
Carta
as Escolas de Buda
Antonin Artaud
Vós que não
estais na carne, que sabeis em que ponto de sua trajetória carnal, de
seu vai e vem insensato, a alma encontra o verbo absoluto, a palavra
nova, a terra interior. Vós que sabeis como alguém dá voltas no
pensamento e como o espirito pode salvar-se de si mesmo. Vós que sois
interiores de vós mesmos, que já não tendes um espirito ao nível da
carne: aqui há mãos que não se limitam a tomar, cérebros que vêem
alem de um bosque de tetos, de um florescer de fachadas, de um povo de
rodas, de uma atividade de fogo e de mármores. Ainda que avance esse
povo do ferro, ainda que avancem as palavras escritas com a velocidade
da luz, ainda que avancem os sexos um até o outro com a violência de
um canhonaço, o que haverá mudado nas rotas da alma, o que nos
espasmos do coração, na insatisfação do espirito?
Por isso, lança às
águas todos esse brancos que chegam com suas cabeças pequenas e seus
espíritos já manejados. È necessário agora que esses cachorros nos
ouçam. Não falamos do velho mal humano. Nosso espirito sofre de outras
necessidades que as inerentes à vida. Sofremos de uma podridão, a
podridão da Razão. A lógica Europa esmaga sem cessar o espirito entre
os martelos de dois fins opostos, abre o espirito e volta a fechà-lo.
Porem agora, o estrangulamento chegou ao cumulo, já faz demasiado tempo
que padecemos sob seu jugo.
O espirito é maior que o
espirito, as metamorfoses da vida da vida são múltiplas. Como vós,
rechaçamos o progresso: vinde, deitemos abaixo nossas moradas. Que
continuem ainda nossos escribas escrevendo, nossos jornalistas
cacarejando, nossos críticos resmungando, nossos agiotas roubando com
seus moldes de rapina, nossos políticos arengando e nossos assassinos
legais incubando seus crimes em paz. Nós sabemos - sabemos muito bem -
o que è a nossa vida. Nossos escritores, nossos pensadores, nossos
doutores, nossos charlatães coincidem nisto: em frustar a vida.
Que todos estes escribas
cuspam sobre nós, que nos cuspam por costume ou por mania, que nos
cuspam porque são castrados de espirito, porque não podem perceber os
matizes, os barros cristalinos, as terras giratórias onde o espirito
elevado dos homens se transforma sem cessar. Nós captamos o pensamento
melhor. Vinde. Salvai-nos destas larvas. Inventai para nós novas
moradas.
NOTA
Em 1920,
com idade de 24 anos, Antonin Artaud chega à Paris com a intenção de
consagrar-se ao teatro. Liga-se então, com Charles Dullin, que acaba de
fundar o "Théâtre de I’Atelier", participando como ator,
decorador e realizador. Faz já tempo que Artaud se interessa pelas
atividades do grupo surrealista. Em 1923, no atelier de André Masson,
entra em contato com Robert Desnos, Michel Leiris e Miró, quem pouco
tempo mais tarde lhe apresentam a André Breton e ao grupo surrealista,
que acaba de organizar-se ao redor do Primeiro Manifesto. É a época do
aparecimento da revista "A Revolução Surrealista", órgão
do movimento. Artaud adere e se torna um dos principais porta-vozes da
ideologia. "Apesar do pouco tempo transcorrido desde que Artaud
havia se unido a nós, ninguém, como ele, soube entregar-se tão
espontaneamente ao serviço da causa surrealista... Ele possuía uma
espécie de furor que não perdoava, por assim dizer, nenhuma das
instituições humanas, mas que podia, ocasionalmente, terminar em
gargalhada. Por ele passava todo o desafio da juventude. Não surpreende
que este furor, pelo enorme poder de contágio que possuía, influenciou
profundamente a trajetória surrealista (André Breton,
"Entretiens", Gallimard, 1952).
No começo do ano de
1925, o grupo funda uma "Central de Investigações
Surrealista", cujo objetivo inicial é: "recolher todos os
dados possíveis no que diz respeito às formas que pode assumir a
atividade inconsciente do espirito". Artaud, ao assumir pouco
depois a direção, se esforça por converter o objetivo inicial num,
centro de "reordenamento" da vida.
"O surrealismo, mais
que crenças, registra uma certa ordem de repulsões. É antes de tudo
um estado de espirito. Não determina receitas". O grupo lhe confia
então à direção do n 3 da revista "A Revolução
Surrealista", que até este momento estava a cargo de Péret e
Naville.
Artaud toma a iniciativa
de redigir a maior parte dos textos que se publicam neste número, dando
um giro inesperado ao tom da publicação. "Aqui a linguagem se
desprende de tudo o que podia dar-lhe um caráter ornamental, se entrega
à "onda de sonhos" de que falou Aragón, e surge cheia e
resplandecente à maneira de uma arma... (Breton, op.cit.)".
Seus textos impregnados
de um ardor insurreacional, estão redigidos em forma de cartas abertas
e dirigidos contra aquelas instituições ou seus representantes frente
aos quais o surrealismo começa a organizar o seu clamor de protesto.
Para a presente edição agrupamos as cartas sob o título geral de
"Cartas aos Poderes".
Desde o primeiro texto
(Carta Aberta), que figura como editorial da revista, uma voz profética
e exaltada por uma violência que inquietava à seus próprios
companheiros, lança uma ataque frontal contra o "espirito"
lógico e seus "poderes" de opressão, que de século em
século tem instrumentado a liquidação do homem. Nas cartas seguintes
fixa os termos de sua denúncia contra este "espirito"
fabricado nas universidades, reivindicado nos hospícios e
"transfigurado" em Roma. Fica o chamado à um oriente
dialético, através das cartas ao Dalai-Lama e as Escolas de Buda, onde
entrevemos - à luz do romantismo surrealista - um eco do "Viagem
ao Oriente" nerveliano.
Porém não pode
apressar-se em reconhecer aqui um oriente histórico, senão melhor um
"oriente interior", negação para onde se transfere tudo o
que o ocidente não é. Vinte anos mais tarde, a voz de Artaud,
convertida em grito, depois de sua passagem pelo hospício de Rodez,
descarregará com a violência do anátema, todas as suas baterias
contra este oriente e seu "espírito", que como todo o
"espírito" se aplicou em torturar à vida. Estas cartas junto
com "L’Ombilic des Limbes" e "Le pése-nerfs",
representam o começo de uma desgarradora experiência de um mergulho em
sua interioridade que "está aberta pelo ventre, e por debaixo
acumula uma intraduzível e sombria ciência, cheia de mares
subterrâneos, de edifícios côncavos e de uma agitação
congelada".
ARTAUD, Antonin. Cartas aos
Poderes. Porto Alegre: Editorial Villa
Martha, 1979. (Coleção Surrealistas - Vol. 1) |