
Acesso
Popular à Justiça
CECA
- Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria
O CECA —
Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria - vem
desenvolvendo o Projeto “Acesso Popular â Justiça” no município
de São Leopoldo — RS - Brasil. Este projeto tem como centro um curso
de formação de promotoras legais populares e se valeu da experiência
da Themis — Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero que, por sua
vez, se inspirou no trabalho em direitos humanos e defesa das mulheres
no Peru e nas Filipinas.
O
projeto iniciou em 1998 e já foram realizados três Cursos de Formação
de PLPs (1998-1999 e 2.000 – 100h/aulas cada) mais cinco Módulos de
Aprofundamento Temático (2.000 e 2.002), com a participação de 71
mulheres.
O
trabalho inicia com a construção de uma rede de parcerias. Entidades
voltadas para o social, igrejas e movimentos são chamados a participar,
encaminhando para o curso mulheres de grupos populares engajadas em
atividades comunitárias. Profissionais das diversas áreas de atuação
são convidados/as a colaborar na realização do curso.
Participaram
na assessoria dos cursos realizados onze (11) advogados/as, quatro(4)
psicólogos/as, uma assistente social, quatro(5) educadores/as
populares, um sociólogo, uma médica, uma antropóloga e quatro(4) teólogos/as,
muitos desses profissionais com mestrado e/ou doutorado.
Houve
um significativo campo de articulação, envolvendo setores da
Universidade, ONGs, Movimento local e Comissão Estadual de Direitos
Humanos, Defensoria Pública e Conselho Tutelar. O intenso e apaixonado
envolvimento das assessorias no trabalho mais a consolidação dessas
parcerias é o que vem garantido a realização qualificada e também a
continuidade do projeto, embora com poucos recursos financeiros.
Este
projeto objetiva capacitar lideranças femininas das periferias nas áreas
do Direito e da Legislação, a fim de que atuem como agentes populares
de justiça com as funções de informar, orientar e encaminhar os
setores mais empobrecidos nas questões da cidadania e da justiça. O
projeto se destaca pela clareza da proposta política. Visa formar
agentes multiplicadores do Direito e possibilitar o acesso popular à
justiça.
As
metas do projeto APJ vão no sentido da construção do protagonismo das
mulheres. Durante o curso, na medida em que as alunas vão se
apropriando de conhecimentos teóricos, sobre legislação e direitos
humanos e também práticos. pela visita a espaços públicos na área
da justiça e da segurança pública, vão fazendo uma descoberta da sua
cidadania e da solidariedade e consolidando um compromisso com as outras
mulheres.
A
participação no Curso não exige das mulheres escolaridade mínima.
Apenas requer conhecimentos básicos de leitura e escrita uma experiência
de compromisso com sua comunidade.
Conteúdo dos Cursos
O
ponto de partida do curso é uma reflexão sobre os direitos humanos a
partir da Carta de 1948. Atento a questões de gênero, classe e etnia,
no confronto da legislação com a realidade, utiliza as experiências
das participantes para desvendar a situação das mulheres e a problemática
da desigualdade e da exclusão social.
Todo
o curso se desenvolve sob essa ótica, informando sobre o aparato jurídico,
os instrumentos legais e os órgãos públicos que devem estar a serviço
da cidadania. Aborda aspectos do direito de família, legislação de
proteção à criança e ao adolescente, direitos em situação de violência,
direitos reprodutivos, trabalhistas e questões fundiárias.
Faz
parte dos cursos do CECA também um módulo específico sobre
ecumenismo, com celebrações ecumênicas e destacando a presença da
mulher na Bíblia. Este módulo visa atender à necessidade de reflexão
do público feminino atingido pelo CECA, grande parte desenvolvendo
trabalhos junto a comunidades das igrejas. Auxilia na reflexão sobre
aspectos culturais da religiosidade e no desvelamento dos processos
discriminatórios intra-eclesiais e proporciona uma atitude de abertura
para a diversidade e a diferença.
A
continuidade dos encontros nas reuniões mensais do grupo, onde se
avalia a ação nas comunidades, deu origem ainda a cursos periódicos
de aprofundamento em temáticas como Família hoje, Ética na atuação
da PLP, Atualização na Legislação Previdenciária, Regularização
Fundiária e outras, exigidas pelo engajamento cotidiano.
Metodologia
Na
compreensão freiriana de que “ninguém educa ninguém”, ocorre a
construção de um conhecimento interativo e solidário, sob uma ótica
de gênero que tem presente a realidade de discriminação das mulheres,
especialmente nas relações familiares e no acesso à cidadania.
As
dinâmicas, partindo do cotidiano e das histórias de vida, baseadas na
afetividade, na subjetividade e na corporeidade, vão derrubando as
barreiras e criando laços de solidariedade entre as mulheres. A relação
interpessoal oportuniza o resgate da auto-estima e a descoberta da
identidade de mulher e das condições de construção dessa identidade.
É um processo gradual de desvelamento realizado através da criação
de laços afetivos e da formação de uma rede de mútua confiança,
construída através de dinâmicas que oportunizem relatos pessoais e
das companheiras e na descoberta das coisas comuns, especialmente dos
sofrimentos, das discriminações e das experiências de violência doméstica,
agravadas pelas condições de pobreza das periferias urbanas.
Desdobramentos do Projeto
A
atuação das PLPs em suas comunidades deu origem a núcleos nas vilas (NUDDIN
Núcleos de Defesa de Direitos e Informação) para orientação e
encaminhamento das pessoas, visando responder, principalmente, a
demandas decorrentes de violência doméstica.
Com
o desdobramento da formação e da ação das mulheres nos núcleos,
formou-se um embrião de um Centro de Defesa de Direitos Humanos dentro
da entidade, com assessoria jurídica e psicológica, para atender os
casos mais urgentes de violência.
Através
do interesse despertado pelos cursos, o projeto foi expandido na região
do Vale do Sinos para os municípios de Sapucaia do Sul e Novo Hamburgo,
onde também estão sendo organizados núcleos de atendimento.
Alguns
depoimentos no final do Curso e novos desdobramentos
“Aqui
a gente além de aprender sobre os nossos direitos, conhecer a nossa
Constituição Federal,(...) eu acabei conhecendo problemas de outras
pessoas e sentindo que eu tenho um potencial em ajudar elas.
E
aqui foi o caminho de aprender e de como chegar lá.”(Roseli - PLP/1998)
“Esse
curso mexeu muito comigo. Foi muito válido. Mas o que mais aprendi foi
com vocês. Minha vida mudou muito, encontrei aqui mulheres... pessoas
preocupadas com as injustiças. Vocês me marcaram muito... Eu vi aqui
muitas pessoas chorarem, falarem de suas coisas... A advogada falou que
as mulheres viveram muito mas pouco ficou escrito. Por isso, às vezes,
acordo de madrugada e vou escrever... Isso deve ficar escrito.”(Ana -
PLP 99).
Este
depoimento traz um dos grandes desafios enfrentados pelo projeto. A
maioria das PLPs do CECA tem pouca escolaridade e as atividades de
leitura e escrita lhes são bastante difíceis. Temos oferecido
instrumentos para garantir o registro das experiências como cursos de
informática e dinâmicas de grupo.
Na
continuidade do projeto neste Plano trienal que se inicia, estamos
propondo grupos de leitura para estudo de textos no CEGA e nos núcleos
de atendimento.
Alguns impactos do projeto
O
resgate da auto-estima das mulheres é visível no significativo número
de mulheres que retomou os estudos regulares: das que temos informações,
23 voltaram a estudar. Esta redescoberta do próprio valor e de seu
lugar no mundo é explicitada em diversos depoimentos:” Eu, negra, sem
dentes, eu morri de vergonha, no início. Eu me senti bem como um
bichinho dentro de um casulo. Também o fato de deixar meus filhos em
casa... Mas pensei: é o momento de fazer alguma coisa por mim. Depois,
quando cheguei em casa, o meu nariz foi ficando mais empinado. Eu disse
nariz empinado porque eu não tenho medo de chegar em lugar nenhum. Eu
voltei a estudar, estou trabalhando
(Soila – PLP/99).
O
avanço no sentido da autonomia pessoal e da emancipação também se
revela nas falas das mulheres: “Este é um dos primeiros cursos que eu
vim com a minha cabeça. Meu marido sempre facilitava tudo. Eu estou
sempre assistindo ao crescimento dele. Agora comecei a andar com as
minhas pernas. Comecei a pensar com a minha cabeça.”(Tânia – PLP/99).
O
aspecto da emancipação se revelou fortemente na formação autônoma
dos núcleos de atendimento à comunidade: “Estou realizando um sonho
de 10 anos de trabalho com mulheres. Eu sempre questionava os grupos de
mulheres no artesanato. Pensava: tem que ter um projeto humano e político.
De transformar. Aqui, em seis meses de curso, as mulheres viraram a cabeça.
Um dia, cheguei na Vila Leite e tinha um aviso das promotoras:
“Atendemos as pessoas sobre qualquer assunto.” Vejo corno é quando
se tem um projeto humano e político claro... Como se transforma mais rápido.
Este é o projeto do CECA.”(Graciela — PLP/98).
O
empoderamento aparece forte quando elas fizeram a exigência de reuniões
mensais de manutenção e consolidação do grupo de PLPs e de
acompanhamento por parte da entidade. Também quando pautaram a urgência
de assessoria jurídica e psicológica para a continuidade do trabalho:
“O importante desse projeto é que o CECA nos deu o curso e, depois, não
nos largou. A gente continuou juntas, reunindo e se encontrando
sempre.”( Elza — PLP/98).
Houve
(e continua acontecendo) uma busca constante de aperfeiçoamento pessoal
que é incentivado, dentro das possibilidades da entidade, com
transporte e pagamento de inscrição, a todas que desejam, através da
participação em cursos, seminários e encontros diversos oferecidos em
Porto Alegre, na Região e, eventualmente, também fora do Estado. “É
importante olhar todos as oportunidades que tivemos de formação depois
do curso (oportunizadas pelo CECA).”(Luiza-PLP/2.OO0).
Tem
havido ainda consolidação das lideranças com engajamentos mais amplos
e de maior responsabilidade. As PLPs estão na coordenação dos Fóruns
Municipais da Mulher (N. Hamburgo e São Leopoldo), nos Conselhos
Municipais de Saúde, da Criança e Adolescente e também do Idoso, no
Programa de Alfabetização de Adultos (MOVA), no Movimento Negro, no Orçamento
Participativo e em muitos outros espaços de liderança.
Através
da ação nos Núcleos, tem havido encaminhamento jurídico de muitos
casos de violação de direitos de mulheres e meninas. A atuação das
promotoras tem colocado na agenda dos grupos e movimentos a problemática
da discriminação da mulher e tem contribuído para a responsabilização
dos homens junto às famílias através da multiplicação da informação
e também através de grande número de encaminhamentos jurídicos de
pedidos de pensão alimentícia e de reconhecimento de paternidade.
O projeto e os DHESCAs — desafios
No
projeto, a partir das realidades das participantes, não existe a
dissociação identificada nas discussões teóricas entre Direitos
Humanos civis e políticos e os econômicos, sociais, culturais e
ambientais (DHESCAs). As experiências cotidianas das mulheres das
periferias estão impregnadas de realidade.
Na
primeira aula do curso, com a leitura inicial da Carta de 1948, elas já
trazem a realidade cruel das vilas pobres: a falta de saneamento básico,
a escola inexistente ou só até a 5a série, o desemprego,
as péssimas condições de moradia, a ausência do médico e/ou dos remédios
no Postinho de Saúde, as ruas esburacadas, a falta de iluminação e a
dificuldade no transporte coletivo, a violência cotidiana nos seus
lares e na vizinhança, nas ruas e nos ônibus, em todos os espaços em
que estão, a ausência de espaços de lazer, especialmente para os/as
jovens, e todos OS outros dramas das periferias urbanas brasileiras,
comuns a todos os países chamados de “3º Mundo.”
Na
medida em que são instrumentadas através do acesso ao conhecimento,
acontece um salto qualitativo na vida e na atuação social e política
dessas mulheres.
“Estamos
montando uma cooperativa para conseguir terreno e construir casas. O
curso me ajudou a explicar ao pessoal as questões legais de uma
cooperativa.”(Beatriz/PLP 1998).
No
loteamento Santo Antônio, já com os terrenos e as moradias prontas, a
luta é outra: “O loteamento foi feito por uma imobiliária, as prestações
são muito altas, o local não tem infra-estrutura, então, estamos
tentando negociar estes pontos.”(Rosete - PLP/1998).
“Quero
juntar um grupo para trabalhar na comunidade. O que me preocupa silo as
crianças — agredidas, estupradas, maltratadas... (Marlene — PLP/99).
O
projeto aproveita as experiências do grupo dando visibilidade às violações
de direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Junto
com o conteúdo teórico aflora o cotidiano das vilas na luta por
sobrevivência e na busca da organização popular pela obtenção de
políticas públicas de saúde, saneamento básico, habitação, segurança,
educação, etc. dando visibilidade à busca por condições mínimas de
vida digna para todas as pessoas.
As
visitas a órgãos públicos de defesa e garantia de direitos e
encontros com autoridades durante a capacitação são instrumentos
fundamentais de quebra dos mitos da autoridade e do judiciário, de
apropriação dos espaços públicos, de florescimento da cidadania.
Muitos
outros desafios se colocam para o CECA na continuidade do projeto a fim
de garantir um avanço no acesso popular à justiça no município e na
região do Vale do Sinos.
Faz-se
necessário:
a)
construir um processo de avaliação participativa e um acompanhamento
mais qualificado das ações das mulheres nas vilas;
b)
consolidar o Centro de Defesa dentro da entidade;
c)
ampliar as articulações, desenvolvendo outros instrumentos de educação
popular na ótica de gênero, direitos humanos e desenvolvimento;
d)
buscar a sensibilização do Poder Judiciário Municipal para integrá-lo
no projeto;
e)
avançar no sentido de integrar as ações das promotoras legais
populares em uma concepção de desenvolvimento regional justo e
inclusivo, refletindo, debatendo e oportunizando instrumentos para sua
inserção qualificada no debate sobre a construção das políticas públicas.
Para
que todos e todas tenham vida e a tenham em abundância (João, 10,10),
o CECA continua a apostar neste projeto em seu Plano Trienal 2.002 —
2.004, alimentado pela esperança de que homens e mulheres cada vez mais
sejam parceiros e parceiras na busca da efetivação de um
desenvolvimento justo e sustentável que garanta a vida, a dignidade e a
paz em nosso Planeta.
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