
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
EM PORTO ALEGRE:
uma experiência exemplar no Brasil
Texto de Bernard Cassen,
diretor do Le Monde Diplomatique, agosto 1998, reproduzido com o
consentimento do autor.
Tradução do francês
para o Gabinete do Prefeito/POA, de Maria R. Pilla, 1998.
Há 10 anos se desenvolve em Porto Alegre,
Brasil, uma experiência exemplar : o orçamento participativo.
Durante os mandatos de três prefeitos sucessivos do Partido dos
Trabalhadores (PT), estruturas de decisão paralelas à Câmara
Municipal foram implantadas, permitindo a todos os habitantes
que o desejarem decidir verdadeiramente pela sua cidade. E
funciona ! Sobretudo para os menos favorecidos, que encontraram
aí um meio de reorientar a seu favor os recursos públicos que
normalmente eram dirigidos para os bairros ricos.
Essa noite de inverno austral, as quase
quinhentas pessoas que se aglomeram nos bancos da igreja de São
Francisco de Assis parecem a Seleção, porém uma Seleção
algo mais "européia", que contaria com quase tantos
Taffarel e Dunga, os dois jogadores originários da região, que
de Ronaldo e Cafu. Em pé, diante da tribuna — onde se
instalaram os representantes da Prefeitura, cujo Prefeito Raul
Pont em breve se somará — os candidatos das duas listas
concorrentes, microfone na mão, dispõem cada um de três
minutos para convencer. Estamos no bairro Lomba do Pinheiro, em
Porto Alegre, capital do estado de Rio Grande do Sul, o mais
meridional do Brasil, limítrofe com a Argentina e com o
Uruguai, e que aqui é chamado de estado gaúcho. E a eleição
visa designar os dois representantes deste setor no conselho do
Orçamento Participativo (ler o artigo em anexo, "Anatomia
de um poder popular"), assim como seus dois suplentes.
A atmosfera é ao mesmo tempo estudiosa e
descontraída. Faixas foram desfraldadas. A metade do público
grita para apoiar seus candidatos, a outra metade não os vaia.
A sala está tão dividida como a população de Porto Alegre
entre seus dois times de futebol: os azuis (Grêmio) e os
vermelhos (Internacional), sem fazer, no entanto, com que as
divisões político-futebolísticas a recorte. Após a
apuração, as duas listas estão praticamente em pé de
igualdade: 218 e 215 votos. Elas obterão, cada uma, um
conselheiro e um suplente.
O Orçamento Participativo (OP) não é
apenas um exercício de divisão das receitas e das despesas
municipais pela própria população. Por causa de sua amplitude
— a metrópole conta com 1,3 milhões de habitantes, no
coração de uma região metropolitana de 3,3 milhões — e
pelo seu método, rigoroso e evolutivo, ele constitui uma
experiência de democracia direta sem equivalente no mundo.
E ela suscita o interesse dos
pesquisadores e das organizações de cidadãos de numerosos
países, bem como de organizações internacionais: ela foi
selecionada para ser apresentada na segunda cúpula mundial das
cidades da ONU, ocorrida em Istambul em 1996. No Brasil ela
será uma das principais referências da campanha de Luiz
Inácio "Lula" da Silva, antigo dirigente sindical
metalúrgico de São Paulo e chefe histórico do Partido dos
Trabalhadores (PT), que, pela terceira vez, enfrentará Fernando
Henrique Cardoso, presidente atual, na eleição presidencial de
4 de outubro próximo.
O PT "tomou" a prefeitura de
Porto Alegre nas eleições de 1988 com Olívio Dutra, hoje
candidato ao posto de governador do Estado, e conservou —
aumentando em cada escrutínio o escore do prefeito e o número
de seus vereadores — em 1992 com Tarso Genro e em 1996 com
Raul Pont. O "poder popular" adquiriu seus títulos de
nobreza eleitoral; os cartazes e os múltiplos documentos
publicados pela prefeitura saúdam este ano seu décimo
aniversário com este slogan: "10 anos de OP nota 10".
No entanto, não há nenhum triunfalismo na prática cotidiana
do Prefeito, de seu círculo e dos responsáveis
administrativos. A confiança que a população progressivamente
lhes outorgou não sobreviveria a um comportamento
condescendente ou ainda distante: eles estão sistematicamente
na linha de frente com 21 noites de reuniões somente para a
primeira e segunda rodadas do OP entre março e julho, sem
contar outras numerosas reuniões. Em primeira linha, não à
frente de seus eleitores, mas ao lado deles.
Então, contra quem? Contra ninguém, com
exceção de algumas crises pontuais. Seria fácil — e nem
sempre justificável — designar bodes expiatórios. Por
exemplo, o governador do Estado, Antonio Britto, membro do
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), ou o
governo federal. Uns e outros, com efeito, tendo tudo o que
temer de um sucesso que recai sobre o PT, não fazem nada para
facilitar a tarefa da prefeitura.
Da mesma forma, as mídias poderiam
facilmente ser transformadas em demônios. Os três jornais de
Porto Alegre e as cadeias locais de rádio e televisão fazem um
silêncio completo, salvo em editoriais hostis, sobre a
realidade de uma experiência que lhes forneceria, entretanto,
material para pesquisas ou reportagens substanciais. Eles não
se dão sequer ao trabalho de anunciar as datas e os locais de
reuniões que ocorrem em diversos setores da cidade. Não é
certamente graças a elas que, segundo uma recente pesquisa, 85%
dos habitantes da metrópole gaúcha conhece a existência do
Orçamento Participativo e que 80% declaram que ele é "uma
coisa boa".
Em vista destes dados, compreendemos que a
Prefeitura recuse a postura de fortaleza assediada. Isso seria
para ela considerar-se minoritária em sua casa —o que é
desmentido pelos resultados eleitorais —, e sobretudo seria um
ato antipedagógico: não daria para, simultaneamente,
responsabilizar os cidadãos e encorajar-lhes a passividade,
situando fora de seu alcance as soluções aos bloqueios que
eles encontram.
A mensagem implícita é a seguinte: todos
juntos, ao menos todos os que quiserem, vamos identificar os
problemas a serem resolvidos, estabelecer a hierarquia das
urgências e dos investimentos, examinar sua compatibilidade com
os recursos disponíveis, podendo até aumentá-los com medidas
fiscais redistribuindo a riqueza dos mais privilegiados para os
menos favorecidos. Tal exercício não deixa nenhum espaço para
a demagogia, menos ainda ao clientelismo ou à corrupção: da
eleição dos delegados ao procedimento de gestão das
licitações, tudo é transparente.
As necessidades — escolas, habitação,
pavimentação e asfalto nas ruas, coleta do lixo, saneamento,
esgotos, iluminação pública, equipamentos sociais, culturais
e esportivos, transporte público, etc. — eram imensas quando
Olívio Dutra assumiu seu cargo em janeiro de 1989, quando os
créditos disponíveis eram praticamente inexistentes. Daí a
enorme decepção daqueles que, ignorados até então pelas
autoridades — salvo no momento das eleições — esperavam
que tudo fosse feito, em seguida. No local onde ele faz sua
campanha contra o governador licenciado, Antonio Britto, o
primeiro prefeito do PT lembra esta época: "Nós herdamos
uma batata quente. As primeiras assembléias convocadas nos seis
setores com que a cidade contava na época, se esvaziaram ao
cabo de alguns meses, porque não podíamos dar as respostas às
demandas mais urgentes. Nós decidimos então parar de nos
lamentar, fazer um inventário de nossos recursos em matéria de
pessoal e material para atender às urgências mais gritantes,
discutir as receitas fiscais, saber o quê custa quanto, etc.
Nós começamos em seguida a estabelecer coletivamente
prioridades, fixar critérios de atribuição dos investimentos
públicos..."
Esta maneira de agir foi pouco a pouco
formalizada para desembocar em mecanismos relativamente
azeitados. A principal modificação consistiu em passar de seis
para dezesseis o número de setores — a cidade se estende
sobre 30 quilômetros — e, sobretudo, em 1994, a criação de
cinco setores, chamados "temáticos", que permitem a
abordagem global dos problemas de Porto Alegre. "Estes
novos setores permitiram a participação de atores até então
desconsiderados pela fragmentação: universitários (1),
industriais e classes médias em geral", explica Tarso
Genro, que os instaurou durante seu mandato. Entretanto, como
não cansa de sublinhar Fernando Zacchia, vereador municipal da
oposição e chefe do PMDB local, a participação dos
porto-alegrenses no Orçamento Participativo é limitada: 16 mil
e 500 pessoas "apenas" estiveram presentes nas
reuniões do começo de março à metade de julho de 1998.
Passará de 20 mil no fim do ano, se
contarmos a presença em centenas de reuniões não oficiais. E
os mais implicados são aqueles que têm mais a ganhar: os meios
populares, os moradores das vilas — nome local das favelas —
as categorias médias inferiores. Porém, se faz melhor em algum
lugar em termos não de simples consulta, mas de deliberação
real ? Zacchia reconhece honestamente que não, e nos informa ao
mesmo tempo que seu partido quer, também, promover a democracia
participativa na escala do Estado do Rio Grande do Sul.
"Pura demagogia eleitoreira", respondem os panfletos
do PT...
Inverter as prioridades
O OP permitiu uma verdadeira
redistribuição dos investimentos públicos em benefício das
periferias onde, por exemplo, os ônibus não chegavam, até que
a Prefeitura impusesse aos transportadores privados itinerários
precisos através de um conjunto de regras para o funcionamento
do transporte coletivo e ela própria cuida do asfaltamento das
ruas. Em todos os domínios, particularmente no da habitação,
a promoção dos habitantes ao estatuto dos que decidem inverteu
as prioridades habituais. Dois exemplos. Em pleno centro da
cidade, a vila Planetário, conjunto de casas habitadas por
papeleiros, dava água na boca dos especuladores: bastaria, como
é a prática corrente, enviar cães e tratores para liberar
espaços destinados à construção de apartamentos de luxo ou
de escritórios. A existência do OP permitiu aos moradores de
serem alojados no local em casinhas de alvenaria. A vila foi
então batizada Jardim Planetário.
A atual operação que está sendo feita
no Cristal também é exemplar. O grupo Multiplan constrói ali
um shopping center de 52 mil metros quadrados, o Big Shop. Mas a
Prefeitura lhe impôs realojar previamente e às suas custas, os
moradores das vilas que se encontravam no local do futuro
complexo. Um primeiro grupo de 400 casinhas edificadas num outro
bairro de Porto Alegre deverá ser entregue nas próximas
semanas. Os delegados dos moradores da primeira vila a ser
evacuada vêm cada sábado verificar o andar da obra na qual, 80
deles foram contratados. O que dá todas as garantias sobre sua
conclusão... No momento em que a percorríamos, uns 30
funcionários do departamento de habitação da Prefeitura,
todos muito jovens, efetuavam uma visita de campo para
compreender o que significa concretamente o poder popular em
ação.
Tudo isso explica a adesão ativa ou
passiva da classe média, que além disto, ouvem falar bem da
experiência por seus empregados — porto-alegrenses no OP.
Entretanto, o prefeito atual não é o último a se perguntar
sobre os problemas que ele coloca. Em primeiro lugar o da
coexistência de dois poderes: de um lado a câmara de
vereadores e, de outro, os fóruns de setores e o conselho do
OP. Num país onde o salário mínimo mensal é de R$ 130,00
(cerca de 700 francos), explica Pont, "os conselheiros do
OP, voluntários, nos dizem seguidamente : somos nós quem
trabalhamos. Então, para que servem os vereadores que recebem
R$ 4 500,00 por mês para não fazerem nada ?"
Como conciliar a democracia participativa
com a democracia representativa, sobretudo se quisermos
estendê-la de uma cidade a um Estado, ou até mesmo a todo um
país?
"Nós discutimos dentro do PT, mas
isto coloca questões teóricas ainda não resolvidas, ainda
mais que, em outras regiões do Brasil, onde o partido acendeu
ao poder municipal a reflexão é claramente menos aprofundada
que aqui." De qualquer jeito : mesmo com seus limites, a
experiência de Porto Alegre mostra que quando a vontade
política existe, e que mulheres e homens estão dispostos a
sacrificar sua pessoa em serviço do bem público, a cidadania
não pode ser mais uma palavra vã.
(1) Em particular a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a mais importante do
estado. Com a Prefeitura, outras entidades universitárias e uns
vinte sindicatos, ela organizou do 13 ao 17 de julho último,
seu segundo seminário internacional "Século 21. Barbárie
ou solidariedade". As atas do primeiro seminário, ocorrido
em 1997, acabam de ser publicadas : Globalização,
neoliberalismo, privatização, sob a direção de Raul K.M.
Carrion e Paulo G. Fagundes Vizentini, Editora da Universidade
UFRGS, Prefeitura de Porto Alegre, CEDESP/RS, Porto Alegre,
1998, 309 páginas, sem indicação de preço. |