmbito da democracia
participativa, a sua modalidade semi-indireta, como é o
caso dos diferentes conselhos (de saúde, da criança e
do adolescente, dos direitos humanos, etc). Nestes, com
efeito, o cidadão não participa pessoalmente da
gestão pública, ou de sua fiscalização, mas através
de representantes da entidade que integra - os quais
detêm, via de regra, mandato fixo. (3)
Tertio,
a representação de interesses, tão combatida por
Bobbio, existe apenas em alguns colegiados. Predomina a
presença de organizações da sociedade civil voltadas
para o interesse público, cultivando, nesse processo,
uma postura crítica em relação ao corporativismo.
No
caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre, a
crítica ao corporativismo chega a se constituir no leitmotiv de Tarso Genro - exatamente o oposto do que temia Bobbio.
Segundo
Genro, ex-Prefeito da capital do Rio
Grande do Sul, os oito anos de experiência do
Orçamento Participativo levaram a comunidade a uma
compreensão crescente do que “é
preciso incorporar as suas reivindicações às lutas
mais gerais do povo por transformações estruturais da
sociedade brasileira”. Nesse processo, as
lideranças “passam
a compreender não só os limites do poder público,
como também a própria relatividade de suas
necessidades, comparando-as com outras mais urgentes e
importantes”. Assim, a prática participativa se
aperfeiçoa na medida em que “o que era carecimento, necessidade, demanda muda de qualidade
mediante o processo participativo e adquire natureza
política, fazendo do indivíduo um cidadão”.
(Genro e Souza, 1997: 50-51).
Por
outro lado, por sua própria natureza, muitos órgãos
semi-estatais que não se envolvem com a disputa pela
apropriação do excedente, tais como Conselhos de
Direitos Humanos, Tutelares, de Segurança, etc, vêm
contribuindo decisivamente para a construção de um ethos
voltado para o fortalecimento da res
publica, tendo como fulcro questões de interesse
universal e coletivo.
Mesmo
os órgãos que definem e implementam políticas
setoriais - onde a questão central é a de como
repartir o fundo público - ainda que portadores de um
certo viés corporativista, não são necessariamente
dominados por ele. Na avaliação de Doimo, os Conselhos
setoriais, vinculados à definição e implementação
de políticas sociais, seriam até “alternativas
deliberadamente formulados dentro do espírito
ativo-propositivo, voltado a romper o corporativismo
pontual das demandas locais e a instaurar perspectivas
para toda a coletividade, através de políticas
regulatórias” (Doimo, 1995, 215-126). (4)
Quarto,
o êxito o orçamento participativo coloca por terra a
tese de Bobbio segundo a qual a experiência possível
de democracia direta (o
referendum) seria, no limite, incompatível com a
democracia, que impõe um compromisso entre as partes...
para a formação de uma maioria”.
Ora,
a prática demonstrou, à saciedade, que existem outras
experiências possíveis de democracia direta - como a
do orçamento participativo – a qual, longe de
significar “uma opção forçada entre duas
alternativas”, se revelou, pelo contrário, um locus
privilegiado de formação de consensos” (Bobbio,
1984: 12)
A
“SUPERAÇÃO DIALÉTICA” DAS CONCEPÇÕES DE
POULANTZAS SOBRE A DEMOCRACIA DIRETA
A
teoria de Nicos Poulantzas sobre a democracia direta
distingue-se ideologicamente das de Bobbio e de
Macpherson pelo seu caráter marxista e
revolucionário. Por essa razão, e pelo fato de ter
sido formulada nos anos setenta, a democracia direta
de Poulantzas é concebida, antes de tudo, como um
instrumento de luta contra o capitalismo. Embora
esse autor inove, pretendendo compatibilizar
democracia direta com democracia participativa.
Ocorre
que, na perspectiva de Poulantzas, a disseminação
da democracia direta, sob a forma de “focos
embrionários de poder popular” se confundiria com
o desabrochar das instituições socialistas.
Dessarte,
[i]“este
longo processo de tomada do poder pela via
democrática, rumo ao socialismo, consiste,
essencialmente, em reforçar e coordenar os centros
de resistência difusos de que as massas dispõem no
âmbito do aparelho de Estado, criando e
desenvolvendo novos, de tal forma que estes centros
se tornem, no terreno estratégico que é o Estado,
os centros efetivos do poder real. “Não se trata
de reformas progressivas, mas, claramente, de um processo de rupturas efetivas cujo ponto culminante - e sempre
existirá forçosamente um - reside na mudança de
correlação de forças em favor das massas
populares no terreno estratégico do Estado” (Poulantzas,
1978:285-286).
Em
outras palavras, a transição do capitalismo para o
socialismo consiste em “impulsionar
a proliferação de centros de democracia
direta, a partir das lutas populares que extravasam
sempre, e de muito, o Estado”. Enquanto que “limitar-se
ao terreno do Estado, por muito que se adote uma
estratégia denominada de rupturista, equivale a
deslizar-se insensivelmente para a
social-democracia”. (Poulantzas, 1983:75).
Portanto,
“No processo de ruptura, “a função dos organismos paralelos será
a de polarizar uma larga fracção do aparelho de
Estado pelo movimento popular, e estes em aliança,
enfrentarão os setores reacionários do aparelho do
Estado apoiados pelas classes dominantes
contra-revolucionárias”.
Vimos
assim que “as
posições de poder no âmbito do Estado existem
enquanto dispositivo de resistência, como elemento
de corrosão, ou de acentuação das contradições
internas do Estado” (Poulantzas, 1982, p. 133
e 136).
***
A
associação entre a participação direta do
cidadão na gestão pública e o projeto de
instalação de um poder popular, de viés
conselhista, existiu de fato até meados dos anos
oitenta quando se realizaram, nas prefeituras
governadas pelo PT, as primeiras experiências “participacionistas”.
Com efeito, a proposta de formação de Conselhos
Populares era mais associada a princípios gerais,
originários da Comuna de Paris, de que propriamente
a experiências colhidas na realidade local.
Objetivava-se realizar uma transferência de poder
para a classe trabalhadora organizada. Com isso
seria gradativamente substituída a representação
política tradicional, vinda das urnas, pela
democracia direta.
Trata-se,
como reconhece Tarso Genro, de uma visão
“simplista” do poder, que foi abandonada após o
fracasso das experiências conselhistas, notadamente
em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (Genro
& Souza, 1997:23).
Mesmo
persistindo certa ambiguidade nos mecanismos de
democracia direta, consubstaciados no Orçamento
Participativo de Porto Alegre, em relação ao
ordenamento constitucional vigente, o manto da
legalidade recobre, desde 1997, a experiência
porto-alegrense, oficializada pela Lei Orgânica do
Município (Genro e Souza, 1997:48). Já do ponto de
vista de sua legitimidade política, o Orçamento
Participativo da capital gaúcha de há muito
conquistou a opinião pública, tendo, na última
eleição para Prefeito, em 1996, os candidatos de
todas as tendências se comprometido em
respeitá-lo.
Para
a esquerda que considera socialismo e democracia
indissociáveis, e a reforma instrumento válido
para a transformação
social, a democracia participativa se
constitui em ingrediente fundamental para a
construção de uma alternativa socialista. Isto,
porém, não significa atrelar a luta pela
democracia à uma estratégia determinada, tendo
como meta a implementação de um programa
socialista. Um militante socialista da cidadania
trabalhará pelo aprimoramento desta, quer esteja
posta ou não na ordem do dia a ruptura com o
capitalismo, e o fará sem subordinar o seu
trabalho, e a fidelidade a seus princípios, a
considerações de caráter político-partidário.
Atualmente,
a luta pela ampliação dos direitos da cidadania se
insere em um espaço ético dotado de uma práxis
e de uma eticidade política próprias, lastreada no
respeito às regras do jogo vigentes, no âmbito de
uma democracia essencialmente representativa.
Esta
esquerda entende, à maneira de Carlos Nelson
Coutinho, que “a
ampliação da cidadania
- esse processo progressivo e permanente de
construção dos direitos democráticos que
caracteriza a modernidade - termina por se chocar
com a lógica do capital”.(5) Haveria, assim,
a longo prazo, uma “contradição
entre cidadania e classe social: a universalização
da cidadania é, em última instância,
incompatível com a existência da sociedade de
classes”. Desta forma “Só
uma sociedade sem classes
- uma sociedade socialista - pode realizar o
ideal pleno da democracia. Ou, o que é o mesmo, o
ideal da soberania popular, e, como tal, da
democracia”. (1997: 158-159)
Todavia,
para estes socialistas, a superação do capitalismo
não requer a destruição das instituições
existentes, mas o seu aprimoramento, pela
irradiação da seiva democrática, sob a forma de
participação direta e semi-indireta da cidadania,
em todos os poros da sociedade, tendo como árbitro
supremo o sufrágio universal.
CONCLUSÃO
Não
consideramos, como alternativas excludentes, como
faz Silva, a participação como técnica para se
organizar os conflitos com os capitalistas, ou seja,
como instrumento de mudanças substantivas, ou para
negociar uma melhor qualidade de vida para todos,
sem questionar o sistema (Silva, 1997:76). A
participação é uma prática de aprofundamento da
democracia e como tal poderá ou não concorrer para
abalar o capitalismo. Dependendo da correlação de
forças existentes, a luta pela democracia
participativa aprimorará um regime de capitalismo
democrático, ou favorecerá a sua progressiva
superação.
Aliás,
entre os partidários da democracia participativa
estão não apenas os socialistas, que impulsionam
as suas experiências mais avançadas, como o
Orçamento Participativo, mas também liberais de
diversos matizes, entre estes, André Franco
Montoro, Ulysses Guimarães e Mário Covas, que
conferiram status
constitucional à participação popular. Mas
também, o Ministro de Estado da Administração,
Bresser Pereira, com sua proposta de
“organizações sociais” controladas pela
sociedade, apoiada com entusiasmo pelo sociólogo
Betinho (Souza, l995). (6)
Trata-se,
então, para os socialistas, de disputar a
“hegemonia”, através do processo de
consolidação da práxis
inovadora ensejada pelos institutos da democracia
participativa.
Se
é verdade, como quer Tarso Genro, que a simples
aplicação da lei, no Brasil, é algo
revolucionário, que frutos não poderiam colher os
socialistas, em práticas que aproximam a democracia
“realmente existente” da plenitude democrática?
Esta, com efeito, se tornaria possível “se
aqueles que exercem poderes em todos os níveis
puderem ser controlados em última instância pelos
possuidores originários do poder fundamental, os
indivíduos singulares” (Bobbio, 1992:13).
NOTAS
DE REFERÊNCIA
(1)
Orçamento participativo de Porto Alegre constitui,
para o jornal Le
Monde Diplomatique, “Uma experiência de
democracia direta sem equivalente no mundo” (*)
Segundo
Tarso Genro, participaram de suas discussões, em
1998, aproximadamente 35mil habitantes da capital do
Rio Grande do Sul. Estes cidadãos deliberaram, como
se faz desde 1989, sobre os critérios e os
percentuais de alocação dos recursos do
Município. Quando em visita a Porto Alegre, o
filósofo Cornelius Castoriadis, surpreso com o
ineditismo da experiência, exclamou: “Eu sempre
vi organizações e lideranças populares
mobilizando-se contra o Estado. Jamais vi
mobilizar-se para orientá-lo. Foi a primeira vez
que eu vi isto”. (**)
*
Démocratie Participative à Porto Alegre. Le
Monde Diplomatique Paris, ago. 1998.
**
Genro, Tarso. A
utopia possível. Porto Alegre. Artes e Ofícios
Editora, 1995. p.165. 177p.
(2)
A identidade desta formulação de Bobbio com o
pensamento conservador e flagrante.
Em
um artigo publicado no jornal Folha
de São Paulo, o ex-presidente José Sarney
disse a mesma coisa: “O mundo foi transformado
não pela política ou pelos políticos, mas pela
ciência e pela tecnologia”. (*)
Sarney,
José. * Ainda o século. Folha
de S. Paulo, 17 dez. 1999.
(3)
Todavia, Pontes entende que, no caso dos Conselhos
de Direitos da Criança e do Adolescente pode
existir mandato imperativo “porque é possível
identificar o grupo de entidades que escolhe cada
organização não-governamental (ONG) como membro
do Conselho de Direitos. Isso tem por conseqüência
o fato de haver a possibilidade de mudança dos
representantes da sociedade civil pelas entidades
que o escolheram, antes de findar o mandato”. Mas
Pontes reconhece que tal processo só poderia
ocorrer caso esteja previsto na lei que criou o
Conselho, no seu regimento ou fórum de entidades
que escolhe os representantes das ONG’s, o que
não parece estar ocorrendo (Pontes, 1993: 51).
(4)
Por essas razões, quer-nos parecer inconsistente a
hipótese aventada por Silva, que considera a
fragmentação e o desenvolvimento de relações
clientelísticas como efeitos perversos da
participação (Silva, 1997: 78).
(5)
Nesse mesmo sentido, mas indo mais além, Tarso
Genro observa que “a
simples e pura aplicação da lei... volta-se hoje
contra uma nova acumulação ‘primitiva’
produzida pela corrupção e volta-se igualmente
contra os interesses de ‘desmontagem’ da
legalidade, pretendida pelos monopólios”. Por
essas razões, “a magistratura, as Procuradorias, os Promotores de Justiça, podem
desempenhar um grande papel democratizador no Estado
atual, mesmo que apenas consigam relativizar a
desconstituição que as classes dominantes precisam
fazer da atual legalidade, para reduzir os direitos
e poderes do cidadão comum e aprofundar a
manipulação das consciências” (Arguello,
1996: 76-77)
(6)
Se bem que a “gestão participativa” de Bresser
Pereira, centrada nas organizações Sociais (O.S.),
possa ser vista como uma descaracterização da
efetiva participação popular na esfera pública.
Com efeito, as O.S. contariam com representantes da
sociedade civil tanto na formulação quanto na
avaliação do desempenho dessas organizações.
Porém tais representantes, não influiriam na
determinação do montante do fundo público posto a
sua disposição. Além do mais, as O.S. ficariam
subordinadas à racionalidade competitiva e à
lógica gerencial.
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